quinta-feira, setembro 30, 2021

Os tempos das coisas

No encontro de preparação do baptismo do seu filho pequeno, à pergunta sobre o motivo pelo que tinha decidido baptizar o filho, o pai do Manelito, respondeu com honestidade que o fazia por tradição e porque a mãe, ou seja, a avó do Manelito, lhe chateava a cabeça para o fazer. Ipsis verbis. Ia baptizar o filho por ser uma tradição e porque, de certo modo, seguia o hereditário desejo dos seus antepassados. 
Esteve atento e foi dialogando quanto baste. Não estava muito interessado no encontro, mas também não estava lá como se não estivesse. E no final, fez a pergunta natural de quem está mais preocupado com outras coisas: quanto tempo vai demorar a coisa? Porque as coisas demoram tempo, porque o tempo de Deus é sempre diferente do nosso e porque ele precisava ouvir a minha resposta tal como lha dei, disse O tempo que for necessário. Os tempos das coisas são sempre os tempos necessários. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Deus de folga"

terça-feira, setembro 28, 2021

enxurrada de pessoas [poema 336]

e a enxurrada trouxe as pessoas arrastadas, 
e agarradas, umas nas outras, 
apenas as mãos seguradas 
 
e os outros somos nós, quando chegam 
as últimas chuvas, na vida que se apresenta 
como eterna primavera na tormenta 
 
a enxurrada 
lenta

sexta-feira, setembro 24, 2021

futuro sem pessoas

Numa sondagem realizada este ano a jovens entre os dezoito e os vinte anos, pelo instituto Noto Sondaggi e encomendada pela fundação Donat-Cattin, em itália, concluiu-se que 51% dos jovens entrevistados não se imaginam como pais. Não querem sê-lo. Uma pesquisa realizada em 2018 no Brasil, pelo Nube – Núcleo Brasileiro de Estágios - perguntou a 41.389 pessoas, na faixa etária de 15 a 26 anos, se pretendiam ter filhos, e 28,3% dessas pessoas revelaram não considerar a ideia de ter filhos. Outra pesquisa americana, do Instituto PEW, realizada nesse mesmo ano, constatou que cresce o número de americanos que declaram não querer ter filhos no futuro. E o Census 2021 em Portugal revelou uma perda total de 214 286 habitantes em 10 anos. 
Pelos vistos, as novas gerações não querem formar família ou ter filhos. Não querem ser fecundos. Não querem este tipo de compromissos. Como muitos outros tipos de compromisso que lhes criem exigências para além do suposto bem-estar. É muito estranho, uma vez que a felicidade acontece pelo amor e o verdadeiro amor é fecundo, isto é, saí de si para os outros e espelha-se ou espalha-se nos outros. Nós somos potencialmente felizes porque temos a oportunidade de amar. Por isso, os solitários têm dificuldade em serem felizes. 
A continuar assim, o mundo terá cada vez menos pessoas, tanto no sentido demográfico como no sentido antropológico. As pessoas não querem mais pessoas! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O senhor que agradece tudo"

terça-feira, setembro 21, 2021

uma instituição vazía, ainda que cheia de actividades

Pode-se afirmar que a Igreja sempre foi prolífera em iniciativas pastorais. Nos últimos anos,  desde o Concílio Vaticano II, esta forma de se viver em Igreja cresceu exponencialmente. A denominada Nova Evangelização, ideia bastante interessante na sua génese mas parca na sua prática, incrementou a criatividade pastoral. E estes tempos pós-modernos, voláteis, líquidos e plurais, são tempos que privilegiam, mesmo social e culturalmente, o excesso de actividade e de comunicação. A Igreja apenas vai na onda e por isso - desde as Igrejas particulares à Igreja universal representada pelo Vaticano - vive envolta de livros, notas pastorais, congressos, palestras, eventos religiosos e afins. 
No meio de tanta iniciativa pastoral, sobra pouco espaço para se viver aquilo que se prega. Sobra pouco espaço para o testemunho, essa acção discreta, diária e simples de mostrar que Cristo é a razão de viver por excelência. Dizia Paulo VI que “O ser humano moderno precisa de ver como se vive, mais que ouvir dizer como se deve viver”. 
A Igreja do futuro ou será uma “Igreja Testemunho” ou será cada vez mais uma instituição vazía, ainda que cheia de actividades. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Quer ser padrinho"

quinta-feira, setembro 16, 2021

in-definição [poema 335]

vejo-me em ti, na penumbra dos dias que são noites 
sinto os teus passos pelo toque silencioso do soalho 
perco-me como se fosses apenas minhas entranhas 
há um misto de terror, medo e entusiasmo pelas dúvidas 
serás tu ou serei eu a caminhar por mim adentro? 
serei eu a tua presença nas coisas que desconheço? 
serás tu a noite que parece não querer acordar? 
serei eu a réstia do que sobrou da criação? 
 
vejo-me em todo o lado, como tu és a habitação do mundo, 
nascem arrepios e não é frio. É mesmo não saber nada de ti 
e saber que este nada saber és tu, sempre, mas sempre 
em mim

domingo, setembro 12, 2021

Nunca pensei em ser padre para ser um padre

Nunca pensei em ser padre para ser um padre. É certo que a imagem do padre da minha terra, um homem carinhoso e com algum carisma, marcava os meus tempos de criança. Hoje, porém, não lhe sei mais as feições nem as marcas. Recordo que na catequese me distinguia por ser um petiz que sabia coisas e gostava de saber, que dizia coisas de coração sem as pesar. E dizia coisas bonitas de Deus que começava a amar. Aliás, que tinha começado a amar em casa. Recordo também que olhava para os padres como se todos fossem santos. Como se não existisse neles nenhuma marca de impureza. Ainda me lembro – e agora rio-me - de ter pensado que os padres não iam à casa de banho, porque esse era um lugar de imundície. Muito menos os bispos. E o papa seria imaculado. Contudo, nada disto me iludiu a ser padre. Nunca quis ser padre para ser assim. Foi apenas uma voz que ouvi por dentro e que não sei definir. Muito menos na altura. E essa voz era fantástica. Queria-me e pronto. Uns anos depois dei-lhe o nome de vocação. E aceitei que assim fosse nos tempos de Seminário, à procura da voz e da vontade que, tinha a certeza, vinha de cima. Ainda não sabia os meandros do clero, que fui descobrindo aos poucos. Sempre gostei mais da voz. Muito mais. Sempre a achei mais verdadeira que tudo o resto. E ainda acho. Ou tenho a certeza. Ao longo da minha história a caminho, o que sempre quis foi fazer a vontade dessa voz. Desse por onde desse. Como padre ou como ela quisesse. Hoje, olhando para trás, dou por mim a magicar a certeza de que decidi ser padre, não para ser padre somente, como algo que se faz, como uma função, como um emprego ou ganha-pão, mas como a forma de escutar constantemente a voz que me diz que me quer e pronto. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Ser padre como um cireneu"

quarta-feira, setembro 08, 2021

As paróquias deixarão de ser paróquias!

Mais de oitenta por cento das paróquias a meu encargo não chegam a duas centenas de habitantes. Duas delas têm no máximo três dezenas de habitantes. No censos de 2021 constatou-se um decréscimo assinalável. A mesma realidade encontramos em muitos outros locais, sobretudo no interior do país desertificado. As pequenas dimensões de algumas comunidades paroquiais e uma prática cristã reduzida em muitas outras, impedem-nas de ter os dinamismos necessários a uma comunidade activa ou confrontam-nas com a falta de meios e recursos humanos e materiais para sobreviverem com a qualidade necessária. Além disso, a sua ação tem sido quase exclusivamente sacramentalizadora, sem grandes conversões de coração, envolvimento na comunidade, encontro com Cristo, ou fé esclarecida e amadurecida. 
A paróquia, que tem vindo a deixar de ser o centro de vida das pessoas e a deixar de ter exclusividade para a caminhada de fé dos cristãos, não deveria pensar-se como um território ou um aglomerado social de indivíduos batizados, uma instituição puramente jurídico-administrativa, ou uma simples estação de serviços religiosos. Assim como, naturalmente, não há comunidades sem pessoas, também não têm futuro as comunidades cristãs com estruturas estáticas, centralizadas em párocos, pouco colegiais e fechadas a serviços mais partilhados. 
É capaz de ser necessário ultrapassar o modelo feudal das paróquias e de uma Igreja em que o único eixo ou o principal eixo sejam as paróquias. O modelo tridentino do sacerdócio e de organização da Igreja, para além de fazer cada vez menos sentido, na prática, não está a ser possível. A corda esticada está já muito esticada e quase a rebentar! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As paróquias que estão a morrer"

sábado, setembro 04, 2021

os padres santos XII

Conheço padres que são autênticos democráticos. Não fazem nada sem ouvir as opiniões todas. Parece que têm medo de assumir as consequências das suas opções. São muito bons a escutar os outros. A precisar dos outros. A viver não sendo o centro. Mas às vezes não conseguem ser coordenadores. Apenas fazem listas de opiniões e de escolhas. Ao menos são democráticos sem serem políticos no sentido que vivem para ter maiorias. Contudo, vivem a indecisão como uma sombra. E depressa são apagados pelas dezenas de leigos que são mais decididos e se impõem. Claro que isso não tem verdadeiro mal. O mal existe apenas quando se deixam ir na corrente. E são santos também na medida em que, tal como Deus, não se querem impor. Vivem para o que os outros quiserem.