terça-feira, dezembro 29, 2020

o inimaginável Deus vulnerável

O Deus que encarnou e se fez menino foi acomodado em palhas, numa manjedoura, sob os olhares de vacas, burros e ovelhas. Não sob o olhar de holofotes e de câmaras de televisão e jornais. Não teve as melhores condições sanitárias para vir ao mundo. Não teve direito nem a clínicas privadas nem a hospitais públicos. Não teve sequer lugar numa hospedaria. Encarnou junto dos animais, na solidão dos homens e sob a ameaça de um genocida. Nasceu na maior humildade e fragilidade da natureza humana. 
Deus quis entrar na nossa história anónimo e escondido, frágil e pobre, um deus vulnerável. O inimaginável Deus vulnerável! 
O Natal é a memória da vinda de Deus entre nós, na carne frágil, vulnerável e mortal que nós somos. A partir daquele dia, não se pode mais dizer Deus sem a humanidade, nem a humanidade sem Deus! A partir daquele dia, o sofrimento, a morte e o mal não terão mais a última palavra. 
Há que dizer, portanto, que, apesar dos tempos em que vivemos, nada nem ninguém nos tira o Natal, porque o verdadeiro Natal acontece nos nossos corações! É lá que Deus quer encarnar! É lá que Deus quer habitar! Talvez assim consigamos olhar o mundo e todas as adversidades do mundo com um novo olhar que brota de um coração cheio de Deus! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Há gente para quem o Natal é só uma data"

quarta-feira, dezembro 23, 2020

os meninos [poema 295]

Veio, agarrado às mãos, do bolso de um menino, 
Cabia entre dois dedos, era tão pequenino! 
 
Fora tomado à pressa, no presépio da sala, 
Com auxílio do avô e de uma bengala. 
 
Juntou-se aos corcéis, comboios e carrinhos 
Numa azáfama grande de muitos carinhos.
 
Em duas mãos dançava, na brincadeira, 
Era quem mais rebolava no chão de madeira.
 
Era o mais querido, com quem mais brincava, 
O seu menino mais lindo, o que mais amava. 
 
Apertava-o e dizia: eu gosto deste menino! 
É tão parecido comigo. Ele é tão pequenino… 
 
 
Aproveito para desejar um santo e verdadeiro Natal a todos vós que aqui vindes buscar algo!

sábado, dezembro 19, 2020

Não é uma porta fechada que fecha uma igreja.

Parou em frente da porta da Igreja. Avistei-o da janela quando passava por ela. Apreciei os gestos, a inclinação da cabeça, a idade visível nos cabelos brancos que desprendera da boina que segurava na mão esquerda. A direita tocou ao de leve na porta fechada da igreja. Depois, passados uns cinco minutos ou o que me pareceu ser esse tempo, levou essa mão à fronte e benzeu-se. Inclinou-se, em gesto que me pareceu de despedida, e seguiu o seu passeio. Deixei de o ver em pouco tempo. E fiquei ali preso à janela, a olhar a porta e a imaginar Deus lá de dentro a sorrir. Não é uma porta fechada que fecha uma igreja. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A menina que era para ficar à porta"

quarta-feira, dezembro 16, 2020

caim e abel [poema 294]

Não vou suportar o castigo do desamor 
E por isso mato por amor 
Próprio, dono de mim, trocado 
Por este pastor 
           ---------
Vou viver rodeado de irmãos 
E por isso vivo para além de mim 
Próprio, servo de quem vier 
Ao centro do meu fim

sábado, dezembro 12, 2020

Esta coisa dos dogmas da Igreja

Não é muito costume os leigos fazerem este tipo de perguntas. Embora tenhamos vindo a assistir nos leigos um progressivo afastamento da passividade eclesial, a verdade é que, até pela falta de formação religiosa que muitos têm, não costumam surpreender-nos com este tipo de perguntas. Mas a Deolinda é uma mulher culta, que lê muito e gosta que lhe expliquem as coisas de Deus e da Igreja que desconhece. E esta coisa dos dogmas, como ela disse, não as entendo muito bem. Afinal, o que são os dogmas, padre? 
Os dogmas são verdades de fé que a Igreja ensina como reveladas por Deus. Se quiser pode conferir isto no catecismo da Igreja Católica, ora deixe-me cá confirmar, entre os números setenta e quatro e noventa e cinco. São pontos firmes da nossa crença, deixe passar a expressão. Quase todos eles foram reconhecidos, como tal, em concílios, embora como resposta a heresias. E comecei a desfilar dogmas mais ou menos da seguinte forma. Os principais dogmas são: Deus é Uno e Trino; o Pai é o criador de todas as coisas; Jesus, seu Filho, é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, encarnado, morto e ressuscitado pela nossa salvação; o Espírito Santo é Deus; a Igreja é una, como o Batismo é uno. E ainda: o perdão dos pecados; a ressurreição dos mortos; a existência do Paraíso, do Inferno e do Purgatório; a transubstanciação; a maternidade divina de Maria, a sua virgindade, concepção imaculada e Assunção. 
As caras que a Deolinda fazia a escutar-me denotavam o seu estado de espirito, o que acabou de revelar quando acabei. Fiquei quase na mesma, padre. Entendo que assim tenha de ser, mas não sei porque é assim. Sabe, padre, a mim os dogmas não me fazem ter nem mais nem menos fé. Nem sei bem para que é que eles servem, afinal. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "As desavenças entre a Senhora de Fátima e a Imaculada"

quarta-feira, dezembro 09, 2020

habitação [poema 293]

Quero refazer as palavras em silêncio 
Na tua habitação. 
 
Passá-las no crivo. Tu és a obra 
Da sua reconstrução. 
 
Quero fazer com que o meu corpo se traduza 
num gesto de comunicação 
Ao entrar por ti no silêncio 
da comunhão.

sábado, dezembro 05, 2020

Mãos ao alto

Uma paroquiana que é funcionária na escola e que tem a responsabilidade de fazer com que os meninos, à entrada, desinfectem as mãos, contou-me que aproveitava a ocasião para lhes ensinar a por as mãos ao Senhor. Mão direita sobre a esquerda. Alcool Gel e esfrega. Agora volta as mãos para o alto e agradece a Jesus o dom da vida. E não é que os pequenitos fazem os gestos, olham para o alto, e esboçam uma oração!? 
Lá está, não precisamos de grandes planos e programas de pastoral e de evangelização. O que precisamos é de cristãos que diariamente, mesmo em pequenos gestos, falem de Jesus e, mais ainda, testemunhem Jesus. Mãos ao alto, por favor! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Obrigado pela fé que me deste"

quarta-feira, dezembro 02, 2020

O Miguelito e o Papa

O Natal vem aí. E como está a chegar o tempo de escrever cartas ao “pai natal”, a mãe do Miguelito, que tem quatro anos, achou oportuno oferecer-lhe o livro que tem por título “Querido Papa” e contém respostas do Papa Francisco a cartas escritas por crianças de todo o mundo. Também achou que seria uma boa ideia propor-lhe redigirem uma carta ao Papa. O Miguelito, depois de ver o livro e porque não sabe ler, procurou-lhe Mamã, quem é o Papa? E ela respondeu dizendo que o Papa era o representante de Jesus na terra. Seguiram-se uns momentos de silêncio. Ele olhava o livro e depois olhava a mãe. Olhava de novo o livro e voltava a olhar de novo a mãe. À terceira não hesitou perguntar. Olha, mamã, o Papa Francisco também vai morrer na Cruz? A mãe, admirada pela associação que o filho fizera em tão tenra idade, respondeu-lhe imediatamente dizendo que Não, meu Filho. E a seguir ouviu o coração bom do Miguelito nas palavras: Se não, podíamos trazê-lo cá para casa para o proteger.

segunda-feira, novembro 30, 2020

morte sem nome [poema 292]

O papel escrevia que havia morrido uma pessoa, sem nome 
Na página do fundo repetia a mesma história, sem título.
 
E toda a vez que alguém morria sem nome 
A história repetia-se, ela mesma, no fundo do papel, 
na gaveta que ninguém visitava 
E que escondia a bíblia sagrada 
 
Vinha então a morte antes da morte. 
 
A morte sem nome eras tu.

sexta-feira, novembro 27, 2020

Hóstias falsas

Contou-me uma paroquiana que ouvira um menino, todo pimpão, dizer que ia comer hóstias falsas. E que lhe contara como era o fato que ia vestir na festa da Primeira Comunhão. A senhora entendera a genuína alegria dele e porque falava nesta linguagem. Estava feliz o pimpão. E tinha motivos para tal. A festa que vamos realizar, com imensos cuidados por causa da pandemia, é motivo de sobra para a sua felicidade. E ao falar nas hóstias falsas, estava a falar, na sua linguagem, da experiência que vamos fazer com eles, para aprenderem como se comunga e o significado da hóstia consagrada versus o pedaço de farinha que vão hoje experimentar. 
No entanto, a expressão usada e a forma carinhosa, mas preocupada, com que esta paroquiana me contou a ocorrência, fez-me pensar, mais uma vez, na importância e valor que a comunhão tem ou não tem para nós. E consequentemente, na banalização que em determinadas ocasiões, se faz dela. Ou porque se comunga por comungar, como também se faz outra coisa qualquer. Ou porque não se comunga, como também não se faz uma série de coisas. 
Não sei até que ponto, mesmo nós cristãos adultos, percebemos o alcance enorme que é comungar o Senhor, recebê-lo dentro de nós, acolher esta partilha de um Deus que se faz banquete para nós. 
Mas nem tudo o que vamos ouvindo e lendo sobre o assunto é mau. Ainda há pouco tive a oportunidade de ler o testemunho de um famoso jurado do programa de culinária MasterChef em Espanha, vencedor de duas estrelas Michelin e dono de dois restaurantes, José “Pepe” Rodríguez Rey, dizer numa entrevista assim, tal e qual como escrevo, mas na sua língua castelhana: “Comungar é o que mais me alimenta”. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Os Paulitos de hoje"

quarta-feira, novembro 25, 2020

partir pedra [poema 291]

Dizia que não ficaria pedra sobre pedra 
Que se soltariam umas das outras, mas esquecia 
Que ao soltar-se, continuariam a ser pedras 
E que cairiam em cima umas das outras 
Amontoado de cidades a crescer, desmoronadas, 
Que são cidades sem querer 
 
Dizia que não ficaria pedra sobre pedra 
Que se despedaçariam umas nas outras, mas esquecia 
Que os pedaços de pedra também são pedra 
A minguar para não ser mais que as outras 
Cidades de pedra a crescer, amontoadas 
De cinzas humildes para um dia voltar 
A ser

segunda-feira, novembro 23, 2020

As missas e a azeitona

Este domingo duas das minhas igrejas estavam a meia ocupação, mesmo descontando a meia ocupação da pandemia. Tal como eu já adivinhava, porque esta região vive rodeada de olivais. As pessoas têm de apanhar a azeitona, dê por onde der, seja em que dia for. Não é só a missa que faz parte das suas vidas. Também a azeitona faz. E por isso há épocas do ano, tal como a época das vindimas, em que as igrejas desta região se despovoam um pouco. Assim, no final das missas que ali celebrei, rezando também por aqueles que estavam na “apanha”, desejei boa azeitona, expressão típica de quem sabe o que é “andar à azeitona”. 
Já no regresso a casa, veio-me à memória um colega que, há uns anos, embora poucos, numa dessas celebrações um pouco mais vazias, por causa da azeitona, passara grande parte da homilia, zangado e a esbracejar, criticando quem tinha ido à azeitona. A parte da homilia que ainda hoje me custa mais a engolir, foi aquela parte em que ele deixou no ar o desejo de que alguns caíssem de alguma oliveira e partissem uma perna, para aprenderem que não deveriam ter faltado à missa. Ainda hoje não entendo como é possível fazer afirmações deste tipo, mesmo que nos custe presidir a uma celebração para meia dúzia de pessoas. Como se a bondade de Deus só devesse existir para com os que vão à missa. No que a mim diz respeito, eu rezo para que não caiam das oliveiras e possam voltar rapidamente à missa.

sábado, novembro 21, 2020

petrus [poema 290]

Se cruzássemos os olhos um no outro 
Antes de qualquer negação, 
não saberia dizer-te que não. 
 
Revolveria minha alma por dentro 
De uma mão, 
Com três dedos sairia de mim para te agarrar 
Para te dizer com a força da minha negação 
O meu modo de te amar 
Por inteiro, ou então 
A pobreza de não ser mais que a tua 
Outra mão.

quinta-feira, novembro 19, 2020

Tratar dos pobres

Curvado pela idade, com a ajuda de uma bengala, o senhor José bateu à porta do senhor prior. Estava na hora do almoço, mas era dia mundial dos pobres e o senhor José tinha pressas de fazer o bem. Trazia um envelope no bolso para o senhor prior dar aos pobres. Quando o pároco lhe abriu a porta, achou estranha a hora deste amigo que admira muito. A missa tinha acabado há poucos minutos. Ó senhor José, tinha tempo. Não era preciso ter vindo agora. Mas o senhor José tinha a tensão muito alta e não baixava. Já tomara duas vezes a medicação e a tensão não baixava. Tinha de ir ao centro de saúde. Mas não queria ir sem antes deixar o envelope. Ó senhor José, tinha tempo. Teria sido mais prudente em ir primeiro ao centro de saúde. Ai, senhor José, reclamava o padre, um pouco preocupado. 
Mas o senhor José, antes de tratar de si, tinha de tratar dos pobres da paróquia. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A Rosária"

segunda-feira, novembro 16, 2020

Doer sem tempo para doer

Morre-se mal nestes tempos. Muito mal. Nos funerais em tempo de pandemia morre-se por fora e por dentro. Um pedaço enorme de nós seca. Seca curiosamente diante das despedidas reduzidas a lágrimas. Sim, na maior parte dos funerais, a despedida é feita quase exclusivamente de lágrimas. Que nos secam por dentro. 
E hoje sei na primeira pessoa que assim é. Quando não foi possível despedir-me como queria do meu cunhado mais velho. Ou seja, do meu irmão mais velho. Sem o ver. Quase sem tempo de velório. Na ansiedade de autopsias e testes covid, porque assim tem de ser para quem morre na via pública. Cinco dias disto. Cinco dias a segurar lágrimas às escondidas da minha irmã. Pois que as suas eram mais abundantes e mais constantes. Na verdade, serviu para amadurecer a dor. Para escolher bem as leituras e a homilia. Graças a Deus que foi possível celebrar a missa com a família, porque em muitos casos e zonas nem é possível. Nem a missa nem o velório. Tudo se reduz a uns quinze minutos no cemitério com poucas presenças. Vem-me constantemente à ideia as centenas de amigos que ficaram sem se despedir, porque não cabiam na despedida. 
A nossa despedida foi muito digna. Foi uma festa linda. Entregámos tudo a Deus e respondemos à dor com a fé. É o que resta. É o que vale. Senti, porém, que estes funerais são como uma ferida que tem de sarar por si mesma, numa imunidade forçada sem remédios. Uma dor sem tratamento. As perdas deixam cicatrizes. Sem tempo para a despedida, para o luto da despedida, a ferida fica escondida. E dói mais. É quase como doer sem tempo para doer. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Levar com alegria o sofrimento?"

sexta-feira, novembro 13, 2020

da vida [poema 289]

Na varanda veio-lhe aos olhos 
O odor da vida 
 
Essa entranha que na miragem 
Esvoaçou 
 
Essa paisagem que, apeada 
Não parou 
 
Esse tempo indizível do ser 
A beleza da vida cumprida 
Que não passou

quarta-feira, novembro 11, 2020

parece que nos estamos a despedir de criminosos

Há vários dias consecutivos que um colega tem feito funerais de pessoas que foram vítimas do novo coronavírus. Ao momento que redijo este pequeno texto, já lá vão uns cinco. E amanhã vai outro a sepultar. E contava. As minhas celebrações exequiais – que são no cemitério, recordo - estavam a durar apenas uns quinze minutos. Agora não chegam a dez! Tenho pena desta gente. Às vezes parece que nos estamos a despedir de criminosos. Completava, depois, com muita mágoa nas palavras. Deus nos ajude a ser instrumentos de esperança e conforto na dor de quem chora. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Funerais a fugir"

segunda-feira, novembro 09, 2020

A santidade dos que não são santos

O dia de Todos os Santos tem destas coisas. Faz-nos pensar na santidade. E toda a gente gosta deste dia. Primeiro, por ser feriado. Mas depois porque a piedade popular gosta de santos, devoções, ermidas e coisas ligadas aos santos das suas devoções. O que é bom. Muito bom. Mas que, nalgumas ocasiões precisa de uma certa purificação. Digo-o porque me parece que muitos dos nossos cristãos pedem muita interceção aos santos canonizados e pouca a Deus, mesmo que através desses mesmos santos. E também o refiro porque sei, pela teologia, o magistério da Igreja e, sobretudo, pelo meu próprio entendimento da fé, que a santidade é a nossa vocação universal. Não a santidade dos santinhos. Mas a santidade do dia-a-dia. 
Os santos dos altares são estímulos para a nossa santidade. Mas também eles viveram como nós, na fragilidade dos dias. A santidade não é nem uma conquista nem um prémio. Não é uma conquista que fazemos, nem um prémio pelos nossos méritos. Não é uma moeda de troca com Deus. É caminho para Ele. É comunhão com Ele. É a busca de nos configurarmos com Cristo. Como dizemos na Eucaristia, é a vida que procura viver “por Cristo, com Cristo e em Cristo”. Por isso não é privilégio de alguns, mas um dever de todos os seus discípulos. Ser santo é, aliás, na minha maneira de ver, a única maneira de ser verdadeiramente cristão. 
A solenidade de Todos os Santos serve para honrar e recordar todos os santos. Mas serve, acima de tudo, para nos recordar que todos somos chamados à santidade. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Carlos que é meu sacristão"

sexta-feira, novembro 06, 2020

A morte como um fim

Celebrámos há dias o Dia dos Fieis Defuntos ou, como é conhecido em muitos lados, o Dia dos Finados. Sim, o dia daqueles que supostamente, como a palavra indica, findaram, chegaram ao fim. E este ano, apesar de não ter sido possível realizar romagens comunitárias, passei por todos os cemitérios a rezar pelos que já partiram e, de certo modo, são também meus, porque estão sepultados nos cemitérios das minhas comunidades paroquiais. 
Num desses cemitérios, chamou-me a atenção uma senhora que colocava umas rosas na campa do marido que fora a sepultar neste tempo de pandemia. Nem a máscara impedia que as lágrimas caíssem sobre as rosas. Para as regar. Conversámos um pouco entre alguns soluços partilhados. E às tantas ela usou a palavra do “fim”. Que o seu marido chegara ao fim. E que a sua vida estava também a chegar ao fim. 
Aquelas palavras chegaram ao âmago do que penso sobre a morte e a ressurreição. E aquele momento ajudou-me a fazer a homilia desse dia, ao entardecer. Entre outras coisas, falei da morte como um fim. Sim, como um fim. Mas não o tal fim da senhora do cemitério. Não falei da morte como um fim onde se coloca um ponto final. Falei desse fim como uma finalidade. Falei da morte com um fim de finalidade, de propósito, de objectivo. Afinal todos morremos com o objectivo de podermos chegar à comunhão plena com o amor do mesmo Deus que nos deu a vida.
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Padre, será que o meu marido está no céu?!"

quarta-feira, novembro 04, 2020

desamor [poema 288]

Não suporto não te amar e por isso te desamo 
Largo-te por entre os dedos amarrados aos teus, 
Meus dedos erguidos, apontados, ao céu 
mas fechados 
são meus 
 
Foges como água que não seca, e permanece, 
mas reclamo eternamente 
Porque se cola a mim sem se notar, sem me deixar 
Neste querer e não querer 
Para sempre 
estar 
 
Entranha-se e estranha-se 
Como vai e vem mesmo presente 
Como vai sem ir, meu primeiro coração 
Ausente. 
Amor com nome sem fim e se pressente 
Para largar, 
Porque mais não sei fazer do que te amar

quinta-feira, outubro 22, 2020

A pandemia descristianizante

Há dias, um cardeal, o cardeal Jean-Claude Hollerich, disse, numa entrevista, que a pandemia tinha acelerado a descristianização da Europa e que muita gente que ia à missa só por um hábito cultural deixaria de ir. E acrescentava que a pandemia só adiantara um processo que, na sua opinião, apenas tinha sido adiantado uns dez anos. E é capaz de ter alguma razão este cardeal. 
Iniciámos a catequese da paróquia nestes dias. De entre as festas da catequese que ficaram por fazer no ano pastoral passado, quisemos começar pelo sacramento da Eucaristia, a festa da Primeira Comunhão. Vamos realizá-la em breve, assim Deus e as circunstâncias o permitam. Para a preparar, reunimos os pais, obviamente que com os cuidados necessários derivados da pandemia. E ali estavam três dezenas de rostos que há muito não vejo na igreja. Graças a Deus que estavam ali. Mas, infelizmente, não os tenho visto nas celebrações da comunidade. 
Na verdade, a pandemia veio hipotecar um certo trabalho que esta minha comunidade cristã vinha fazendo com os pais dos nossos catequisandos e com o qual se vinha aumentando o número de pais e crianças na eucaristia dominical. Mas agora não têm ido. Independentemente das razões, dos medos, das inseguranças de cada um, o cardeal é bem capaz de ter alguma razão. Esta pandemia não tem ajudado a alimentar a fé comunitária. Pelo menos essa. Ou pelo menos a dimensão comunitária da fé, que tão importante é para alimentar a verdade de uma fé que vive o “nisto conhecerão que sois meus discípulos; se vos amardes uns aos outros”. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Queres ficar à missa?"

terça-feira, outubro 20, 2020

O paroquiano que reza pelo seu pároco

O senhor Manuel, que é um bom homem e é meu paroquiano, dizia-me que todos os dias rezava por mim. Como eu achava aquilo fantástico, gostava de o ouvir. Creio que ele também gostava de o repetir. E um dia destes, num dos nossos diálogos, regressámos ao assunto. A sério? Mas reza mesmo todos os dias por mim? Agora fora de brincadeiras, reza todos os dias por mim? Insistia eu. A resposta não se fez esperar. Mas não foi propriamente a que eu estava habituado a ouvir. Sim, senhor padre. Eu também rezo todos os dias pelos pecadores. 
Não sei se lhe saiu assim, se respondeu sem pensar, se respondeu com maldade, ou com intenção natural de nos rirmos. Mas que me ri, ri. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O burro do Alfredo"

sexta-feira, outubro 16, 2020

Gostar das pessoas

Foi num país africano que ocorreu o que vou contar. Era, na altura, um país onde os missionários ad gentes andavam de terra em terra, ou de missão em missão, como diziam, para cuidar das almas daqueles convertidos. O padre João fazia parte deste grupo de missionários. Tinha fama de zeloso e de realizar bons trabalhos de evangelização. Prova disso era o tempo que despendia a escutar as pessoas. Durasse o tempo que durasse. Como aconteceu num determinado dia, data que interessa pouco porque fazia parte de um dia normal e os dias normais a gente não sabe datar. O que interessa é que o padre João, nesse dia, estivera três horas a escutar um velhinho. O professor lá da terra que, de longe, tomara conta desta acção do padre João, no dia seguinte foi ter com ele para lhe dizer, com agrado, que já tinha percebido que o padre João gostava muito deles. Que gostava muito desta gente lá da terra. Como o nosso amigo padre não percebera onde fizera essa descoberta, perguntou-lhe porque fazia tal afirmação. E o professor respondeu. Só quem gosta muito de nós pode estar três horas a ouvir um velhinho. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Que esse Jesus não era um gajo fixe"

terça-feira, outubro 13, 2020

madrugada [poema 287]

Caíam do céu gotas de água tépida 
No desnudado da madrugada 
Nos corpos misturados ao amanhecer 
E assim se apagava o desenho dos corpos 
E da madrugada

sábado, outubro 10, 2020

Uma fé que quer Deus sem esforço

A Olívia é uma jovem mãe com duas filhas em idade de crescimento e andam na catequese. Tem olhos de quem Deus lhe diz alguma coisa. Tem expressões que me parecem do mesmo som das de Deus. Ressoa um pouco de Deus. Mas não vai à missa, esse acto relacional da comunidade a que chamamos, e bem, sacramento da eucaristia. Tem as suas ideias. Gosta de Deus. Quer que Ele esteja presente na sua vida, sobretudo agora que está doente. Mas não quer esforçar-se por Ele. 
Eu não posso afirmar que a Olívia não esteja a fazer um caminho de fé interior. Mas, às vezes, de tão interior que a fé se torna, ela passa ao plano do privado e esquece que a própria intimidade com Deus é uma relação de afecto que precisa de aprender-se no afecto com o outro ou os outros. Ela não quer esforçar-se ou não sabe que precisa de se esforçar por Deus. Como no namoro ou no matrimónio, quem ama precisa esforçar-se pelo amado. Ao menos para explorar o profundo desse sentimento relacional. Quem ama não pode contentar-se com o sentimento que nutre pelo amado. Precisa esforçar-se por ele! Torná-lo fecundo. 
É um pouco assim que eu vejo a fé de muitas outras olívias pelo mundo fora, que até são coerentes e autênticas num certo sentimento que têm com Deus, mas não se querem esforçar para além desse sentimento, fruto de uma sociedade sem compromisso, responsabilidade e sacrifício, uma sociedade líquida à qual basta a superficialidade das relações, mesmo que sejam verdadeiras. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Queria saber como posso ter fé"

quarta-feira, outubro 07, 2020

desejo [poema 286]

O que desejo tocar quando abro a mão 
É esse espaço que és tu 
Sem forma no fotograma dos tempos 
E que tento desenhar com um dedo no 
Chão 
 
Para que a terra seja a ponte com o céu 
E o ar o espaço que de ti se torna 
Meu 
 
Este desejo de te suster na respiração 
No acto de te inspirar 
e ficar 
 
na mão.

domingo, outubro 04, 2020

O retiro e a percepção de Deus

O que vai fazer ao retiro, senhor padre? Encontrar-me com Deus, respondi. Mas Deus não está em toda a parte? Está, respondi, intrigando-me aos poucos com as perguntas que surgiam, umas atrás das outras. Se está em toda a parte, não podia encontrar-se com Deus no meio das outras pessoas? Claro que podemos e devemos encontrar-nos com Deus no outro. Sendo sua imagem, o outro será sempre a melhor forma de criar Deus numa imagem que é a nossa tradução de Deus. Mas… e sem que eu tivesse tempo para o Mas, ele insistiu. Então porque se tem de afastar das pessoas quando faz um retiro? Ele esquecia que a gente não se afasta das pessoas quando se afasta fisicamente delas para um deserto a sós com Deus. Elas vão connosco, porque a nossa afectividade vai connosco para todo o lado e as pessoas que amamos transportamo-las no coração. Nunca saem desse local tão especial dentro de nós. 
O António não parava a sua inquietação, e a rua onde nos encontrámos naquela tarde, depois da missa onde informara as pessoas que ia estar uns dias em retiro, parecia um ringue de uma luta entre os dois e connosco próprios. Ou comigo. Porque na realidade, há pensamentos que só são reais em nós quando temos oportunidade de os dizer em palavras. 
Ó senhor padre, quando, de manhã, me levanto e vou para o meu emprego, Deus não fica na cama, pois não? Desta vez ria-se, porque queria dar um ar de graçola. Ó senhor António, hoje deu-lhe para se meter comigo. Se Deus está em toda a parte, olhe que esteve na cama consigo e sua esposa. Assim como está no carro onde se desloca e no seu local de trabalho. E acrescentei Mesmo que O não queira lá ou não dê conta da Sua presença. Não desarmou, porém. E o ruído, senhor padre? Não há Deus no ruído? Apanhou-me desprevenido, raios partam o António. E obrigou-me a desfazer a frase feita do Deus que se encontra no silêncio. Claro que Deus também está no ruído. 
Então porque vai para um retiro de silêncio, afastado das pessoas e das suas rotinas para se encontrar com Deus? A diferença, senhor António, não estão no lugar onde encontramos Deus, porque o encontramos em todo o lugar, mas na percepção que fazemos dessa presença. E quando paramos as nossas coisas do dia a dia, com as quais nos ocupamos ou sobreocupamos, há uma outra percepção ou pré-sentido de Deus. 
Num retiro, os sentidos apuram mais a Sua presença, porque nos gastamos só em procura-lo. É como se O olhássemos olhos nos olhos, o ouvíssemos na ausência de palavras, inalássemos o seu perfume, saboreássemos o seu gosto e o tocássemos com coração. No deserto do retiro aprofundam-se os sentidos de Deus e, portanto, a Sua presença. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O meu retiro"

quinta-feira, outubro 01, 2020

Às vezes infantilizamos o sacramento da penitência

Dizem por aí que as pessoas se confessam cada vez menos. Ou que há menos pessoas a confessar-se. Assim como também há cada vez menos padres a disponibilizar tempos e espaços de confissão. Há uma grande probabilidade de tudo isto ser verdade. E isso, de certo modo, fala da imaturidade da fé ou espiritualidade dos nossos cristãos. 
Contudo, também podemos falar daqueloutro grupo de pessoas que, dentro do grupo dos que ainda se confessam, o fazem para cumprir. E dizem coisas que já não lembram a ninguém. Não mato e não roubo, senhor padre. E fica-se por aí. Não gosto deste tipo de confissões como máquina de relatar pecados em série, que afinal são não pecados. Uma vez por ano tenho de confessar-me. Não interessa como. Não interessa porquê. Nem para quê. Interessa que cumpra. Se o padre sugere uma Celebração Penitencial, que é isso? Perguntam. Não faz sentido. O meu sentido é aquilo a que me habituei. E faz-lhes sentido que assim seja. 
E depois temos pessoas que se confessam a dizer o que não fizeram. Ou as virtudes que fizeram. Ou então resumem o seu pecado a pormenores que não entram dentro do coração ou da vida da própria pessoa. As pessoas nem fazem exame de consciência. Que é isso, senhor padre? Já para não referir o número de pessoas que se ajoelha e diz: Senhor padre, não sei o que confessar. Pergunte-me lá. Porque se habituaram a que o padre indicasse quais eram os seus pecados. Tipo pergunta-resposta, ou teste de cruzinhas. Às vezes infantilizamos o sacramento da penitência. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma confissão ou um abraço?"

terça-feira, setembro 29, 2020

o nome [poema 285]

Daqui houve um nome que se ouviu no eco 
Um nome que se diz em surdina às paredes 
Com as trepadeiras a entrar pelas janelas 
O vidro baço que as segurava entre madeira antiga 
Um nome que nem se sabia que nome era 
Mas dizia-se, em palavras que se sentiam 
Pulsar entre mãos de terra húmida e corações 
A sangrar. 
 
Eu sou aquele que sou

sábado, setembro 26, 2020

A sociedade irritada V

Hoje usamos as redes sociais porque, para além de ser moda, é o foco da nossa personalização ou identidade, o local onde, como os adolescentes em tempos de emancipação, se procura manifestar uma personalidade. Ou melhor, para se dizer que se existe. Como se isso fosse a personalidade de uma pessoa ou a identificasse! Por isso as redes sociais se tornaram o mundo das opiniões, dos comentadores de bancada, dos julgamentos sem juiz. Por isso se tornaram o álbum favorito das nossas pequenas demonstrações do que visitamos, do que vestimos, do que comemos, das pessoas que nos acompanham, do que fazemos… mesmo que isso diga apenas uma muito ínfima parte de quem somos. Mas o importante é mostrarmos que somos! Por isso somos cada vez mais virtuais e a nossa personalidade é cada vez mais bipolar. 
 

quinta-feira, setembro 24, 2020

as pedras [poema 284]

A paixão das pedras começou cedo 
Durou uma vida inteira para as ver crescer 
Para as colecionar 
E as percorrer 
 
Voltava do mar todas os dias com pedras 
Que eram búzios, caramujos e conchas 
E do campo voltava com mais pedras 
Que eram árvores, flores, e frutos 
E da cidade voltava com mais pedras 
Que eram casas, lojas e outras pessoas 
 
Para subir escadas

terça-feira, setembro 22, 2020

dois mundos num [poema 283]

Viver no desmentido do mundo 
No outro lado das coisas que parecem 
Onde a imaginação não tem limite 
E nada se perde a não ser o efémero 
 
Tenho dó de mim pela distância 
No meu mundo há reservas para ti 
E abraços para te acolherem adentro 
Os dois mundos num só viver 
Onde um começa o outro é.

sexta-feira, setembro 18, 2020

A oração como saída de nós mesmos

Quando ela me disse que não ouvia Deus na oração, que não lhe eram atendidos os pedidos que fazia, que não costumava sentir nada de especial na oração, senti-me obrigado a explicar-lhe onde estava o seu pequeno erro na forma como orava. 
A verdadeira oração vai ao encontro. Não é um monólogo. Não são palavras sem sentido. Mesmo quando são repetições ou fórmulas. A verdadeira oração é relação. Abertura a Deus. A Oração é encontro com o outro, um diálogo aberto do homem com o Tu absoluto. Por isso não podemos fazer dela apenas um recurso psicológico para resolver os nossos problemas, ou um recurso narcisista para nos sentirmos bem. Por isso não podemos fazer dela o constante pedido de favores ou uma busca desesperada de nos sentirmos bem. A verdadeira oração faz-nos sair de nós mesmos e do nosso egocentrismo. Ela deveria ser espaço de relação, de saída e de abandono na direcção de Deus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta é a minha arma"

terça-feira, setembro 15, 2020

casa [poema 282]

Trazer a casa às costas é viver com tudo em nós 
Carregar o fardo dos espinhos com as sementeiras 
E os prédios ao colo no regaço das matinas 
Trazer para dentro o nosso eco e as vozes 
Que gritámos para nos soltarem tanto peso 
E não fomos ouvidos senão por dentro da voz 
Esse espaço da casa que quer dizer a nossa habitação 
Às costas

sábado, setembro 12, 2020

O trabalho das missas

O meu trabalho não são as missas. Mas é difícil não pensar que o meu trabalho são as missas. Porque as pessoas pensam que os padres só trabalham quando estão a celebrar missas. E nós pensamos que o nosso trabalho anda todo à volta das missas. 
Elas são, como já repeti até à saciedade, tanto para os outros como para mim próprio, o centro, o cume, o núcleo e demais palavras que signifiquem esse ponto nevrálgico da vida do cristão. Mas a vida é sempre maior, mais importante, mais acima que qualquer celebração, por mais nevrálgica que seja. 
Gostava de me entender de outro modo nas missas que celebro, muitas vezes como consumo que se faz parecido ao consumo das refeições diárias. Comer para viver. Gosto da expressão. Mas parece mais uma coisa que se faz para o físico e não para o mais íntimo de nós, que é o sentido da vida. E não sei se as missas alimentam o sentido da missa ou o consumo delas. 
Esta pandemia tem-me dado tanto que pensar! 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As missas ou missinhas"

terça-feira, setembro 08, 2020

iohannes [poema 281]

Calças os pés de terra batida
E tapas o corpo com a terra mãe
No deserto

Sabes o seu nome
Sabes quem é
Mas não sabes por onde vem

Joelho no chão a traçar o caminho
De quem sabes o nome
E não sabes onde,
Mas é

e vem

sexta-feira, setembro 04, 2020

Os abusos da caridade

Ligavam e pediam. E a Manuela, minha paroquiana, dava. Ligavam e pediam. E a Manuela dava. Continuavam a ligar e a pedir, e a Manuela dava, mesmo sem o marido saber. Mesmo sem conhecer muito bem a instituição do outro lado da linha do telefone. Mas podia dar. E dava. Aprendera que a caridade é dar sem saber a quem. Mas, como nem tudo parece o que é, ou é o que parece, no último ano, tornaram a ligar, e a Manuela, porque o seu marido acabara de falecer, porque achava que não era oportuno, porque estava sem vontade anímica para nada, explicou humildemente que o momento não era muito bom, que compreendesse, pois o marido falecera há pouco, que talvez noutra ocasião. E então ouviu do outro lado da linha algo que lhe perfurou o coração através dos ouvidos. Porque é que me está a mentir? A senhora está a mentir, só para não dar. Padre, foi como se tivesse bebido água ardente a pensar que era água natural. Nem consegui desligar o telefone. Foi a menina do outro lado que o desligou. A menina também não precisava dizer mais nada. Agora a Manuela percebera tudo. Finalmente. Há pedidos de caridade estranhos. Esquisitos. Ou melhor, fora da caridade. Verdadeiros abusos para quem vive a caridade e da verdadeira caridade. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Pobres de rua"

quarta-feira, setembro 02, 2020

esconderijo [poema 280]

Há duas coisas numa vida escondida:
O lado de quem se esconde e o outro lado
Que são os outros de quem se esconde.

Há porém uma outra face, uma vida,
mais esquecida que escondida,
No meio desse apagamento em si,
De quem nunca se consegue esconder
Porque vive no esconderijo
Que é cada um que se esconde

sábado, agosto 29, 2020

Agulhas, camelos e ricos

O padre relia e actualizava, na homilia, aquela passagem que fala de agulhas, camelos e ricos. Com certeza se recordam de Jesus ter dito que era mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. O padre ufanava-se para esclarecer a passagem. Entusiasmado, esbracejava. Agarrava-se ao micro. A homilia estava ao rubro quando, por engano, acabou dizendo que era mais fácil entrar uma agulha pelo fundo do camelo, do que um rico. Toda a assembleia sorriu sem ruído. Ou seja, para dentro. Mas nisto, um senhor lá do meio da assembleia, um daqueles senhores bem-dispostos, interessados e castiços, exclamou. Com jeitinho, até é capaz! E aí toda a gente se escangalhou de vez. Até o padre.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "De rabo para o ar"

terça-feira, agosto 25, 2020

és [poema 279]

És a forma visível de te dizeres
A mão que me adentra para te buscar
És a verdadeira encarnação
O rosto de se viver
dentro de mim
em coração

sábado, agosto 22, 2020

Por que motivo, na tua opinião, alguns crentes ainda não regressaram à Eucaristia depois da quarentena?

Aqui vão os resultados das últimas sondagens, que perguntavam: "Na tua opinião, o modo como a Igreja tem procurado ser Igreja nestes tempos de contingência tem sido..." e "Na tua opinião, como tem a Igreja Católica portuguesa lidado com a pandemia do convid-19 em termos sanitários?". 
Nestes tempos de contingências várias, os resultados dão que pensar. E se parece que a Igreja tem lidado muito bem com esta pandemia em termos sanitários, provavelmente não se pode dizer o mesmo no geral.


Continuamos na mesma linha de sondagens, mas desta vez tentando reflectir sobre o regresso dos crentes à Eucaristia.
Por isso perguntamos no sidebar: Por que motivo, na tua opinião, alguns crentes ainda não regressaram à Eucaristia depois da quarentena?

quinta-feira, agosto 20, 2020

Os sucessos pastorais não são nossos

A vida de um padre não depende dos sucessos pastorais ou apostólicos. Não depende do que fazemos nem do que conseguimos alcançar com o que fazemos. Não depende de momentos entusiastas em que a nossa existência e missão parecem fazer sentido. A vida de um padre depende exclusivamente de Deus. 
O padre não é padre porque seja perfeito. Ou porque seja impecável. Ou porque possua muitas capacidades. Ou ainda porque seja místico ou santo. O padre é padre porque um dia Deus quis que ele fosse padre. Que deixasse Deus actuar de uma forma especial através dele. Por isso a vida de um padre também não se deve deter nas fragilidades que o apoquentam, mas na força de Deus. Dizia S. Paulo que nas fragilidades se fazia forte. Dizia que era através das suas fragilidades que a força de Deus se manifestava. Os frutos do trabalho do apóstolo eram os frutos do trabalho de Deus. 
Os frutos, os sucessos, as vitórias da nossa missão apostólica, são os passos que Deus vai dando através de nós.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As flores que valem vidas"

sexta-feira, agosto 14, 2020

os filhos de bartimeu [poema 278]

Vejo as pessoas como árvores a andar

Poes as mãos em mim, deixo-as entrar
Marcas-me com a saliva, nos olhos,
Um carimbo terno para me trespassar.

Vejo pouco

Vejo tudo a andar,
Paredes a desmoronar,
Escadas a saltar
Tudo a correr
sem parar

Insistes com as mãos e a saliva.

Com muita pena, com muita dor
Continuo a ver as pessoas apressadas
Como árvores a andar
Paradas.

segunda-feira, agosto 10, 2020

Deus ama-nos, não porque sejamos bons, mas porque Ele é bom.

O que me impede de ter um olhar misericordioso por mim próprio, quando o próprio Deus me ama como eu sou? Não que isso justifique as minhas opções erradas. Os pecados. Os erros. As costas voltadas. As queixas desmedidas. Mas é verdade que Deus me ama muito mais do que eu me amo. Deus ama-me, não por eu ser bom, que não sou, mas porque Ele é bom. Deus ama cada um de nós, não por sermos bons, mas porque Ele é bom. Ele ama-me como eu sou e não como eu gostaria de ser. Isto parece redutor, e parece que põe tudo em Deus. O Centro. E, ao mesmo tempo, retira toda a nossa responsabilidade. Não é verdade. Nós somos responsáveis. Mas o centro é mesmo Ele. Por isso Jesus falava em perdoar setenta vezes sete vezes, que é o mesmo que pronunciar o número infinitamente. Porque quem ama, não ama com medidas. Ama com esse número que é muito mais que setenta vezes sete vezes. O número que não cabe na numeração, tal como a conhecemos. Por isso ama e perdoa. Porque só sabe amar quem souber perdoar. Só ama de verdade quem consegue aceitar a diferença que o outro é. A diferença que, no outro, pode até ser, dor. Por isso deu a vida por todos. Não deu a vida só por alguns. Deus a vida por bons e maus, por justos e injustos, por judeus e gregos, por escravos e homens livres. Por mim. Por ti. Por todos nós. E nunca é demais repetir isto. Deus ama-nos, não porque sejamos bons, mas porque Ele é bom.

A PROPÓSITO OU A DESPOPÓSITO: "A estatura do verdadeiro amor"

sexta-feira, agosto 07, 2020

lugar das pedras [poema 277]

No lugar das pedras há um riacho
Que dá de beber ao mar.

Há sempre um lugar para morar
Onde há pedras que parecem viver
Para se gastar.

Também no mar há lugar para pedras
que parecem andar

Onde houver pedras haverá sempre um lugar
Para além delas,
e se habitar

terça-feira, agosto 04, 2020

mar adentro [poema 276]

Não sei que me deu para adormecer a olhar o mar
Ali fiquei, de olhos abertos, parado no tempo, entre as ondas
Que iam e vinham a mim, sem me acordar

Havia rochas por perto, rudes e gastas de tanto o mar tentar
Estavam entre mim e o meu olhar,
O que me fazia parar nas ondas
A esperar
Que uma delas viesse e não voltasse
E fosses tu por mim
A sangrar

domingo, agosto 02, 2020

Porque Deus não intervém

Mora longe, mas a distância é encurtada, de vez em quando, pelo telefone. Perguntava-lhe como estava e respondia que estava bem, mas que estava cansada e que, na sua fé, se perguntava porque Deus não intervinha para parar esta maldita pandemia, como lhe chamou. Eu sei que a pergunta lhe saiu do cansaço. Todos nós, mais ou menos desconfinados, continuamos desconfiados e cansados de viver nesta desconfiança que nos obriga a afastar-nos uns dos outros e dos afectos. No entanto, como dizia Anselmo Borges, numa resposta a esta pergunta e em resposta à sociedade na qual vivemos, “não se pode querer a autonomia das realidades terrestres e cósmicas e ao mesmo tempo um Deus intervencionista, nem é compaginável querer a liberdade e ao mesmo tempo um Deus manipulador”. 
Vivemos num mundo de contraditórios, onde se quer a liberdade de fazer como dá na real gana, sem que ninguém interfira com as nossas opções, mas depois queremos a todo o custo que todas as entidades que nos são superiores, a começar pelas divinas e a acabar nas terrenas, nos resolvam os problemas.
Eu também desejava que Deus interviesse, não tanto para nos resolver o problema, mas sobretudo para nos ajudar a entender como viver deste modo e como descobrir o rumo deste viver.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Agua benta"

sexta-feira, julho 31, 2020

folhas [poema 275]

As folhas não caem sem voar
Não adormecem sem se deitar
Encontram-se com o destino
Embaladas pelo vento
Como um menino
Aguardando o tempo.

quarta-feira, julho 29, 2020

o apagamento [poema 274]

Imagino que há um ditado que fala de quem vive em mim
No apagamento de quem constrói para fora do que sou

Sei que o mundo se apaga quando nós queremos ser
No íntimo da razão de viver como somos

Sei que não vivemos sozinhos quando apagamos os outros
Eles serão sempre os outros que nós criámos em nós

Imagino que um dia o meu apagamento será só meu
No mundo dos outros

domingo, julho 26, 2020

Abandono em tempos de pandemia

No país que mora ao lado do nosso, Espanha, segundo um estudo que me pareceu fidedigno, o número de católicos diminuiu cinco pontos percentuais em dois meses, de abril a junho, isto é, em dois meses de pandemia e confinamento. É uma observação um pouco estranha, na medida em que dois meses não são dois anos, e as pessoas não mudam o seu entendimento da vida e da fé em tão pouco tempo. Ou se calhar mudam. Não sei. O que sei é que a assiduidade à eucaristia, sobretudo nas paróquias urbanas, tem diminuído. Pelo menos parece-me, do que vou ouvindo e vendo. 
Jesus não falou de templos ou igrejas, é verdade. Também não organizou propriamente uma religião. A fé, acima de tudo, vive-se. Mas também se alimenta nas celebrações. Precisa de se alimentar. Estes tempos frágeis e de abandono dos templos poderiam ter o lado positivo de se religar a fé ao Evangelho, mais que aos sacramentos. Temo, porém, que, dentro da sociedade líquida, pluralista e pos-secularista em que vivemos, o abandono seja mais a consequência do modo social de ver a fé e a igreja ou a religião. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As nossas paróquias estão a morrer"

sexta-feira, julho 24, 2020

acoli [poema 273]

Estou longe do mundo
Longe do lugar onde as coisas se tornam coisas
E passam do ser ao que são

É uma luz completamente diferente
Eu diria que é o lugar de quem vive à espera
Esse espaço onde passa a gente
Por passar

Estou por perto, mas distante
Do lugar das coisas
Onde o mundo parece mundo
Onde o que é
acontece

quarta-feira, julho 22, 2020

nós [poema 272]

Quando penso que um dia hei-de ver o meu rosto
Cravado na imagem que tenho do teu amor
Há em mim uma permanência de um não sei dizer
Uma força do tempo que imagino sempre a passar
Mesmo quando tudo parece o mesmo segundo
E o mesmo caminhar

domingo, julho 19, 2020

Padres ou cabeleireiros

A alegria daqueles idosos que me receberam no lar para a eucaristia não tem como contar-se. A directora técnica lembrara-se de me propor, com todos os cuidados e mais algum, que passasse por lá a rezar com eles, a celebrar com eles. Estavam radiantes e, apesar de usar máscara e viseira, protecção dos sapatos, álcool gel constante, e de nunca me ter aproximado deles, também eu lhes senti o pulsar. Por isso partilhei esse sentimento com uma pessoa responsável de outro lar nas minhas comunidades, dispondo-me a fazer o mesmo, caso achassem oportuno e assegurassem os cuidados e normas imprescindíveis. 
Assim que essa pessoa teve oportunidade de conversar com alguns utentes, e como quem não quer a coisa, contou que o senhor padre fora celebrar missa a um outro lar e perguntava se não seria boa ideia ele vir cá também. E a resposta do senhor José não se fez esperar. O melhor mesmo era vir cá a cabeleireira!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Américo faltou à missa"

sexta-feira, julho 17, 2020

completude [poema 271]

Poderei completar o que me pedes
Amontoar pedras e subir-lhes degrau a degrau
Poderei sorrir-te do alto da escadaria
Mesmo que a chuva me molhe os calcanhares
E não veja o tempo para descer de novo a mim
Poderei abraçar-te como me abraço a sós
Porque onde estiver aí completarei quem és

quarta-feira, julho 15, 2020

vens [poema 270]

Sonho contigo nas noites que não passam
Escondido nos lençóis vazios e muito brancos
Sonho que és a minha história real, que vens
Pelo que desejo subconsciente sem controlar
Na verdade mais simples de me encontrar

domingo, julho 12, 2020

O ministério sacerdotal não é um privilégio

Estava ordenado há pouco tempo e fora enviado pelo seu bispo a estudar em Roma. Numa daquelas universidades famosas no meio eclesiástico. Encontraram-lhe alojamento num típico colégio de estudantes que eram, ao mesmo tempo, sacerdotes. Independentemente das virtudes deste jovem sacerdote, oriundo de um país de missão ad gentes e que não conheço nem quero ajuizar, contaram-me que, como no colégio se organizavam por grupos para executar algumas tarefas, e que lhe tocara levantar, com outros, as mesas do almoço e jantar de uma semana em cada mês, este sacerdote se dirigira ao director do colégio para lhe manifestar que não faria aquele serviço, porque, e cito: “isso colocava em causa a sua dignidade sacerdotal”. Claro que, à distância da realidade e das palavras no tom em que foram usadas, facilmente abrimos a mão para apontar com o dedo indicador. Mas depois descobrimos os restantes dedos, o médio, o anelar e o mínimo, a apontar para nós. Como de facto. 
Parece-me muito fácil que nós, os consagrados, por nos termos entregue a Deus de uma forma total, ou quase total, caiamos na tentação de pensar que isso nos traz uma dignidade que Deus não concede aos outros. Ou que nos devem respeitar, não pelo que somos e porque somos, mas pela dignidade do nosso múnus sacerdotal. Ou, num extremismo despropositado, chegar a pensar que a Igreja, no seu conjunto e no povo que é de Deus, nos tem de agradecer porque já nos entregámos a Deus. Que tolice! 
O ministério sacerdotal não é um privilégio. É uma forma de vida e missão. É uma vocação para os outros e não para nós. É um serviço. Nós é que temos de agradecer a quem nos dá a possibilidade de viver essa missão.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quer vir jantar connosco?"

quinta-feira, julho 09, 2020

Deus no quintal

A catequista explicava que Deus estava em todo o lado. Que estava também no coração de cada um deles. Que estava por todo o lado. Nisto, o Francisco, que não era o papa mas tinha o nome dele, perguntou se também estava no quintal do avô. E a catequista, admirada pelo interesse do seu catequisando, respondeu que sim. Claro que estava. Também estava no quintal do avô do Francisco. Mas o petiz, vejam lá tamanha astúcia, não deixou alongar a conversa e arrematou. Mas o meu avô nem tem quintal, como pode Deus lá estar?

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Falar de Deus"

segunda-feira, julho 06, 2020

ela outra vez [poema 269]

Afinal ela não tem um avião
Tem um papel que parece um avião
Dobrada nos joelhos, na vida
da mão

Tem um papel para encontrar alguém
No coração

sexta-feira, julho 03, 2020

ela [poema 268]

O meu prato não tem fundo
Não tem o terminar

O copo deitado, a água na fonte
A esperar

O meu sonho é um dia poder ser gente
Como as outras
E amar

terça-feira, junho 30, 2020

A desculpa do vírus

A celebração do último domingo foi ao ar livre, porque se tratava de uma data importante para a comunidade. Quando, a meio da tarde, fui verificar se estava tudo pronto, passei por uma esplanada de café com mesas repletas. Cheias. Pessoas quase ao molho de volta de uma mesa. Mesmo de famílias diferentes. Amigos de esplanada. Meti conversa com algumas dessas pessoas que não tinham máscara colocada. Foi o assunto da conversa. Eu com máscara e eles sem máscara, mas descansados porque estavam na rua, apesar de todos já terem passado os sessenta e muitos ou mais. E ali ficaram, pelo menos que eu desse conta, umas duas horas. Não vem mal ao mundo, como se costuma dizer. 
Porém, ao entardecer, um dos senhores que ficou a ajudar a arrumar as coisas no final da missa, contou-me, com um certo desconforto, que fora tomar café no local onde está a referida esplanada, e que ouvira umas pessoas dizerem que não iam à missa, pois era arriscado ir. Ficara perplexo porque, dizia, as pessoas que falaram estavam numa esplanada sem cumprir cuidados de distância, uso de máscara e desinfecção das mãos, mas achavam arriscado ir à missa, que também era ao ar livre, mas onde ninguém podia estar sem máscara colocada, estavam todos a distâncias adequadas, não conversavam uns com os outros e até tinham desinfectado as mãos. 
E depois a culpa é do vírus. Ou a desculpa. Algumas vezes consciente e coerente, é verdade. Mas muitas outras vezes inconsistente, incoerente e, pior ainda, inconsciente.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Agora só vão as beatas"

domingo, junho 28, 2020

vivo a voar [poema 267]

Vivo até onde me leva o coração
Nessa extensão que desconheço
Entre mim e onde hei-de chegar
Um caminho que não tem preço
Entre a terra e o céu,
Entre a lágrima e o mar

Vivo, porque me leva na ponta dos dedos,
A voar

quinta-feira, junho 25, 2020

A Luiza está no céu a enfeitar igrejas

A Luiza já está no céu. Partiu esta manhã. Tinha um tumor que se alastrou, em pouco tempo, pela vida inteira. Ou por inteiro. Teve início num pequenino local do corpo e depressa arrastou a vida da Luiza. 
Há três semanas foi informada que iria para paliativos. Falámos, nessa ocasião, por videoconferência. Estava serena. Muito consciente, mas segura da vontade de Deus. Pedira no IPO para falar comigo. As lágrimas caíram sem força. Sorrimos e falámos abertamente e com naturalidade sobre a realidade. Fiquei rendido perante tudo o que falámos e perante a postura de fé, de temor a Deus e de realismo da Luiza, uma das minhas paroquianas que assumia com facilidade serviços paroquiais. 
A única coisa que pedira aos médicos fora uma visita rápida a casa e aos seus. Acederam-lhe ao pedido e, passada uma semana, mais coisa menos coisa, estive com ela, em sua casa, com o Senhor que lhe dei a comungar. Estavam os filhos. E o marido. Quando lhe manifestei a minha alegria por ver ali os filhos, respondeu que se tinham ido despedir dela. Assim, friamente. O marido começou a chorar e dizia que preferia partir em vez dela, ao que ela reclamou, dizendo. Tu vais na tua vez que eu vou na minha. Inclinei-me. De verdade que me inclinei sobre tamanha fé. Só faltou ajoelhar-me diante dela. Pensei-o, mas achei despropositado com a família ali ao pé. Mas disse-lhe que admirava a sua tão grande fé. Que Deus já lhe tinha reservado um lugar no céu. E que eu me sentia um privilegiado por ter tido a oportunidade de privar com ela. 
Quando saí de casa, saí com a certeza de que seria a última vez. Falámos mais algumas vezes ao telefone. Ontem mesmo enviara-lhe ao final da tarde, depois da missa que celebrara, uma pequena sms a dizer que rezara por ela e que tinha pedido a Deus que lhe segurasse nas mãos quando estivesse a ser mais difícil. As pessoas da paróquia vão contando coisas bonitas. Que preparou tudo para que tratassem do irmão que vive sozinho e precisa de cuidados. Que estava nas mãos de Deus. Que a esperava muita coisa bonita no céu. A uma comadre que insistia com ela que ainda haviam de ir as duas enfeitar e cuidar a Igreja matriz, ela respondeu que gostava muito, mas que, de certeza que no céu também ia ter muitas igrejas e que Deus lhe daria alguma para cuidar e enfeitar. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta é para ti, Diana, parte I"

terça-feira, junho 23, 2020

entrada e saída [poema 266]

Quando entras, sinto o calor das tuas chagas
ainda a sangrar

O meu peito descansa no teu
Depois de sentir
o teu palpitar

Mas o sangue não para
de caminhar.

Vai desaguando, vai-me levando
a alastrar
O amor que entrou,
sem portas,
Para te amar

sábado, junho 20, 2020

A Igreja do relacional

O artigo era duro de ler. Tentei diminuir-lhe o tamanho no coração. Falava de alguns padres que, por desespero, tinham perdido a força de viver. Dava exemplos concretos, usava nomes concretos, tratava números e dados concretos. Dizia que a vida religiosa não dava superpoderes aos padres e que em muitos casos a fé não era forte o suficiente para superar momentos difíceis. Excesso de trabalho, falta de lazer, perda de motivação. O grau de exigência enorme. Espera-se que o padre seja, no mínimo, modelo de virtude e santidade. Qualquer deslize, por menor, que seja, torna-se alvo da multidão que vive para apontar dez dedos aos outros. Não interessa se estão tristes, cansados ou doentes, pelos visto, têm de estar sempre prontos e com sorrisos rasgados. 
Os padres não deviam estar sozinhos. Pelo menos não deviam fazer a vida sozinhos. O comum das pessoas tem, habitualmente, o lado da vida mais profissional e o lado mais relacional. Quando um comum cristão chega a casa do seu emprego, desliga o interruptor do emprego e liga o interruptor do relacional mais próximo. Nós, padres, chegamos a casa, e mantemos o interruptor do profissional sem relacional. Somos profissionais do sagrado sem segundos para o não ser. Falta-nos sermos ou sentirmo-nos comuns cristãos. Não me parece que baste o alimento espiritual dos padres. Na minha modesta opinião, é necessário reorganizarmo-nos como Igreja. Enquanto a vida das comunidades se centrar nos padres, eles não serão apenas mais um membro da comunidade, ainda que com grandes responsabilidades. Serão sempre o foco da comunidade. O alvo. Por isso as pessoas quando falam da comunidade falam dele, pensam nele, apontam para ele. Por isso gosto pouco desta Igreja que deposita no clero a essência do caminho da fé, mesmo que seja feito em comunidade. E sonho com uma Igreja que abraça todos em caminho. Uma verdadeira comunidade onde o relacional esteja acima do doutrinal, do funcional, e até do sacramental. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre é o 'tem de'"

terça-feira, junho 16, 2020

a verdade anda cada vez mais longe da verdade

Uma das minhas paroquianas é uma assídua frequentadora da net, sobretudo redes sociais, na procura constante por respostas de fé e respostas espirituais. De vez em quando partilha comigo, num gesto muito amigo, interessado e verdadeiramente generoso. O problema é que 80% dessas partilhas, no que se refere a artigos de opinião, são partilhas sem triagens, seja no que se refere a fake-news, seja no que se refere à influência ou ideologia que está por detrás dos textos. E, infelizmente, a presença dos ultra-conservadores na internet, sobretudo nas redes sociais, é muito prolífera. Como diria o outro, são poucos mas gritam muito alto. Talvez porque necessitem de se fazer ouvir. Mas é só um talvez. 
O último texto que partilhou comigo, ainda há pouco, era de um site que tem por nome algo do género “Missa Tridentina”. Creio que ela não sabe a que se refere a missa tridentina ou o Concílio de Trento. Nem sabe como distinguir ideologias no seio da Igreja. Por isso não a recrimino. Procuro ajudá-la a fazer as interpretações, distâncias, entendimentos e pronunciamentos devidos. A saber ler para além das linhas ou das palavras. Nas entrelinhas. Com isenção suficiente para formar uma opinião ou opção sólida. Mas nisto, lembrei tantos cristãos que, diariamente, recebem conteúdos, mesmo religiosos, mesmo cristãos, mesmo católicos, sem saber ler ou sem ter o código de leitura adequado para os ler. E assim a verdade anda cada vez mais longe da verdade!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Amizades especiais"

domingo, junho 14, 2020

o gesto [poema 265]

Ainda não sei abraçar o gesto
Fazer o sinal da cruz em cima dele
A lâmina passa e é cortante,
O sangue debruça-se sobre mim
Não sei mesmo como nasce o gesto
Como se tece ou como cresce.
Passo um lápis na tua memória
O gesto que se escreve em dois traços
O gesto que desenha um abraço
A nossa cruz

quinta-feira, junho 11, 2020

A importância da eucaristia

Não sei muito bem o que dizer de pessoas que consomem missas. Que vão a todas as que conseguem, mesmo que depois a sua vida ande longe delas. A uma distância de coração. Também não sei que dizer das pessoas que vão quando lhes ocorre, quase como quando lhes apetece sair para tomar um café, um chá ou um gelado. Nem sei que dizer daqueloutras que tanto dá irem como não irem, mas que vão porque se habituaram a fazer do domingo um dia em que vestem uma roupa melhorada e vão à missa. 
Não sei catalogar a fé, e não devo catalogá-la. Muito menos as pessoas. Mas estes tempos têm-me feito reflectir nestas coisas. Elas veem a mim, junto com as pessoas. Não há como fazer de conta que não penso nisto e não me inquieta. É que, ainda por cima, estes tempos de confinamento sem missas comunitárias presenciais, trouxeram à tona algumas debilidades. Sei que muita gente gastou muito mais tempo a rezar do que habitualmente fazia. Sei que muita gente buscou Deus até com mais intensidade e empenho. Sei que muita gente esteve diante de um ecran a ver missas. Mas agora que voltamos a ter a oportunidade de celebrar juntos, de celebrar em comunidade, verifica-se que uma grande percentagem dos nossos paroquianos ainda anda um pouco à deriva. Há quem faça tudo para ir à missa. Mas também há quem não faça nada. Há quem tenha receios reais de ir à missa, mas não se evite de ir ao café ou de estar em algum aglomerado de pessoas, mesmo sem máscaras. E as nossas igrejas cumprem mais regras de segurança que a maioria dos outros espaços sociais. Há quem faça uma vida diária quase normal, mas não tenha qualquer preocupação em ir à missa. Como se ela fosse apenas algo secundário ou um passatempo. 
Sabem o que me parece? Das duas uma. Ou se tornou mais fácil assistir à missa que celebrá-la, ou a eucaristia não tem importância suficiente na vida das pessoas.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Queres ficar à missa?"

segunda-feira, junho 08, 2020

máscara [poema 264]

Tiraram-te o sorriso
Que eras tu por inteiro.

Até nos olhos se vê
O que se perdeu primeiro...

E o que passa
É a vida que anda
sem se mover

E o que doi
É a dor que mata
sem se morrer.

sábado, junho 06, 2020

corrida [poema 263]

Gosto de observar o tempo das coisas
Vê-lo a passar,
Vê-las a correr
Voraz e frenéticamente, em busca
Do tempo que passa
ao vê-las correr

quarta-feira, junho 03, 2020

Onde esteve a Igreja nestes tempos

A Clara é uma senhora de meia idade. Diz-me que a sua fé também anda na meia idade. Ela quer amadurecer a sua fé, mas acha que ainda tem mais de metade do caminho por andar. E nestes tempos, disse-me, perdeu-se um pouco, porque buscava e o que encontrava, sobretudo na net, era quase sempre de fraca profundidade. Ela não se contentava com mais do mesmo, ou com abordagens que não iam ao amago do essencial. Viu muita coisa que, na sua opinião, só infantilizava ainda mais os crentes. Por isso me fez a pergunta sobre onde estivera a verdadeira Igreja nestes tempos de confinamento. 
A minha resposta estava na ponta da língua, porque muito reflectida e meditada por estes dias. A Igreja destes tempos esteve e continua a estar no coração de cada crente. Assim como Deus. Ele está por todo o lado, é certo. Está nas nossas igrejas que estiveram fechadas. Está na rua e nos acontecimentos. Está nas casas das pessoas. Até está nas muitas manifestações que ela quase chamou de medíocres. Mas onde Ele quer estar deveras é no coração de cada um. E é aí que a Igreja começa por se construir, por ganhar raízes, por se nutrir. A comunidade cristã é imprescindível para o itinerário de fé. Mas a fé é uma razão do nosso interior. Por isso a verdadeira Igreja está onde sempre tem estado, no coração de cada crente. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja da senhora Alcinda"

segunda-feira, junho 01, 2020

o meu banco de jardim [poema 262]

Há um banco de jardim
Com uma porta, uma cama e uma mesa
De cetim

Nunca sai do lugar onde nasceu
Na sombra dos dias, coberto por um sombreiro
no patamar do céu

Tem as letras do meu nome
A marca do que é meu

Tem o lugar principal do jardim
É a princesa com quem vou casar
É a casa onde moro
Em mim

quinta-feira, maio 28, 2020

Agora só vão as beatas

Como referia Rino Fisichella há uns dias, a fé precisa dos sentidos. O homem é feito para o relacionamento e isto é ainda mais verdadeiro para a dimensão da fé cristã. Obviamente que vivemos uma época adversa a esta realidade e somos obrigados a viver confinados e a guardar distâncias. Contudo, a distância não pode ser o futuro da existência pessoal ou da fé. 
Falo destas coisas porque ouvi dois paroquianos que me fizeram pensar. Falaram comigo em horas e contextos diferentes e disseram-me quase o mesmo, também de maneira diferente, perante o retomar previsto das celebrações comunitárias. O primeiro, homem, com alguma formação, humana e cristã, depois de ter lido as muitas orientações e regras a cuidar, disse que era melhor ficar em casa e assistir à missa da televisão. O segundo paroquiano era uma mulher, talvez com menos formação, mas pessoa de missa dominical. Em amena cavaqueira foi dizendo que agora quem ia à missa eram só as beatas. E que ela não ia, pois preferia ver a missa em casa. 
Claro que entendo a reação própria do receio. Eu também tenho os meus receios. Mas ouvir estas coisas ditas com tanta naturalidade e facilidade, só veio reforçar a ideia que tenho vindo a ter de que tanta multiplicação de missas nos meios de comunicação social e virtual pode ter confundido as pessoas. Numa sociedade que já privilegiava, por si mesma, o individualismo, pode ter-se reforçado a ideia de que a nossa fé pode ser uma coisa privada, sem comunidade, uma vivência privada, sem relacção.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As missas ou missinhas"

terça-feira, maio 26, 2020

Rezar com eles

Ontem à noite descansei do meu confinamento para ir a um bairro da paróquia rezar com alguns paroquianos. Soube, por uma das senhoras que ali habita, que todos os dias deste mês de maio, às vinte e uma horas, uma das vizinhas colocava uma imagem de Nossa Senhora de Fátima num pequeno patamar de um parque que o bairro tem, com vela acesa, uma jarra com flores e um terço ao pescoço. Os vizinhos vão chegando e, com as devidas distâncias, rezam o terço em conjunto. Sei que há mais bairros da paróquia a fazê-lo, de modo muito parecido mas em outros horários. Ontem estavam umas dez pessoas. Mais eu, que cheguei sem avisar. Foi uma alegria. Rezei com eles. Ainda me pediram para presidir. Não. Tinha ido rezar com eles. E assim foi. Muito bonita a noite com as luzes dos candeeiros e uma estrela no céu a cintilar. Foi retemperador. 
Afinal, também há e houve coisas lindas a nascer nestes tempos de pandemia, mesmo em termos de fé. Estes grupos que, por si mesmo, se reuniram a rezar, são dom de Deus que prova que a Igreja é muito mais do que aquilo a que estamos habituados.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta é a minha arma"

domingo, maio 24, 2020

Subir ao céu em corpo e alma

A Joana, que é catequista, comentava que a Ascenção era Jesus a subir ao céu em corpo e alma. Acenei na sua direcção e fiz do meu dedo indicador um metrónomo, de um lado para o outro, a dizer que não. Ficou intrigada e curiosa ao mesmo tempo e, por isso, pediu-me que lhe explicasse o que queria dizer com o meu dedo a acenar. Aprendera assim e era assim que ensinava aos meninos. 
Comecei por lhe dizer que não fazia mal em explicar assim aos meninos, porque para podermos falar de Deus, que não vemos, temos de usar a nossa linguagem e aquilo que conhecemos. 
No entanto, há que dizer que esta festa tem sido mal entendida por muita gente e, nesse sentido, alguns teólogos nem lhe apreciam o nome. Dizem que o termo “ascensão” não é o mais correcto porque evoca a categoria de espaço físico. 
Jesus ressuscitado não subiu nem podia subir ao céu no sentido literal da palavra. Aliás, a sua corporeidade já não era como antes de ter morrido. Não era um fantasma, mas o seu corpo não tinha explicação. Por isso é que os seus não o reconheceram logo, como referem os evangelhos. Não poderia, portanto, ter subido em corpo para o céu. Além disso, Deus também não vive num “espaço” físico. O céu, mais que um “lugar”, é um “estado”, ou seja, uma forma de estar. Ora, para que a subida de Jesus ao céu não se confunda com a imagem de um astronauta ou um balão de hélio que sobe e desaparece no ar, estes teólogos preferem utilizar termos como “exaltação” ou “glorificação”. E têm razão! 
A Ascensão, na verdade, é a glorificação plena de Jesus Cristo. E se percebemos que o céu não é um espaço físico, mas é estar com Deus e em Deus, então percebemos melhor que, afinal, Jesus não nos abandonou. Continua connosco, ao nosso lado. Apenas nos precedeu para a glória de estar com o Pai e no Pai. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O céu e o inferno, parte I"

quinta-feira, maio 21, 2020

prantear [poema 261]

As carpideiras deixaram rastos
Nas grandes catedrais de betão
Entre os caminhos de terra gastos
Entre destroços do coração

Ó mulheres, que vida tão triste tendes
Chorar pelo que não é vosso, mas vos toca
Passa entre as mãos e os vossos terços
Que passais a correr,  de boca em boca

Levai vossos cântaros de água daqui
Para longe guiai essa dor que bramis
Lavai nos tanques a roupa que escureceis
Deixai que o luto mate quem vós matais

entre papeis

terça-feira, maio 19, 2020

asceta [poema 260]

Os homens que se olham parecem parados
Mas são estradas que entram neles
Vozes que crescem por dentro, no que são
Homens que crescem como sementes,
Plantadas no coração

domingo, maio 17, 2020

A caminhar se faz o caminho!

A primeira vez que a Valentina falou comigo estes dias foi para me segredar que estava sem rumo, perdida, cheia de medos, receios, dúvidas, angústias. Estava cheia de todas aquelas palavras que tentam definir o pânico. Não sabia que fazer. Não sabia nada de nada. Não estava bem. 
Fui-lhe respondendo que era normal termos receios, mas que não vermos para além deles, era o mesmo que tapar os olhos à luz que se procura no fundo do túnel. Até à presença de Deus que se pressente. Que o caminho a fazer era continuar a viver no meio das limitações... que, afinal, sempre existiram. Agora só nos parecem mais visíveis. E mais isto e mais aquilo, no sentido de apaziguar aquele coração e convidá-lo a fazer caminho. 
Não passaram vinte e quatro horas quando a Valentina me contactou para me dizer que se estava a fazer luz na sua vida e fé, embora com dificuldades. É isso, respondi. O caminho faz-se caminhando, sem certezas que não seja fazer o caminho, mesmo caindo, mesmo voltando um pouco atrás, mesmo com vontade em desistir, mesmo com obstáculos a ultrapassar. O importante na fé não são as certezas, mas o caminho! força... a todos os que se chamam, por estes dias, de Valentina. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Padres que não sabem que caminham"

sexta-feira, maio 15, 2020

meu mar [poema 259]

Voltaste com a água do mar, numa onda
Salgada e fria
O teu beijo entrou pelos pés
E devagarinho foi preenchendo o vazio do meu corpo
Seco, fechado e frio
Ficámos entrelaçados ao entardecer, da vida
Olhando o que fora a nossa história, dentro
Um do outro
Voltaste na onda de espuma, mergulhei em ti
Foste e regressaste, depois de mergulhar em mim
Eras minha e eras de quem morasse à beira-mar
Eras todas as ondas, eras o mar
A entrar por mim adentro
Docemente

Um beijo quente

quarta-feira, maio 13, 2020

A Igreja que faz o mesmo de sempre

Temos continuado, nestes tempos de pandemia, a fabricar uma Igreja centrada no padre, ou seja, clerical, e nos sacramentos, nomeadamente a missa, ou seja, sacramentalizadora. Com tudo o que isso tem de bom e de preocupante. Chegamos a transformar o meio num fim. Abusamos um pouco multiplicando celebrações e sinais de que, com boas intenções, conseguimos transformar o invisível e escondido das nossas igrejas fechadas, vazias e silenciadas, num certo produto de consumo e num certo proselitismo, ainda que inconsciente. O objectivo parece passar por mantermos as gentes e os crentes connosco. Com a Igreja dos padres. E nós funcionamos, mesmo sem querer, como funcionários de uma Igreja aparentemente aberta, mas realmente fechada. Ou seja, uma Igreja com cheiro a mofo, porque fechada, e em ruínas, porque não tem crentes. 
É o problema de sempre na Igreja dos últimos tempos, aquele para o qual o Papa Francisco tanto tem alertado. É o problema de uma Igreja em constante manutenção. Conservando-se. Fazendo o mesmo de sempre, embora com novos meios.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O papa e os padres"

segunda-feira, maio 11, 2020

Na tua opinião, como é que Igreja Católica tem procedido, em termos sanitários, e como Igreja diante da pandemia do Covid-19?

Na última sondagem, colocada online a 22 de fevereiro, fazíamos a pergunta: "Acreditas na vida eterna?". Já nessa altura se começava a ouvir falar da pandemia causada pelo Covid-19. Por isso a sondagem ganhava maior sentido. Deixamos os resultados: 


Hoje, em tempos de confinamento e de contingências diversas, mesmo ao nível da Igreja, propomos duas novas sondagens, em simultaneo, uma que se refere ao modo como a Igreja Católica portuguesa tem lidado, em termos sanitários, com a pandemia, e outra que tem a ver com o modo como tem procurado ser Igreja:
1. "Na tua opinião, como tem a Igreja Católica portuguesa lidado com a pandemia do covid-19 em termos sanitários?"
2. "Na tua opinião, o modo como a Igreja tem procurado ser Igreja nestes tempos de contingência tem sido.."

Agradecemos a justificação das vossas opiniões, que poderão ser muito úteis. Aliás, era interessante perceber como tem sido nas vossas comunidades cristãs.

Pedimos desculpa pelo facto de, inicialmente, termos proposto apenas uma sondagem que, de certo modo, induzia em erro.

domingo, maio 10, 2020

amo-te sem saber [poema 258]

Amo-te, mesmo sem te ver
No sol que de dia me encandeia
E de noite me canso a buscar em ti

Amo-te, mesmo sem te tocar
No vento que sopra por mim adentro
Na água que em minha mão desaparece
Depois de me refrescar

Amo-te, sem entender porque te amo
Nos espinhos da minha casa a crescer
Naquele sangue que do teu peito
Cai no meu, fica a escorrer

Amo-te porque te procuro
E te encontro, sem o saber,
com o coração.

sexta-feira, maio 08, 2020

anónimos [poema 257]

Não te sei o nome, ou se o tens
Não te sei dizer
No rosto, mala onde guardas os pertences
Também não te sei o rosto, ou se o tens
No vidro que me parece um espelho
Onde guardamos as vidas dos dois
Não te sei perder
Também não te sei os pertences, ou se pertences
Ao sofrimento que se diz em milhões
A morrer

quarta-feira, maio 06, 2020

As igrejas vazias e fechadas

Sabemos que em todo o mundo, nestes tempos de crise, as igrejas estão vazias e fechadas. Podemos imaginá-las. Cheias de pó. Com cheiro a mofo das chuvas e do calor que se começa a sentir. A precisar de arejar. Sair das quatro paredes em que se seguram. Não é nada que não tivéssemos já imaginado. O vírus veio só apressar a imaginação. Aliás, em alguns países, isso já foi ocorrendo. Igrejas, seminários, mosteiros, casas paroquiais a esvaziarem-se. A perderem o nome. A silenciarem-se. 
Li há dias em Tomáš Halík que, quando a Igreja medieval fez um uso excessivo de proibições e sanções, levando a máquina eclesial a uma espécie de “greve geral”, sem celebrações e sacramentos, as pessoas começaram a procurar mais a relação pessoal com Deus, uma “fé nua”. Teve ali, de certo modo, o nascimento da mística espanhola, a quem muito devemos hoje na mística e na contemplação. 
Talvez tenhamos agora a oportunidade de encher as nossas igrejas vazias com as portas abertas a um modo de estar mais verdadeiro, mais interior. Mais silencioso e, ao mesmo tempo, mais vivo e verdadeiro. Talvez tenhamos agora a oportunidade de ir ao centro do Evangelho, fazer uma viagem ao interior da nossa fé despida, e revisitar a Igreja que está em todo o lado e é muito humana e doméstica. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Deus não quer a nossa religiosidade"

segunda-feira, maio 04, 2020

Funerais a fugir

São os funerais de hoje. É o que tenho sentido em cada funeral que tenho presidido durante este período de contingência. No cemitério. Distantes uns dos outros. Com máscaras e outras protecções. Pouquíssimas pessoas. Familiares que nem podem ir. Amigos, só se a família for muito reduzida. Chora-se para dentro. Chora-se mais, mas para dentro. É o desespero de não ter espaço e tempo para chorar.
Ainda me recordo do primeiro funeral. Precisei de um minuto para me recompor e limpar as lágrimas. Recordo de modo especial o funeral de um jovem de dezoito anos. Chorei do início ao fim, em solavancos com as palavras. Não consegui aguentar a máscara. Não consegui limpar os olhos. Não consegui senão manifestar que estávamos unidos até neste não saber como fazer e sofrer.
Habitualmente tardo uns quinze minutos. Depende um pouco. Tento dar dignidade à celebração. Pelo menos tento. Ela é digna por si mesma. Vale pela presença de Deus e não pela presença das pessoas, em multidão. Não vale pelo que digo, mas pelo que Deus diz. Mas fico sempre com a sensação de que toda a gente quer sair dali o mais depressa possível. Toda a gente tem pressa. Dizem-me os cangalheiros. Demore pouco, padre. A família olha para mim a ver a hora em que termina o desconsolo. Os senhores da funerária querem ir desinfectar-se para casa. Para mim é tudo muito estranho. Depois da leitura do evangelho, partilho umas palavras. Mas soam-me a palavras que sobram. Nalgumas ocasiões pelo menos. Rezamos. Estamos. Unimo-nos. Mas tudo parece correr. Tudo parece ser a fugir. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os funerais Covid"

domingo, maio 03, 2020

brincar às casas [poema 256]

As casas viviam a empurrar as horas
Serviam-nas a desaparecer

Por cada hora empurrada
Uma hora a morrer

Os telhados eram toldos de feira
De circo a viver

Nas paredes cresciam silvas
Subiam e desciam para se esconder

As janelas eram olhos enormes
Sem ver

Não havia portas
Para escrever.

E as casas morriam nas horas
Em vez de ser.

sexta-feira, maio 01, 2020

A Igreja que está aí

A pandemia do coronavírus fez com que as celebrações religiosas passassem a ser recebidas através dos meios de comunicação social e virtual. A Igreja passou a viver e a expressar-se nestes meios. Mas esta não é a Igreja. Esta é a Igreja de uma situação difícil. A Igreja, por si mesma é uma comunidade real. É o Povo de Deus que caminha no acto da fé e do seu amadurecimento, no acto da caridade e do testemunho, no acto da Palavra e dos sacramentos. 
É verdade que a Igreja vive à volta dos sacramentos, e especialmente do sacramento da eucaristia, fonte e cume da vida cristã. Mas não depende exclusivamente deles. Ela depende do Senhor Deus. Por isso também pode viver sem eles. Não pode é banalizá-los ou dar a ideia - demasiado clerical, por sinal – que, sem eles, não há forma de se alimentar, celebrar e viver a fé. Se já antes muitos dos nossos sacramentos perdiam alguma autenticidade, porque ausentes de fé, agora esse risco aumentou. Tanto que o Papa Francisco, na homilia da Missa na Casa Santa Marta de 17 de abril, sublinhou este risco de viver a comunhão eclesial apenas de modo virtual. 
Os sacramentos valem por si, mesmo à distância. Há uma certa presença, embora virtual, através destes meios de comunicação social e virtual. Não são falsos, mas também não são a realidade, mesmo que a reproduzam muito bem. 
Talvez a pastoral das nossas comunidades, nestes tempos de contingência, se tenha vindo a centrar em demasia na celebração eucarística, absorvendo muitas das nossas energias, salientando o quantitativo, em detrimento do serviço da Palavra, da formação e, nalguns casos, da caridade. Talvez seja um hábito que vem de trás. E talvez seja este o salto que a Igreja que está para vir deveria fazer. O salto de uma Igreja sacramentalizadora para uma Igreja missionária, de uma Igreja eclesiocêntrica para uma Igreja cristocêntrica. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Gostava de fechar a minha Igreja.

quarta-feira, abril 29, 2020

crisálida [poema 255]

A Crisálida não tinha nome
Era uma boneca de sonho feita em papel
De cor muito amarelada, macilenta,
apagada
À procura de cor

Fora tecida em noites negras de breu,
Com pedaços de chuva
sem cor
a descer do céu

Parecia ferida, certamente magoada
Não tinha cor, não tinha cara,
Não tinha nada de nada

Era uma boneca sem vida, presa em papel
Sem cor e articulada.
Do sonho acordou, pelo céu fugiu,
por mim voou,
E em arco-íris

se transformou.

segunda-feira, abril 27, 2020

A Igreja que está para vir

Há um abalo em tudo à nossa volta. Mesmo na Igreja. Tanto no seu todo como na sua hierarquia. Faço figas, porém, para que seja um abalo positivo. Rezo todos os dias com essa intenção. E há, de facto, algo positivo que tenho vindo a descobrir. Cresce pouco a pouco, mas cresce. É a "Igreja doméstica"! A Igreja dos primeiros tempos do cristianismo. Uma Igreja que se reunia em casa e onde as celebrações eram presididas pelo dono do lar. 
O problema é que, ao longo dos tempos, o clero foi-se apoderando ou apropriando da Igreja e dos sacramentos, mesmo que o tenha feito sem intenção, transformando a Igreja de Cristo numa Igreja piramidal, vertical, clerical. E habituou os crentes a esse modelo. Um modelo de Igreja dependente dos bispos e dos seus padres. Por isso, talvez muitos crentes tenham perdido o foco e se tenham sentido algo desamparados nestes tempos de difícil acesso aos seus padres. Pelo menos o acesso presencial. 
É claro que precisamos de uma “ordem”, como dizia Anselmo Borges numa entrevista que me fez pensar. Por isso precisamos de ministros ordenados. Precisamos de “organizar”. Mas não podemos fazer depender deles a Igreja que é de Cristo e de todos.
Será que a Igreja que está para vir vai ser mais laical e menos clerical?! 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nós e vós"

sábado, abril 25, 2020

"Dia da Revolução"

Escrevem e dizem alguns que, depois deste furacão chamado coronavírus, a nossa vida não voltará a ser a mesma. Que está a ocorrer uma revolução viral. E falam muito de solidariedades, atenções, correntes de vizinhanças, gestos maravilhosos que vão ocorrendo por todo o lado e em todo o mundo. Dizem também que há menos poluição. Menos Co2. As águas mais limpas. Que, no plano climático, está a valer a pena. Que a natureza nos está a obrigar a rever o nosso estilo de vida. Que o capitalismo vai sofrer um desfalque. Que agora sentimos que precisamos uns dos outros e que os valores que nos têm guiado não são os valores que nos devem guiar. Que agora descobrimos que precisamos da ajuda de Deus porque sozinhos não nos bastamos. 
Mas… 
Li, há dias, no jornal espanhol “El Mundo”, que, em Espanha, na província espanhola de Cádis, onde um grupo de quase três dezenas de idosos tiveram de ser realojados pelo Governo depois de terem sido despejados de um lar por estarem infetados com a Covid-19, os veículos de transporte médico que transportavam os idosos foram apedrejados e um carro chegou mesmo a atravessar-se no caminho. Os populares receberam aqueles idosos com pedras e explosivos! 
Li também algures que alguns médicos e enfermeiros, no mesmo país, têm recebido missivas de vizinhos a pedir que se mudem para outras habitações longe deles, pelo risco que correm. 
Li ainda que num estudo realizado, durante os 6 dias com o maior número de mortes por coronavírus, no mesmo país, pelo Laboratório de Economia Comportamental (LoyolaBehLAB) da Universidade de Loyola, depois de terem oferecido vales de 100€ aos participantes, se verificou que estes fariam menos doações à medida que a pandemia aumentasse e houvesse uma maior exposição à ameaça do COVID-19. 
Por estas e por outras é que não sei se haverá alguma revolução viral. Até porque o vírus parece querer isolar-nos. E cada um parece preocupar-se mais com a sua sobrevivência que com a vida dos outros. Talvez nestes tempos haja uma preocupação maior pelos outros. Talvez nos lembremos mais dos que amamos. Talvez estejamos mais atentos às necessidades que ao nosso redor se encontram. 
Mas… 
Dizemos que é preciso uma revolução no mundo, e que pode ter chegado a hora dessa revolução… Que o maldito vírus veio fazer uma revolução entre nós. 
Mas a denominada revolução não está nas mãos do vírus. Ela está nas nossas mãos! 
Vivemos num mundo, numa criação, numa sociedade que nos foram dados por Deus, como dons, para nós administrarmos. Mas enquanto pensarmos que é o mundo, a criação e a sociedade que nos têm de servir, será difícil fazer desta “Casa Comum” um lugar melhor para se viver e, mais importante ainda, um lugar para conviver, isto, viver com 
A revolução não está nas mãos do vírus. Ela está nas nossas mãos! 
Hoje, dia 25 de abril de 2020, faço votos de que estejamos unidos na liberdade de poder fazer uma revolução… no nosso interior 

Este texto também foge um pouco ao estilo literário que gosto de usar neste espaço. 
Aliás, é um texto ampliado do que escrevera aqui
Mas achei que era uma partilha oportuna para fazer neste dia da "Revolução".