sexta-feira, dezembro 30, 2022

explicação da morte [poema 356]

a imagem do caixão guardei-a para deixar
entre o lugar da porta e o lugar da chave
onde pendurei o que eras, árvore
que não morre, e dava flores
essa fruta de primavera que colocamos
em cima dos caixões para dar vida

sábado, dezembro 24, 2022

o Deus oculto [poema 355]

Tu desceste ao tempo, eterno minguante 
no amor crescente
eras tudo, 
para ser o quase nada 
entre os homens
 
eras a palavra e vieste no silêncio
a meio da noite, e por entre o escuro,
encarnaste a luz que não se apaga
nem se cala
 
eras a eternidade, e caíste na realidade
Tu és o Deus oculto, mas presente,
um presente em nós


um Natal cheio da Esperança que brota da encarnação de Deus em nós, nos nossos corações!

quinta-feira, dezembro 22, 2022

O cansaço da hora

A hora ia adiantada. A conversa também. Dois colegas falavam coisas de padres. Um deles perguntava porque é que o assaltava tantas vezes a vontade em largar tudo. Já se está a ver que mais do que uma pergunta, era um desabafo, e mais do que um falar para o outro, era um falar para se escutar no que falava. Dizia que lhe assaltava muitas vezes esta vontade de deixar tudo para trás, tal como deixara tudo quando aceitara dar o passo da ordenação, mas agora em sentido inverso. Estava cansado do clima de suspeição que vive diariamente, tal como todos os outros padres. A Igreja encontra-se sob a lente de uma comunicação social e de uma sociedade bastante ideológica, com interesses em a descredibilizar, é certo. E doi. Mas também nas suas comunidades sente que as pessoas estão convencidas que o padre só quer é dinheiro e que a Igreja é muito rica. E também se avolumam as tentativas inglórias para propor a fé. E os esforços por ajudar a compreender a verdade nos sacramentos. 
Ele não faz parte do grupo daqueles que têm nostalgia do passado e a ele querem regressar. Aliás, sonha com uma Igreja mais humanizadora e mais próxima das pessoas, mesmo que em menor relevância na sociedade e na cultura. Não quer nada com a Igreja jurídica, sacral e burguesa. Ele quer identificar o seu sacerdócio com a Igreja dos peregrinos, dos que caminham e que, muitas vezes, nem contam. Mas estava cansado. Pensava em deixar o ministério, não como um acto de fraqueza, mas como um acto de franqueza. Não como uma acto de decisão, mas como um acto de vocação. A validação, diante dele mesmo e do próprio Deus, de que há uma náusea, uma solidão, uma ausência, um vazio, uma paixão que é uma cruz desamarrada. É sincero. É autêntico este padre, que apenas quer ser padre para servir e não sabe suportar este cansaço que vem mais de fora dele que de dentro, mas que se entranha.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Há-de ser o que Deus quiser"

sábado, dezembro 17, 2022

A Igreja e a ciência

Quando a Catarina, no meio da conversa sem pretensões, afirmou que a Igreja estava contra a ciência e que havia um conflito de poder entre ambas, o meu estado de admiração quase me emudeceu. Pensava eu que, nesta sociedade pós-moderna, o ensino escolar já ultrapassara a ideia descabida desta tolice. O conflito foi alimentado pela famosa “ilustração” que pretendia convencer que a ciência foi uma conquista perante o cristianismo que enganava as pessoas, as reprimia e as levava à ignorância e estagnação. Contudo, o diálogo entre a Igreja e a ciência tem evoluindo imenso e hoje parece-me que ainda pensar deste maneira é completamente descabido. 
Para alunos que se contentam com aprendizagens acríticas, convém recordar algumas coisas que a sociedade deve à Igreja. Por isso lembrei à Catarina que a civilização ocidental deve à Igreja o sistema universitário, as ciências, os hospitais, o direito internacional, bastantes princípios do sistema jurídico e os valores da constituição, entre muitas outras coisas que proporcionaram ao homem o seu progresso. A própria revolução científica fez-se com grandes contributos da Igreja, muitos deles padres, como por exemplo Copérnico, Nicolau Steno, Grimaldi, Lemaitre, Riccioli.  

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Hoje em dia"

quarta-feira, dezembro 14, 2022

haver [poema 354]

não há olho aberto que não feche, cansado
para adormecer

não há manhã que não caminhe para a noite
é a sua labuta para tornar a ser
 
não há palavra que não se escreva e termine
para se poder ler
 
e as letras são letras porque se fazem palavras
e as manhãs são um novo dia depois do seu findar
e os olhos encerram-se para que o coração veja.
o homem vive para crescer, por dentro e por fora
num abraço se encerra o homem no outro
para viver

domingo, dezembro 11, 2022

A Igreja fria

O frio entrou pela fraca claridade da manhã, ao abrir o reposteiro. Estava mesmo muito frio, o que aumentou a vontade de ficar debaixo dos cobertores. Mas as eucaristias dominicais clamavam por mim e não lhes podia dizer Não. Era cedo, de facto, e o frio era enorme, mas a primeira missa dominical deste dia foi celebrada para cinco pessoas. Cinco exactas. Gente boa. Duas delas leram as leituras, mas nenhuma cantou. Três delas comungaram. As quatro paredes da igreja estendem-se e dariam guarida segura a umas duas centenas, no mínimo. As cinco pessoas estavam espalhadas nos bancos, distantes umas das outras. As pessoas têm morrido. A terra tem cada vez menos habitantes. E estava frio. As mãos enregelavam. Tudo parecia frio naquela missa. A Igreja fria. É esta a verdadeira Igreja fria.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Hoje entrou Deus em minha casa"

quarta-feira, dezembro 07, 2022

Deus não me ouve!

Uma familiar, um pouco aflita com algumas situações difíceis da sua vida, contactou-me por telefone, e o desabafo, que foi prolongado, terminou assim. Reza lá por mim, que a mim Deus não me ouve. E repetiu num tom de voz mais apagado, a deixar de se ouvir. Reza lá por mim, que a mim Deus não me ouve. Lembrei-me de perguntar-lhe se tem rezado, e ela respondeu-me que não. Que não tem rezado praticamente nada. Ora, pois então como é que Deus a há-de ouvir, pensei eu para os meus botões! E em tom de galhofa, que originou umas boas gargalhadas e aliviou a tensão, lá lhe disse. Então como queres que Ele te ouça se tu não falas com Ele!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "De rabo para o ar"

quarta-feira, novembro 30, 2022

A primeira comunhão das últimas

Tinha terminado a celebração da eucaristia onde tinha sido baptizado e fizera a primeira comunhão com outros meninos. Estava engalanado e feliz, o Tomás. Toda a família em seu redor e a querer tirar fotos com ele. Mal se podia passar na coxia. A avó era, sem dúvida, a mais expressiva. Estava orgulhosa do neto e dos passos que acabara de dar. Era uma mulher de fé e de missa semanal. Por isso, ao cruzar-me com eles, nos cumprimentos e manifestações de alegria, a avó afirmou alto e bom som Senhor padre, agora já tenho quem me acompanhe à missa. E o pequeno Tomás, nos seus sete ou oito anitos, fez cara feia, do género de cara incomodada, e disse que não. Estava muito perto de mim e foi possível olhá-lo nos olhos e perguntar-lhe se não tinha intenção de voltar a comungar. Baixou os olhos e disse que não queria ir à missa muitas vezes. Era só aos domingos, insisti. Mas isso era muitas vezes para o Tomás. O irmão mais velho repreendeu-o dizendo que não devia dizer isto em frente ao senhor padre, e ria-se. Os pais também se riam, vá-se lá saber que graça tinha o que o petiz acabara de dizer, consolados pela festa, pelos fatos novos e o banquete para onde iam agora. A avó baixou o rosto envergonhada e eu segui o caminho coxia abaixo que a seguir tinha outra missa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A comunhão do casamento"

quinta-feira, novembro 24, 2022

A Igreja dos bonzinhos

A mãe do Carlitos não vai à missa porque, e repito palavras dela, só lá vão as beatas falsas. Como se aqueles que fazem parte das comunidades cristãs tivessem de ser impecáveis, perfeitos e santos. E como se o espelho da nossa fé tivesse de ser o outro. Uma fé em comparação com outras fés. A medida da fé não é a medida dos números nem das comparações. 
A mim já me cansa esta mania de criticar a Igreja como se nela só pudessem participar bonzinhos. Até nisso, caímos facilmente na tentação de criar elites. As pessoas da comunidade cristã não têm de ser boas. Só têm de estar a caminho de serem cada vez melhores. E podem ser más. Podem ser grandes pecadores. Todos são bem-vindos e cabem nas comunidades cristãs, tanto quanto no coração de Deus. 
Pensar uma Igreja pura, santa, imaculada, constituída apenas por bonzinhos, é uma utopia. Não existe. E ainda bem, porque assim se percebe que todos têm lugar no coração de Deus e que o Seu amor é gratuito, é um dom, não se dirige a elites.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como se avalia um padre?"

segunda-feira, novembro 21, 2022

o menino rei apenas menino [poema 353]

era um menino como outro qualquer 
a mesma roupa, a mesma terra nas sandálias
a mesma pele e o mesmo coração, e o sangue a correr 
por dentro e por fora, no chão
a caminho do mar

era um menino por construir, no lugar de se viver
era um menino inteiro, por dentro da imensidão
que a voz da terra desconhece,
ao dizer
 
era aquele que é, nunca deixará de ser,
o magro encanto do tamanho que passa
de boca em boca como um beijo
sem palácio

terça-feira, novembro 15, 2022

Unidades pastorais como comunidades pluriministeriais

A paróquia tem-se vindo a esgotar. Mais do que “comunidade cristã”, tem-se tornado um aglomerado de crentes, na sua maioria pouco ou nada praticantes, voltada para uma prestação de serviços religiosos. Tem aumentado o número de bancos vazios nas igrejas e o desinteresse em participar na comunidade paroquial. Também parece fazer cada vez menos sentido configurá-la como um território, pois residir numa povoação já não é sinónimo de fazer parte de uma paróquia. E a pandemia pelo novo coronavírus potenciou tudo isto, tornando necessário repensar as paróquias e a acção pastoral junto das pessoas. A paróquia ainda é a estrutura onde se faz mais prática e visível a acção da Igreja. É uma realidade pastoral necessária, mas tem cada vez maiores dificuldades para cumprir a sua missão. Por isso se tem falado muito na hipótese de se progredir para unidades pastorais como conjuntos agrupados de paróquias. 
No entanto, para se fazer esse caminho, a reflexão não pode centrar-se nos padres ou nos eventuais párocos, mas nas potencialidades das comunidades como um todo. É que alguns bispos, para colmatarem as debilidades das paróquias, têm procurado quase exclusivamente soluções clericalizadas. Desenham unidades pastorais por causa das necessidades efectivas de párocos, que são cada vez menos para cada vez mais comunidades paroquiais. Fazem pacotes de paróquias para sacerdotes. Reagrupam paróquias de modos diferentes. Procuram soluções ou alternativas com padres vindos de fora, padres substitutos, ou outras figuras eclesiais similares, para se continuar a fazer as comunidades cristãs dependerem de uma única pessoa, o padre. 
O ideal seria pensar e estruturar comunidades mais dinâmicas, menos ligadas a lugares, menos dependentes dos padres, mais animadas e confiadas a leigos e equipas corresponsáveis, comunidades a que poderíamos chamar de pluriministeriais. Uma unidade pastoral não pode ser um agregado de paróquias do padre para lhe facilitar a vida, mas uma comunhão de comunidades e cristãos que unem sinergias, capacidades, potencialidades, recursos, ministérios, numa diversidade corresponsável, aberta, dinâmica e participativa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As paróquias que estão a morrer"

quinta-feira, novembro 10, 2022

A encarnação de Jesus hoje

Estávamos numa amena discussão sobre a realidade das paróquias e dos padres que as presidem. As vozes que mais se faziam ouvir eram as vozes dos inconformados, como eu, que pensam as paróquias e a evangelização e ansiosamente querem dar passos na direcção missionária da Igreja. O ambiente da sala era composto por pessoas habituadas a reflectir, maioritariamente sacerdotes. Por isso se notava algum desalento no tom das vozes. E às tantas, empolgado e a esbracejar, um dos presentes clamou por uma nova Igreja, dizendo que era necessário que Cristo voltasse à terra, que encarnasse de novo para renovar tudo. Em resposta, um dos padres mais velhos, num tom de voz próximo do murmurado, por dentro da máscara que ainda se usava na altura, interveio para dizer que não era preciso, pois Ele estava dentro de nós. Não precisávamos que Ele encarnasse de novo no mundo, mas que nós o deixássemos encarnar em nós. E calou-me. Calou-nos. Com tudo o que esse silêncio significa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Que pode Deus fazer através de mim?"

sábado, novembro 05, 2022

o catequista que reza pouco

Pouco se esforça por ir à eucaristia e reza muito pouco. No entanto, gosta de ajudar e de dar o seu contributo à comunidade. Quando uma amiga, que é catequista, lhe lançou o convite, decidiu voluntariar-se com entusiasmo. Foi assim que descreveu a nova missão que queria abraçar. Ia dar um pouco de si na paróquia. O pároco agradeceu a nova catequista e, com alguma discrição, aproveitou a ocasião para recordar que a catequese serve não tanto para o catequista dar de si, mas para, passe a expressão, “dar” de Deus. Por isso recordou quão imprescindível era a oração. E prosseguiu. Assim como não há fé sem oração, é difícil falar de Deus sem ambiente de oração. Não são os dogmas, as normas morais ou as doutrinas que transformam as pessoas em crentes, mas o encontro, a proximidade e a intimidade com Deus. Também não se pode falar de Deus em abstracto, como teoria ou ideologia, pois isso apenas teoriza a existência de Deus e o mais provável é que o afaste da realidade do indivíduo. Nesse sentido, a evangelização ou a catequese têm de propor a oração e a contemplação. Viver dela. Por melhores, mais eficientes ou mais estudados que sejam os agentes de pastoral, em geral, ou os catequistas, em particular, o testemunho brota da oração. Fala melhor de Deus quem fala com Deus.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Nem Pai-nosso nem Avé-maria"

quarta-feira, novembro 02, 2022

Conheço um leigo que faz funerais

Numas localidades não muito remotas, onde o colega padre concentra o cuidado de mais de uma dezena de paróquias com uma população bastante envelhecida, muitos dos funerais são presididos por um senhor a quem o bispo da diocese pediu que auxiliasse este sacerdote. O senhor deve ser idóneo, pela formação que já teve e porque, dizem-me, é muito bom cristão. O colega padre não consegue estar em todo o lado ao mesmo tempo e são raras as semanas que não tenha mais de cinco funerais. Claro que a necessidade obriga a mudanças que em tempos eram impensáveis. Claro que não basta justificar esta mudança com a necessidade. Claro que ainda não é muito comum este procedimento, porque as mudanças têm custos. Claro que há um longo caminho a percorrer. Mas o caminho está ai, aberto. A abrir-se.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Custa tanto ser padre nestas ocasiões..."

quinta-feira, outubro 27, 2022

a religião do bem-estar

Ó senhor padre, quando venho à missa até me sinto bem. Pareço outra. Aqui encontro paz, e gosto muito das palavras do senhor padre. Claro que, ao escutá-la, o senhor padre em causa fica contente. Como se tivesse cumprido bem a sua missão de anunciar a Boa Nova da Salvação. Contudo, é bem provável que não o esteja a conseguir. É que a Justina vive, experimenta e defende uma espiritualidade de degustação. Aproxima-se da Igreja Católica tanto como se aproxima de outras experiências espirituais esotéricas ou das filosofias orientais. Também gosta de se encontrar com a natureza, sacralizando-a. É um pouco zen, dizem os amigos. Tudo lhe serve desde que se sinta bem. No fundo, ela busca a religiosidade para se sentir bem, ou seja, busca-a por si mesma e para si mesma. Não a busca para se encontrar com Deus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O senhor que agradece tudo"

segunda-feira, outubro 24, 2022

As gravatas dos padres

Ficara com a sensação de que a sua conferência sobre o baptismo e o sacerdócio comum dos fiéis não estivera mal. É certo que lhe apertava a gravata e o casaco de fato naquele dia de calor mas, tirando isso, a coisa correra bem e a assembleia parecia interessada. Já as pessoas iam saindo quando se lhe acercou um senhor da primeira fila, que o escutara atentamente, para o felicitar e lhe dizer que estava inteiramente de acordo com ele, pois também achava que o sacerdócio comum dos fiéis realçava o papel e lugar dos leigos na Igreja. Tinha apenas uma objecção que, para este senhor, era decisiva. Não queria incomodar, mas achava que o devia dizer: “Saiba, porém, que sou contra os padres de gravata”. No meio de um sorriso, o conferencista respondeu-lhe dizendo que não tinha nada contra padres com gravata ou sem gravata, contra padres com cabeção ou sem cabeção, e que ele ficasse tranquilo, porque não estava diante de um padre. O conferencista, que era um leigo, acabara por desconstruir a teologia do laicado do seu ouvinte. Afinal, este não entendera bem a igualdade fundamental da categoria do sacerdócio comum dos fiéis. Na sua mente ainda havia resquícios de uma distância assinalável, mas sobretudo distintiva, entre clero e leigo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja de mãos dadas"

quinta-feira, outubro 20, 2022

A educação na catequese

Entre os interessados no assunto, os agentes pastorais, os catequistas, falamos que é necessário revitalizar a catequese, para se tornar menos escolar e doutrinal, e mais kerigmática e testemunhal. Falamos que os esquemas e guiões actuais não funcionam, não correspondem às necessidades e expectativas das crianças e dos jovens, e se têm de remodelar itinerários que tenham em vista o amadurecimento da fé e não as festas e os sacramentos-festas. Mas falamos pouco da educação na catequese. Falamos pouco das crianças e dos jovens que vão à catequese e, com uma grande falta de educação e respeito, não permitem que as sessões de catequese decorram num ambiente adequado e necessário. A boa vontade dos catequistas, geralmente com fraca formação pedagógica, não chega para ultrapassar esta circunstância. Mesmo os mais formados têm enormes dificuldades. Dizia-me há dias uma catequista – por sinal uma das que já provou que consegue manter alguma autoridade nas sessões de catequese – que a falta de educação era tanta que, no seu grupo actual, não se coibiam de dizer carvalhadas na sala ou tratar-se mal diante do catequista. Embora não a maltratassem, nunca na sua vida tinha estado diante de um grupo tão mal-educado.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Esta Igreja é uma treta"

sábado, outubro 15, 2022

os padres santos XV

Conheço padres que querem ser bispos. Se calhar já se ordenaram com a vocação de ser mais que padres. Porque acham que ser bispo lhes dá um plus de qualquer coisa mais à vocação. Como se a vocação não fosse servir. Pergunto-me se quererão ser bispos para servirem melhor. Mas para servir melhor, basta estar pronto a servir. Como padres. Como leigos. Como, sobretudo, cristãos. E onde é que estes padres poderão ser santos? Serão santos na forma de querer ser mais e não se contentarem em ser menos que mais para Deus. Se acham que servem melhor como bispos, serão santos querendo ser bispos.

segunda-feira, outubro 10, 2022

os padres santos XIV

Conheço padres brincalhões. Que vivem com um sorriso na boca como se duas traves orientassem os maxilares nessa posição de alegria. Gosto destes padres quando são genuínos e não se riem para parecer que se riem ou para esconder a tristeza que os habita. Gosto de pensar que Deus é humor e que gosta de fazer rir de verdade. Por isso um padre brincalhão é sempre o início de um sorriso para fora dele. Não me refiro aos palhaços que são palhaços para se rirem a olhar para eles. Mas gente que está de bem com a vida dada por Deus e gosta de ver toda a gente bem-disposta. Por esse motivo, são santos a sorrir. Como se costuma dizer, mais vale um triste santo do que um santo triste.

quarta-feira, outubro 05, 2022

os crismas e as diferenças

A Cristina é uma jovem da paróquia que, depois de ter concluído dez anos de catequese, está a finalizar a preparação próxima para realizar o sacramento do Crisma. O João é de uma outra paróquia, que dista uns dois quilómetros desta, e deixou a catequese há muitos anos, logo que fez a Primeira Comunhão, pois não queria mais andar na seca da catequese. Entretanto, aquela paróquia deixou de organizar a catequese paroquial. A Cristina vai a crismar em breve nesta paróquia. O João crismou-se no ano passado na outra paróquia. São colegas na escola. Numa conversa de recreio, a Cristina contou ao João que ainda tinha uma série de encontros para o Crisma. Ela e mais alguns, como ela, estavam a fazer uma síntese da fé com a catequista, iam preparar algumas dinâmicas e animações para a celebração e parece que ainda teriam uma vigília de oração com o senhor padre. O João respondeu que apenas tinha tido uma reunião para se crismar. E bastara. O João gozou com a Cristina. A Cristina ficou triste. O João achou que o padre da paróquia dele é que era fixe. A Cristina não soube o que pensar. Não é que não gostasse do seu pároco, mas também gostava de ficar em casa em vez de ir aos encontros. Também não é que os encontros fossem propriamente uma seca, mas estava-se melhor sem eles. O João ficou na mesma, e a Cristina ficou a pensar. O João crismou-se para poder ser padrinho de papel. A Cristina é bem capaz de também se tornar apenas madrinha de papel. O João não teve oportunidade para o não ser. A Cristina está a ter essa oportunidade. Foi isso que lhe disse.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quer ser padrinho"

domingo, outubro 02, 2022

O dono da paróquia

Chamou-me a atenção quando, no início do ano pastoral, em meados de Setembro, se disse que o novo pároco iria tomar posse da paróquia no dia tal. Não é propriamente novidade, porque todos os anos, por essas alturas, se houve o termo “posse” para dizer da vinda ou ida de um novo pároco para uma ou várias comunidades cristãs. No entanto, o termo cristaliza, consciente ou inconscientemente, o clericalismo das nossas comunidades cristãs. Tomar posse é apropriar-se, adquirir uma propriedade sobre a qual se tem poder e se é dono. O termo sugere mais os direitos que os deveres, mais o poder que o serviço. E o novo pároco lá vai possuir a nova propriedade. É o seu novo dono.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Às vezes sinto que não escolhi o meu destino"

quinta-feira, setembro 29, 2022

buscar o senhor padre ao céu

Eram umas santas devotas, as senhoras que enfeitavam os andores. Castiças e faladeiras. Contavam como eram as festas noutros tempos. Os seus tempos de meninice, quando a vida dos povos ainda girava à volta das paróquias ou se confundia com elas. Um tempo bom, sem dúvida, mas também cheio de caprichos, veleidades, quimeras. Uma espécie de devoções pagãs. Ó senhor padre, porque é que não fazemos como fazíamos dantes? Era tão bonito. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu. A procissão passava por ali e a festa enchia-se de gente. As crianças levavam não sei o quê. Era um arraial. E mais isto e mais aquilo. Era uma alegria, senhor padre. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu.
As ideias das santas devotas não eram más, mas eram descontextualizadas. Muito descontextualizadas. Como uma casa com o telhado no chão, duas ou três paredes em pé, mas se quer habitar como se não fosse casa em ruínas. E às tantas, o padre, cansado das belas ideias que, por mais explicações que desse, não conseguia contradizer, teve de dizer, com o rosto entre o sério e o sorriso maroto. A melhor solução é irem buscar o senhor padre Manuel ao céu. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Procissões cheias de gente"

segunda-feira, setembro 26, 2022

Os pecados simplesmente

A senhora Antónia, que o nome me parece bem para a circunstância, faz parte do grupo de pessoas que tem medo de Deus por causa de achar que Deus castiga quem peca. No mínimo com o inferno. Por isso anda de roda dos padres à procura de sítio para entrar no céu, presa a alguma batina. E não se cansa dessa missão. Volta e meia, volta à carga com a sua aflicção. 
O pecado, minha estimada senhora Antónia, não existe para termos medo de viver. Existe como forma de ser pedra no caminho, e tanto pode servir para asfaltar a estrada, como pode servir para tropeçar na estrada. Viver o pecado com medo é o mesmo que ter medo da criação de Deus e do projecto de Deus para a criação. Como se Deus inventasse a criação de forma errada, por engano ou lapso. Como se Deus quisesse humilhar a sua criação imperfeita e assim deixasse claro quem mandava e quem tinha de obedecer. Como se Deus tivesse criado a humanidade para ter pena de nós. Não. Os pecados não são uma muralha. São uma ponte. São a humanidade que caminha na direcção do Deus perfeito e feito de amor. Perfeito no amor. O Deus que nos criou imperfeitos para nos amar como somos, na necessidade de caminhar para ser melhor. Esse caminho a que chamamos caminho da santidade.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me uma pecadora"

quarta-feira, setembro 21, 2022

O nosso senhor padre antigo

Numa troca de palavras com uma dezena de paroquianos, uma senhora, ao falar de um colega padre que fora o pároco deles há umas dezenas de anos, usou o termo “o nosso senhor padre antigo”. Olhei para ela com admiração e manifestei-lhe a minha alegria por ouvir falar do meu colega com esta designação, como se algo dele ainda restasse e quedasse neles. Como se ainda lhes pertencesse pelo bem que lhes fez. 
As pessoas que passam nas nossas vidas e nos deixam marcas são sempre um pedaço de nós e em nós permanecem desse modo. Por isso aquele meu colega ainda era um senhor padre deles, ainda que mais antigo do que o que aquele que tinham agora à frente dos rumos da paróquia. Foi muito bom ouvir aquelas palavras.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O padre que decidira deixar a comunidade sem padre"

sábado, setembro 17, 2022

Agarrado pelas mãos

Nos últimos dias vive entre picos de febre e rastos de febre. Come menos, segundo as cuidadoras me contam. Mas o rosto não engana. Come muito menos. Já fez alguns exames, mas apontam a nada que signifique algo concreto. Eu sei que a idade tem estas coisas e que a doença dele as destapa. Pouco olhou para mim desta vez. Nem os olhos ficaram parados. Ou se estavam parados, eu não via porque estavam igualmente fechados. Desta vez só as mãos falaram. O meu coração sente que a hora se torna mais visível e mais dolorosa. A enfermeira não o esconde. Eu gostava que ela o escondesse para eu pensar que eram apenas ideias minhas vindas da saudade e de um coração que deve tanto a quem nos dá a oportunidade de viver. Ao percebê-la, a lágrima cai pela máscara. Ninguém dá conta. Ele está no mundo dele e a enfermeira virou costas. Dou-lhe muitos beijos através da máscara. Encosto a minha face aos seus lábios e peço um beijo. Ele deu. Um beijo muito apagado, mas que guardei como se fosse o beijo mais expressivo do mundo e arredores. Foi o sinal mais positivo do meu paizinho nesta tarde. Enorme sinal. A ajudá-lo, as mãos agarradas quase o tempo todo da visita. Muito agarradas. Só me lembrava que eram o pedido para as não largar. No final decidi que em breve irei de novo, mas com os óleos dos enfermos na minha mala.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O tempo do meu pai"

quarta-feira, setembro 14, 2022

os pecados e as pessoas

No mundo há, a meu ver, quatro tipos de pessoas que se relacionam com o pecado de modo diferente. Existem pessoas constantemente aflitas por causa dele. Fazem parte de um modo de ser Igreja que aprendeu a viver a fé presa ao antigo e com o pecado repetidamente a entrar pelos ouvidos e pela cabeça. Não conseguem deixar de ter medo de Deus que castiga os pecadores. Existe, no sentido oposto, um grupo de pessoas, substancialmente maior, que vive sem pecado, porque o que uns chamam de pecado outros lhe desconhecem o nome e o sentido. Ou não querem saber destes pormenores da vida da Igreja ou minimizam-nos. São o segundo e terceiro grupo de pessoas a que me refiro. Os que minimizam o papel e significado do pecado fazem parte dos que, de certo modo, podemos denominar de progressistas. Com base no amor infinito de Deus, desculpam com isso todas as suas falhas. Ultrapassam o pecado fazendo de conta que ele não tem peso ou pesa como um pequeno grão de pó numa balança. Também neste lado estão as pessoas para quem a vida não precisa destas coisas de Deus e se riem do que os católicos chamam de pecados. Vivem sem a consciência de pecar. O pecado é um termo que não faz parte das suas vidas e do seu mundo. E mesmo que a consciência os acuse de algo, nunca lhe dão o nome de pecado. Existem ainda aquelas pessoas que encaram com naturalidade o seu pecado e tentam incorporá-lo, para poderem lidar com ele e o superar. Não vivem com medo de Deus, e usam os pecados como ocasiões para fortalecer o caminho para Deus. É que essa fragilidade os faz reconhecer a necessidade do amor de Deus na forma de perdão.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Senhor, toma o meu pecado"

sábado, setembro 10, 2022

Testemunho sem nome e sem medida

A filha mais nova morrera com meningite. Tinha pouco mais de três anos quando o fatídico sucedeu. Os pais ficaram destroçados, como é de imaginar, e esqueceram que tinham outro filho, um pouco mais velho, com a idade suficiente para pensar estes acontecimentos e achar que os pais estavam perdidos e focados na morte da filha, esquecendo que eles próprios tinham uma vida e outro filho a precisar deles. 
Um dia, já lá iam vários meses da morte da irmã, o filho decidiu confrontar os pais com estes pensamentos, pedindo-lhes que não se esquecessem que ele existia, estava vivo e precisava deles. No seguimento da conversa, rogou-lhes que fossem ao jogo de futebol que ele tinha no dia seguinte, para o aplaudir e para o acompanharem num momento que lhe era muito importante. Os pais, caindo em si, decidiram acompanhar o filho. E lá estavam, naquele dia, na bancada do campo de futebol para se fazerem presentes na vida do seu filho, quando uma trovoada irrompeu pelo meio do jogo e um raio atingiu o filho que lhes restava, acabando por lhe tirar a vida. Ficaram sem chão, sem tecto, sem paredes, sem nada. 
A mãe contava tudo com os olhos lacrimejantes. Mas vivos. Haviam passado muitos anos. E ela não tinha deixado morrer a sua vida. A conversa que estava a ter com outras mães versava sobre a fé, sobre a sua necessidade, sobre os seus frutos e sobre a importância de Deus nas nossas vidas mesmo, e sobretudo, no meio das adversidades e afrontas. Quem a escutava perguntava como é que ela e o marido haviam conseguido ultrapassar e lidar com isto. E aquela mãe explicava que só a fé a ajudara a viver com esta dor. Ela que, antes da morte dos filhos, não tinha fé, passara a tê-la. Mais, dizia que não tínhamos nada e sabia que os filhos que trouxera ao mundo eram mais de Deus que dela. No entanto, sempre que rezava, os filhos voltavam a ela. Voltavam com Deus. E assim, em Deus, continuava a ter muito dos filhos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A Olímpia e o milagre da vida"

terça-feira, setembro 06, 2022

O direito ao aborto

Ao contrário de algumas que o pensam mas não o conseguem dizer na minha frente, uma jovem da comunidade dizia-me abertamente que era a favor do direito ao aborto. A conversa não estava inflamada nem tinha a ver com quem ganhava ou tinha os melhores argumentos. Era uma conversa franca e aberta, como deveriam ser todas as conversas onde a Igreja se faz presente. A Joana dizia que as mulheres precisavam ser defendidas e tinham o direito de optar. Portanto, o foco da Joana eram as mulheres. As mesmas mulheres que, por exemplo e como lhe lembrei, morrem em embarcações para fugir de guerra, com a designação de refugiadas, e não se defendem com tanta veemência. Essas morrem esquecidas. Também a Joana dizia que muitos dos que defendem o não ao aborto são os mesmos que defendem o porte de armas ou a construção de muros entre países. E tem razão a Joana. Nisto concordámos. E embora o seu foco continuasse preso na mesma linha, abrira a possibilidade de falarmos da diferença entre legislações, direitos e bem comum ou bem das pessoas. A missão do legislador não é impor a moral, mas buscar o bem comum. Na verdade, descriminalizar o aborto não significa que haja direito de abortar. Assim como, por exemplo, descriminalizar a prostituição não significa que haja direito de se prostituir ou de procurar prostitutas. O que nos deveria preocupar não eram os direitos ou as leis que favorecem ou desfavorecem opções, mas as opções que fazemos. O nosso foco não deveria estar no bem particular de cada um, mas no bem comum, no bem da humanidade, no bem da criação. Pode parecer um exemplo despropositado, mas eu li-o algures. Uma coisa é a obrigação de não maltratar os animais e outra a de conceder direitos aos animais. No final da conversa nenhum dos dois mudou de opinião. Eu sou contra o aborto e ela a favor do direito de abortar. Proporcionou-se, porém, um diálogo muito interessante, que talvez tenha mudado o foco da Joana e, ao menos, me fez pensar que uma coisa é o direito ao aborto, direito que ninguém deveria ter, e outra a sua descriminalização. Uma coisa é o que a lei descriminaliza e outra um direito ético. Uma coisa são os interesses de cada um ou cada uma e o projecto da humanidade e da criação.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Devo o meu filho à minha mãe"

quinta-feira, setembro 01, 2022

Um concílio desconhecido

Já não é a primeira vez que falo do Concílio Vaticano II nas homilias. Os meus paroquianos hão-de saber, ao menos, que existiu algo tão importante que mudou substancialmente o rumo da Igreja, que passou a ser um pouco mais comunhão que elite, um pouco mais aberta ao mundo que fechada em si, entre outras tantas ‘revoluções’ que pediram uma Igreja mais humanizadora, aberta, participativa, corresponsável e missionária. 
Contudo, as senhoras da paróquia não sabiam o que isso era. Não sabemos nada dessas coisas dos concílios, diziam. Claro que não sabem, porque ainda somos fruto de uma Igreja que não ensinava senão a moral e os costumes. Somos fruto de uma Igreja de promessas, devoções, procissões e sacramentos para assinalar estados de vida. As homilias são, muitas vezes, o único momento de formação dos nossos cristãos. E são também, outras tantas muitas vezes, um espaço de palavras piedosas sem mais. Embora elas devam ser uma actualização da Palavra de Deus nas nossas vidas, não chega fazer homilias piedosas. É preciso ajudar as pessoas a entender a essência do cristianismo, pois só assim se consegue entende o que é ser cristão. Por isso perguntei a uma destas senhoras boas da paróquia, uma daquelas que a idade já marcara, se tinha memória da missa passar a ser dita em português, na língua vernácula. Ah isso, sim. E de o padre deixar de celebrar de costas para o povo. Ah isso também. Ora, essas mudanças, e muitas outras similares, foram operadas a partir deste concílio. Ah, então esse concílio deve ter sido uma coisa muito boa, senhor padre. Pois foi, pois foi.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja formatada"

domingo, agosto 28, 2022

o tempo do meu pai

O tempo parou nos teus olhos parados. Parei-o sem querer, no esboço de um sofrimento que não sei medir, porque tu não o sabes dizer ou expressar nesta fase da doença e da vida. O teu olhar vazio. O meu olhar cheio. Cheio de tanta inquietação e pergunta. De tanta saudade. A saudade das conversas enormes sobre a vida e sobre a banalidade das coisas no sentido maior delas. A saudade de falar contigo abertamente sobre as nossas coisas, de pai e de filho. A saudade de te ver a viver, de um lado para o outro, a rezar com o terço na mão, a fazer o comer sobre a banca da cozinha, a sorrir. Sim, a sorrir por debaixo do bigode e por dentro dos óculos. O que mais dói é que quem olha para o teu olhar vazio não sabe nunca o que os teus olhos pensam, sentem ou estão a ver. É a incerteza do que sentes que mais dói. 
Hoje parei o tempo de mãos dadas com o meu pai na casa de cuidados onde é cuidado. Sem palavras. Mesmo sem palavras para os pensamentos. Sem reações. Dele ou minhas. Restou a forma de amar no silêncio das palavras e das manifestações. Restou estar ali a olhar para o pai que me ofereceu a possibilidade de viver. E a amá-lo, olhando-o e passando a minha mão na sua face enrugada e encovada. Cada vez mais encovada. Rezei. Claro que rezei. Rezei para dentro e para fora, de modo que ambos me ouvissem, o meu pai e o pai do céu. Que mais podia fazer senão oferecer tudo a Deus. Entregar-lhe quem tanto amo. Entregar quem tanto amo a quem tanto amo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Feliz dia do pai"

quinta-feira, agosto 25, 2022

pessoas que são pedras [poema 352]

na vida existem pedras que são pessoas no caminho

pedras que são pesadas ou atiradas,

pedaços de vida que crescem e são

escadas,

 

pedras que andam e nunca vão a sós,

embora partam de corações partidos

e nos muros cheguem a sangrar,

para construir as torres dos castelos

que um dia hão-de ser 

 

histórias de encantar

domingo, agosto 21, 2022

O padre de férias

O telefone tocou várias vezes. Chamadas de números diferentes, mas coincidentes no propósito. Senhor padre, eu sei que está de férias, mas precisava de um documento. Padre, eu sei que está de férias, mas precisava falar consigo. Padre, olhe, eu sei que está de férias, mas precisava marcar um baptizado. 
Claro que para Deus não há férias e o ministério do padre também não tem férias. Não há uma hora ou umas horas para ser padre. O padre é-o por inteiro, em todo o lado e em todo o momento. Igualmente nas férias. E também deve primar pela disponibilidade. Contudo, depois de saberem que o padre estava de férias, como afirmaram ao telefone, e depois deste ter informado a paróquia com antecedência que ia estar de férias entre os dias tal e tal, e que se tivessem assuntos para tratar o fizessem atempadamente, não seria oportuno também deixar o homem descansar?!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre é o 'tem de'"

sexta-feira, agosto 19, 2022

dentro [poema 351]

gosto de guardar as coisas para dentro

tenho esta mania de escondê-las para as não ver

com os olhos abertos

 

gosto de viver por dentro das coisas

no movimento que entra e sai sem o ranger das portas

e entro por fora e fujo por dentro

de olhos fechados,

a ver.

segunda-feira, agosto 15, 2022

Passar de uma pastoral dedutiva a uma pastoral indutiva

A nossa acção pastoral tem partido, erradamente, do pressuposto divino para chegar ao homem, quando devia partir do pressuposto humano para chegar a Deus. No meio da secularização em que vivemos e no meio de um enorme desinteresse das coisas de Deus, pelo menos as que estão personalizadas numa Igreja que se tem tornado irrelevante às novas gerações, deveríamos, na minha humilde opinião, deixar a pastoral dedutiva para passarmos a uma pastoral indutiva. Deveríamos partir da experiência humana para a iluminarmos com a experiência divina e não ao contrário. Não falar do ser humano a partir das realidades religiosas, mas falar de Deus a partir do ser humano. Não deveríamos gastar as nossas energias em apresentar Deus de uma forma dogmática, moralista e sacramental, mas sim um Deus que constantemente se aproxima do homem na sua humanidade, entendida esta humanidade como forma natural de se viver. Nos tempos que correm, já ninguém aceita passivamente uma doutrina que nos ensina a existência e soberania de Deus, por mais que se diga que Ele é amor. Porque só se chega à fé através de uma relação com Cristo experimentada na realidade quotidiana.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pastoral de gestação"

quarta-feira, agosto 10, 2022

Assim é que querem que os jovens vão à igreja?!

Já não via há bastante tempo a cara daquela mãe. Não tem aparecido na missa nem outros actos comunitários. E também não nos temos cruzado na rua. Mas, porque se o filho tivesse concluído a catequese sem faltar poderia crismar-se no final do ano, veio ter comigo à sacristia para dialogar sobre a possibilidade deste fazer o crisma juntamente com os colegas que foram assíduos à catequese, nunca disseram, como ele, que preferiam não ir à catequese e nunca responderam mal à catequista quando esta perguntara porque faltara. Agora o discurso, pelos vistos, mudara. E a mãe que, segundo me disse, não sabia de nada e, tal como era previsível, a culpa era da catequista que nunca lhe dissera nada, agora estava preocupada. Há cerca de um ano que o filho não quer saber da catequese nem a mãe saber se o filho ia à catequese. Mas agora estava preocupada porque achava injusto o filho não fazer o crisma. Claro que lhe foram sugeridas várias soluções, mas ela só queria a que tinha na cabeça: fazer já... porque para o ano ele desiste. Como se ele não tivesse já desistido. Entretanto, para conseguir os seus intentos e porque tardava em consegui-los, achou que chantagear com a típica frase “Assim é que querem que os jovens vão à igreja?!” era o último recurso. Enganou-se, porque nem ela nem o filho vão à igreja. E por isso foi fácil perguntar-lhe qual seria a diferença entre estar crismado e não estar crismado para o filho e sua mãe irem à igreja.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta Igreja é uma treta"

quinta-feira, agosto 04, 2022

Um Deus abaixado

Quando penso na encarnação de Deus, não me contento com a alegria do seu nascimento entre nós. Não me contento em apreciar como assumiu a nossa humanidade em todos os seus aspectos, inclusive o sofrimento, dor e morte. Estou convencido que o propósito de Deus na encarnação não era mostrar-nos o seu poder omnipotente e omnipresente. Um deus que tornara capaz assumir uma humanidade ou um deus capaz de se fazer presente até na humanidade. O seu propósito era pôr-se a caminho connosco. Quando imagino um Deus que morre de braços abertos numa cruz, ladeado por dois criminosos, só posso pensar que Deus se abaixou aos homens todos, a começar pelos mais indigentes, pelos menos apropriados, pelos menos contados, pelos que um poderoso deus não poderia igualar-se. O nosso deus é um Deus abaixado até aos abaixados dos abaixados. Nisso está o seu maior poder.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A justiça de Deus"

segunda-feira, agosto 01, 2022

na sombra [poema 350]

vivo à sombra das horas, que se prolongam ao entardecer

vivo numa imagem sem rosto e sem cor, colado, e digo 

a esquecer

 

que fazes aqui, meu amo, e te vejo dentro sem te ver?

 

vivo à sombra das coisas, 

sempre a aparecer.

quinta-feira, julho 28, 2022

O padrinho não baptizado

Ó senhor padre, estou a ligar-lhe porque tenho uma prima que quer batizar o filho, mas tem uma dúvida: o padrinho da criança não está baptizado. Há algum problema em relação a isso? 
O padre quase petrificou diante da pergunta que lhe fizeram ao telefone e tardou uns segundos, que pareceram anos, a recuperar da quase petrificação. Partiu do princípio de que o padrinho estava escolhido, estava convidado e só não estava baptizado. Porque a pergunta não era sobre se podiam escolher um padrinho não baptizado. Era se havia algum problema por o padrinho não estar baptizado. 
Talvez o pobre padre até tenha exagerado na reação escondida por detrás do telefone, pois há muitos padrinhos baptizados e crismados que não cumprem o papel que assumem no baptismo dos seus afilhados. Além disso, se o desconhecimento, para não dizer ignorância, das pessoas nas coisas da fé é enorme, muito se deve a uma Igreja que se preocupou mais em fazer sacramentos do que em formar para eles, em dar o que as pessoas pediam do que em provocar experiências de encontro com Cristo. Reconheçamos ainda que grande parte dos pais que pedem baptismos para os seus filhos o fazem por questões afectivas, sociais e culturais. Nesse sentido, o padrinho só precisa de ser afectivamente importante para os pais e eventualmente para a criança que vai a baptizar. Portanto, que problema tem escolher um padrinho que não está baptizado? Nenhum. É igual ao litro. Ou então não. E depois do padre ter respondido amavelmente à pergunta que lhe tinham feito, ouviu do outro lado o habitual “os padres só complicam”. E o telefone desligou-se.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Deus de folga"

domingo, julho 24, 2022

a missa dela

O pároco encontrou-se com ela na rua, um dia depois do baptizado do filho, que ocorrera na eucaristia dominical. Tinha sido uma festa bonita e, por isso, enquanto a saudava, o padre manifestou, com naturalidade, este sentimento. O que ele não esperava era a reação fria da senhora que, imediatamente, lhe disse que não gostara porque, num dia de festa de celebração da vida do seu filho, o padre tinha celebrado por mortos. O que é compreensível porque, nestas paróquias pequenas, as pessoas mandam celebrar pelas intenções dos seus mortos nas eucaristias dominicais e o pároco só tem obrigação de celebrar uma missa sem intenções, a chamada missa pro populo. A eucaristia é de todos e de toda a comunidade. A senhora, que até nem costuma ir à missa, estava indignada porque aquela era a sua missa. Só faltou dizer que a pagara e que o padre apenas tinha de fazer o serviço que lhe pedira. Lá voltamos ao de sempre. Por mais que um padre se empenhe e esforce em fazer destes sacramentos um momento excelente de evangelização, com a alegria que brota do Evangelho, nos tempos que correm, nesta Igreja prestadora de serviços sem fé ou com uma fé infantilizada, um encontro de rua que podia ser um momento de comunhão tornou-se um momento desagradável, para não dizer intragável.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma benção especial de alianças"

terça-feira, julho 19, 2022

A Igreja líquida

Leio muito sobre a Igreja. Gosto de pensar a Igreja na sua eclesialidade. Gosto de reparar atentamente no rumo dela e no que falam dela. Procuro entendê-la por dentro, se isso é possível. Não tenho certeza que seja, mas procuro olhá-la fundo, por detrás dos acontecimentos e dos milhares de palavras que vou lendo sobre ela. E nos últimos tempos, numa das minhas constatações, fiquei um pouco inquieto, isto é, com vontade de deixar um grito sufocado tornar-se um grito amplificado. 
Hoje a Igreja vai tomando decisões por pressão da sociedade e não por decisão própria. Se há umas centenas de anos ela influenciava ou fazia por influenciar a sociedade, agora é um pouco mais ao contrário. E se isso é interessante, porque significa que ela ouve a sociedade que deve ouvir, também temo que, numa sociedade de opiniões e aparências, ela se deixe moldar por opiniões ou por agrados. Numa sociedade líquida facilmente a Igreja se pode tornar uma Igreja líquida.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Amanhã vou comprar mais luz para esta igreja"