segunda-feira, novembro 30, 2020

morte sem nome [poema 292]

O papel escrevia que havia morrido uma pessoa, sem nome 
Na página do fundo repetia a mesma história, sem título.
 
E toda a vez que alguém morria sem nome 
A história repetia-se, ela mesma, no fundo do papel, 
na gaveta que ninguém visitava 
E que escondia a bíblia sagrada 
 
Vinha então a morte antes da morte. 
 
A morte sem nome eras tu.

sexta-feira, novembro 27, 2020

Hóstias falsas

Contou-me uma paroquiana que ouvira um menino, todo pimpão, dizer que ia comer hóstias falsas. E que lhe contara como era o fato que ia vestir na festa da Primeira Comunhão. A senhora entendera a genuína alegria dele e porque falava nesta linguagem. Estava feliz o pimpão. E tinha motivos para tal. A festa que vamos realizar, com imensos cuidados por causa da pandemia, é motivo de sobra para a sua felicidade. E ao falar nas hóstias falsas, estava a falar, na sua linguagem, da experiência que vamos fazer com eles, para aprenderem como se comunga e o significado da hóstia consagrada versus o pedaço de farinha que vão hoje experimentar. 
No entanto, a expressão usada e a forma carinhosa, mas preocupada, com que esta paroquiana me contou a ocorrência, fez-me pensar, mais uma vez, na importância e valor que a comunhão tem ou não tem para nós. E consequentemente, na banalização que em determinadas ocasiões, se faz dela. Ou porque se comunga por comungar, como também se faz outra coisa qualquer. Ou porque não se comunga, como também não se faz uma série de coisas. 
Não sei até que ponto, mesmo nós cristãos adultos, percebemos o alcance enorme que é comungar o Senhor, recebê-lo dentro de nós, acolher esta partilha de um Deus que se faz banquete para nós. 
Mas nem tudo o que vamos ouvindo e lendo sobre o assunto é mau. Ainda há pouco tive a oportunidade de ler o testemunho de um famoso jurado do programa de culinária MasterChef em Espanha, vencedor de duas estrelas Michelin e dono de dois restaurantes, José “Pepe” Rodríguez Rey, dizer numa entrevista assim, tal e qual como escrevo, mas na sua língua castelhana: “Comungar é o que mais me alimenta”. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Os Paulitos de hoje"

quarta-feira, novembro 25, 2020

partir pedra [poema 291]

Dizia que não ficaria pedra sobre pedra 
Que se soltariam umas das outras, mas esquecia 
Que ao soltar-se, continuariam a ser pedras 
E que cairiam em cima umas das outras 
Amontoado de cidades a crescer, desmoronadas, 
Que são cidades sem querer 
 
Dizia que não ficaria pedra sobre pedra 
Que se despedaçariam umas nas outras, mas esquecia 
Que os pedaços de pedra também são pedra 
A minguar para não ser mais que as outras 
Cidades de pedra a crescer, amontoadas 
De cinzas humildes para um dia voltar 
A ser

segunda-feira, novembro 23, 2020

As missas e a azeitona

Este domingo duas das minhas igrejas estavam a meia ocupação, mesmo descontando a meia ocupação da pandemia. Tal como eu já adivinhava, porque esta região vive rodeada de olivais. As pessoas têm de apanhar a azeitona, dê por onde der, seja em que dia for. Não é só a missa que faz parte das suas vidas. Também a azeitona faz. E por isso há épocas do ano, tal como a época das vindimas, em que as igrejas desta região se despovoam um pouco. Assim, no final das missas que ali celebrei, rezando também por aqueles que estavam na “apanha”, desejei boa azeitona, expressão típica de quem sabe o que é “andar à azeitona”. 
Já no regresso a casa, veio-me à memória um colega que, há uns anos, embora poucos, numa dessas celebrações um pouco mais vazias, por causa da azeitona, passara grande parte da homilia, zangado e a esbracejar, criticando quem tinha ido à azeitona. A parte da homilia que ainda hoje me custa mais a engolir, foi aquela parte em que ele deixou no ar o desejo de que alguns caíssem de alguma oliveira e partissem uma perna, para aprenderem que não deveriam ter faltado à missa. Ainda hoje não entendo como é possível fazer afirmações deste tipo, mesmo que nos custe presidir a uma celebração para meia dúzia de pessoas. Como se a bondade de Deus só devesse existir para com os que vão à missa. No que a mim diz respeito, eu rezo para que não caiam das oliveiras e possam voltar rapidamente à missa.

sábado, novembro 21, 2020

petrus [poema 290]

Se cruzássemos os olhos um no outro 
Antes de qualquer negação, 
não saberia dizer-te que não. 
 
Revolveria minha alma por dentro 
De uma mão, 
Com três dedos sairia de mim para te agarrar 
Para te dizer com a força da minha negação 
O meu modo de te amar 
Por inteiro, ou então 
A pobreza de não ser mais que a tua 
Outra mão.

quinta-feira, novembro 19, 2020

Tratar dos pobres

Curvado pela idade, com a ajuda de uma bengala, o senhor José bateu à porta do senhor prior. Estava na hora do almoço, mas era dia mundial dos pobres e o senhor José tinha pressas de fazer o bem. Trazia um envelope no bolso para o senhor prior dar aos pobres. Quando o pároco lhe abriu a porta, achou estranha a hora deste amigo que admira muito. A missa tinha acabado há poucos minutos. Ó senhor José, tinha tempo. Não era preciso ter vindo agora. Mas o senhor José tinha a tensão muito alta e não baixava. Já tomara duas vezes a medicação e a tensão não baixava. Tinha de ir ao centro de saúde. Mas não queria ir sem antes deixar o envelope. Ó senhor José, tinha tempo. Teria sido mais prudente em ir primeiro ao centro de saúde. Ai, senhor José, reclamava o padre, um pouco preocupado. 
Mas o senhor José, antes de tratar de si, tinha de tratar dos pobres da paróquia. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A Rosária"

segunda-feira, novembro 16, 2020

Doer sem tempo para doer

Morre-se mal nestes tempos. Muito mal. Nos funerais em tempo de pandemia morre-se por fora e por dentro. Um pedaço enorme de nós seca. Seca curiosamente diante das despedidas reduzidas a lágrimas. Sim, na maior parte dos funerais, a despedida é feita quase exclusivamente de lágrimas. Que nos secam por dentro. 
E hoje sei na primeira pessoa que assim é. Quando não foi possível despedir-me como queria do meu cunhado mais velho. Ou seja, do meu irmão mais velho. Sem o ver. Quase sem tempo de velório. Na ansiedade de autopsias e testes covid, porque assim tem de ser para quem morre na via pública. Cinco dias disto. Cinco dias a segurar lágrimas às escondidas da minha irmã. Pois que as suas eram mais abundantes e mais constantes. Na verdade, serviu para amadurecer a dor. Para escolher bem as leituras e a homilia. Graças a Deus que foi possível celebrar a missa com a família, porque em muitos casos e zonas nem é possível. Nem a missa nem o velório. Tudo se reduz a uns quinze minutos no cemitério com poucas presenças. Vem-me constantemente à ideia as centenas de amigos que ficaram sem se despedir, porque não cabiam na despedida. 
A nossa despedida foi muito digna. Foi uma festa linda. Entregámos tudo a Deus e respondemos à dor com a fé. É o que resta. É o que vale. Senti, porém, que estes funerais são como uma ferida que tem de sarar por si mesma, numa imunidade forçada sem remédios. Uma dor sem tratamento. As perdas deixam cicatrizes. Sem tempo para a despedida, para o luto da despedida, a ferida fica escondida. E dói mais. É quase como doer sem tempo para doer. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Levar com alegria o sofrimento?"

sexta-feira, novembro 13, 2020

da vida [poema 289]

Na varanda veio-lhe aos olhos 
O odor da vida 
 
Essa entranha que na miragem 
Esvoaçou 
 
Essa paisagem que, apeada 
Não parou 
 
Esse tempo indizível do ser 
A beleza da vida cumprida 
Que não passou

quarta-feira, novembro 11, 2020

parece que nos estamos a despedir de criminosos

Há vários dias consecutivos que um colega tem feito funerais de pessoas que foram vítimas do novo coronavírus. Ao momento que redijo este pequeno texto, já lá vão uns cinco. E amanhã vai outro a sepultar. E contava. As minhas celebrações exequiais – que são no cemitério, recordo - estavam a durar apenas uns quinze minutos. Agora não chegam a dez! Tenho pena desta gente. Às vezes parece que nos estamos a despedir de criminosos. Completava, depois, com muita mágoa nas palavras. Deus nos ajude a ser instrumentos de esperança e conforto na dor de quem chora. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Funerais a fugir"

segunda-feira, novembro 09, 2020

A santidade dos que não são santos

O dia de Todos os Santos tem destas coisas. Faz-nos pensar na santidade. E toda a gente gosta deste dia. Primeiro, por ser feriado. Mas depois porque a piedade popular gosta de santos, devoções, ermidas e coisas ligadas aos santos das suas devoções. O que é bom. Muito bom. Mas que, nalgumas ocasiões precisa de uma certa purificação. Digo-o porque me parece que muitos dos nossos cristãos pedem muita interceção aos santos canonizados e pouca a Deus, mesmo que através desses mesmos santos. E também o refiro porque sei, pela teologia, o magistério da Igreja e, sobretudo, pelo meu próprio entendimento da fé, que a santidade é a nossa vocação universal. Não a santidade dos santinhos. Mas a santidade do dia-a-dia. 
Os santos dos altares são estímulos para a nossa santidade. Mas também eles viveram como nós, na fragilidade dos dias. A santidade não é nem uma conquista nem um prémio. Não é uma conquista que fazemos, nem um prémio pelos nossos méritos. Não é uma moeda de troca com Deus. É caminho para Ele. É comunhão com Ele. É a busca de nos configurarmos com Cristo. Como dizemos na Eucaristia, é a vida que procura viver “por Cristo, com Cristo e em Cristo”. Por isso não é privilégio de alguns, mas um dever de todos os seus discípulos. Ser santo é, aliás, na minha maneira de ver, a única maneira de ser verdadeiramente cristão. 
A solenidade de Todos os Santos serve para honrar e recordar todos os santos. Mas serve, acima de tudo, para nos recordar que todos somos chamados à santidade. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Carlos que é meu sacristão"

sexta-feira, novembro 06, 2020

A morte como um fim

Celebrámos há dias o Dia dos Fieis Defuntos ou, como é conhecido em muitos lados, o Dia dos Finados. Sim, o dia daqueles que supostamente, como a palavra indica, findaram, chegaram ao fim. E este ano, apesar de não ter sido possível realizar romagens comunitárias, passei por todos os cemitérios a rezar pelos que já partiram e, de certo modo, são também meus, porque estão sepultados nos cemitérios das minhas comunidades paroquiais. 
Num desses cemitérios, chamou-me a atenção uma senhora que colocava umas rosas na campa do marido que fora a sepultar neste tempo de pandemia. Nem a máscara impedia que as lágrimas caíssem sobre as rosas. Para as regar. Conversámos um pouco entre alguns soluços partilhados. E às tantas ela usou a palavra do “fim”. Que o seu marido chegara ao fim. E que a sua vida estava também a chegar ao fim. 
Aquelas palavras chegaram ao âmago do que penso sobre a morte e a ressurreição. E aquele momento ajudou-me a fazer a homilia desse dia, ao entardecer. Entre outras coisas, falei da morte como um fim. Sim, como um fim. Mas não o tal fim da senhora do cemitério. Não falei da morte como um fim onde se coloca um ponto final. Falei desse fim como uma finalidade. Falei da morte com um fim de finalidade, de propósito, de objectivo. Afinal todos morremos com o objectivo de podermos chegar à comunhão plena com o amor do mesmo Deus que nos deu a vida.
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Padre, será que o meu marido está no céu?!"

quarta-feira, novembro 04, 2020

desamor [poema 288]

Não suporto não te amar e por isso te desamo 
Largo-te por entre os dedos amarrados aos teus, 
Meus dedos erguidos, apontados, ao céu 
mas fechados 
são meus 
 
Foges como água que não seca, e permanece, 
mas reclamo eternamente 
Porque se cola a mim sem se notar, sem me deixar 
Neste querer e não querer 
Para sempre 
estar 
 
Entranha-se e estranha-se 
Como vai e vem mesmo presente 
Como vai sem ir, meu primeiro coração 
Ausente. 
Amor com nome sem fim e se pressente 
Para largar, 
Porque mais não sei fazer do que te amar