sábado, março 29, 2014

Nós não ressuscitamos

Por entre as colheres de sopa e os garfos das batatas cozidas, a conversa gerava-se à volta de tudo um pouco. À mesa do restaurante a comida entra-nos misturada com muito assunto à mistura. Para isso nos sentamos acompanhados. Às páginas tantas, veio à baila o livro de um colega com o título “Ressuscitarão os mortos?”. E disse Já li e aconselho vivamente, como se o advérbio acrescentasse à acção alguma coisa mais. Não recordo porque acrescentei Vivamente, mas agora que estou a escrever parece que faz uma conjugação interessante com o título do livro.
Ora uma jovem esposa que se encontrava em diagonal comigo, para fazer parte da conversa, anuiu com um Claro que sim, claro que ressuscitamos. E porque ninguém dizia mais nada, insistiu. Há alguma dúvida?! Chegou a usar o nome de Deus para validar as palavras. Pelo amor de Deus, fico com pena que alguém possa duvidar, pois que seria de nós se não ressuscitássemos?! A jovem esposa tinha uma fé genuína, mas o padre, que era eu, acenou que não. Ela parou de abrir a boca para comer e abriu-a para se admirar. No meio do meu acenar, fiz uma afirmação que fez parar talheres, pratos, copos, olhos e bocas das outras três pessoas que almoçavam connosco. Nós não ressuscitamos. E repeti. Nós não ressuscitamos. Depois de ter engolido em seco, a jovem esposa pôs os olhos nos outros e a pergunta em mim. Então, mas nós não ressuscitamos?
Com um ar o mais sério que possais imaginar, poisei o meu talher, mudei o tom de voz, aquele tom de voz mais cavernoso, e respondi. Não, minha amiga. Nós não ressuscitamos. Quem ressuscita são os mortos. A jovem estava tão desarmada, que não conseguia ainda chegar à compreensão e mantinha a posição de estátua que não come, não pensa nem sente. Por isso acrescentei. Olha lá, porque cargas de água é que nós, que estamos vivos, precisamos de ressuscitar? Só os mortos é que ressuscitam. Vou-vos dizer, este padre nunca mais toma juízo.

quarta-feira, março 26, 2014

Os contactos do vaticano

Ele há cada uma! Imaginem que há uns dias atrás um indivíduo, que se apresentou como Mestre de uma Ordem, me veio pedir por email os contactos do Vaticano, porque tinha umas necessidades que não me soube explicar, mas que eram grandes. Imagino que do tamanho do Vaticano. Não me explicou as necessidades, mas pareceram-me estranhas, mesmo sem as explicar. Tentei ser delicado informando que não tinha esses contactos. Ele respondeu que poderia parecer-me esquisito, mas que falava a verdade e que sabia de fonte segura que eu teria esse tipo de contactos. Mais gostaria, se possível, que lhos desse ou que, se porventura eu não lhos pudesse dar por qualquer motivo secreto, que lho dissesse. Acreditem que eu quis acreditar. Acreditem que fiz esforço por lhe responder com caridade. Acreditem que não quis imiscuir-me nas necessidades do senhor. Acreditem que não quis julgar a pessoa em causa. Porém, tive de dizer-lhe que essa sua fonte segura era muito insegura, pois de facto não tinha nem tenho esse tipo de contactos. Nem sinto necessidade de os ter. Para que haveria de um simples padre precisar de contactos do Vaticano? Sugeri-lhe que procurasse no site do Vaticano e que podia ser que lá encontrasse o que desejava. De resto não lhe podia ser mais útil. Ainda hoje acho que o mais estranho no meio desta estranheza toda está na segurança com que assegurava que eu tinha os ditos contactos. Só faltava ter-me pedido o contacto de telemóvel do Papa, ou até de Deus. Olha que ele há cada uma! Alguém por acaso sabe os contactos do Vaticano?

sexta-feira, março 21, 2014

minha barca de papel [poema 8]

Vais na barca, não vais?

Eu vou nessa barca aos ais.
Vão outros tantos a mais,
Muitos como eu, iguais
Nunca mais chegamos ao cais.

Fico na dúvida se vais
Ocupado com os meus ais
Caminhas, não sei se vens ou sais
Cansado dos meus ais
Como tantos iguais,
Muitos, muitos mais.
Sei ao menos que não cais.
Mas vais na barca, não vais?

Eu vou para onde vais.

Hoje, Dia Mundial da Poesia, tinha de deixar aqui umas palavras...

quinta-feira, março 20, 2014

Feliz dia do pai

Estava aqui sentado, com a janela fechada e uma temperatura primaveril, quando senti entrar-me pelas costas, ou pela espinha dentro, um arrepio de frio. Olhei na direcção da janela para verificar se estava mal fechada. Não estava. Eu é que deixara o peso dos pensamentos crescer na cadeira onde estava sentado, e arrefecera entretanto.
Hoje levei o meu pai a jantar. Depois dos meus serviços fiz uma série de quilómetros para o levar a jantar, que hoje é dia do pai. Está entradote o meu pai. Está muito capaz. Mas está entradote na idade e na vida. Hoje estava doente com uma grande constipação que se notava na voz. Queria dizer-lhe tudo o que um filho deve dizer a um pai, e disse algumas coisas. Despedimo-nos com um Eu Amo-te muito, pai, e ele respondeu que também me amava muito. Mas as minhas palavras pareceram-me poucas face ao que lhe devo. Deve-se tanto a um pai! E quando se vê a vida a passar, perguntamo-nos que será da nossa vida quando a vida nos levar os nossos pais? Já sei o que é perder uma mãe. Mas ainda não sei o que é ficar completamente sozinho no mundo sem aqueles que nos deram a vida, a oportunidade de ser, e nos criaram para sermos. Ficar assim, a olhar para palavras que gostaríamos de dizer e confidências que gostaríamos de fazer. Ficar assim, a olhar o mundo de forma despernada. Ficar assim, cortados todos os cordões umbilicais, a pensar que a vida fica sem ter a quem se agarrar da forma mais gratuita que possa existir. Ficar assim a pensar que a vida passa depressa e a nossa não pára para descansar. Ficar assim, com uma sensação de que já não temos mais ninguém que nos ame como nos amam os pais.
Fiz os quilómetros de volta a casa, onde moro na paróquia, num passo desacelerado, esquecido no rosto cansado do meu pai. Não me imagino sem as comidas que me faz, a custo, quando vou lá a casa. Não me imagino sem as preocupações que ele me dá, garantindo que a minha vida de filho faz sentido. Não me imagino sem as suas orações. Não me imagino sem os seus ensinamentos preocupados. Não me imagino não ter a quem ligar todos os dias. Não me imagino chegar a casa para a minha folga e entrar nela sozinho, para ficar nela ainda mais sozinho.
Um pai não tem definição, porque um pai não se explica. Ama-se. Um pai é aquele ser que nos faz ser o que somos. E depois é aquele que, na velhice, nos ajuda a ser como devemos ser.
Dá-me vontade de abrir a janela para entrar todo o frio do mundo a fim de sentir que estamos vivos, eu e o meu pai. Mas não abro. Antes me ocorre outro pensamento que me enterra e arrefece ainda mais na cadeira. E quem um dia cuidará de mim, quem se preocupará com a minha vida envelhecida, quem falará de mim assim com palavras como estas, e me dirá Eu amo-te muito, pai?

terça-feira, março 18, 2014

A solidariedade cristã

A mãe apanhou-a a tirar dois iogurtes do frigorífico. Era a pequenita que fazia o pequeno-almoço para a escola e o metia na mochila. A mãe andava a estranhar, porque os iogurtes desapareciam num instante. Nunca perguntou. Nunca procurou. Nunca se questionou. Mas há dias viu a sua pequenita ir discretamente ao frigorífico buscar dois iogurtes. Como o hábito antigo era levar apenas um, a mãe perguntou-lhe o motivo pelo qual levava dois e ainda por cima de forma sorrateira, para que ninguém desse conta. Primeiro, a pequenita corou. Depois, como se estivesse a fazer uma confissão, explicou que havia uma colega dela que não tinha nada para comer. Disse o nome da colega, o que agora não interessa para o caso, e pediu desculpa à mãe. Claro que a mãe ficou sem palavras e ela própria ajudou a filha a colocar os dois iogurtes na mochila acompanhados de um longo beijo na testa corada da pequenita. Não tem mal, filha. Podias ser tu a precisar de comer, e eu também ficaria feliz se alguém te levasse um iogurte para comeres.
A história, que me foi contada como verídica pelo pai, em quem confio, prendeu-me e rendeu-me à imagem daquela criança, pequenita, corada, com dois iogurtes na mão, qual Robin dos Bosques, para dar à amiga. Não acho que tirar aos ricos para dar aos pobres seja uma atitude muito cristã. Não deixaria de ser um tirar aos outros. A atitude mais cristã é a de tirar do nosso bolso para por no bolso dos outros, sobretudo dos que mais precisam. É a solidariedade cristã, que tão pouco se vê. Nós gostamos mais daquela solidariedade com a qual apontamos o dedo aos ricos para que eles partilhem com os pobres, sossegando assim a nossa consciência porque, afinal, nós temos a teoria certa. Só não damos conta é que o mais importante não é a teoria, mas a atitude certa. E esta é rara. A não ser naqueles que, como esta criança, teimam em ser livres e simples. A não ser como aqueles que vêm a beleza do mundo nos outros, porque o mundo não sou só eu, mas eu e os outros. A não ser naqueles que vivem a fé a pensar nos outros.

sábado, março 15, 2014

Pai [poema 7]

E se um dia vier a noite
e eu não tiver mais luz

E se um dia o caminho
Não tiver mais para andar

E se um dia a rua cinzenta
Na cor me fizer perder

E se um dia este filho
Não mais conseguir ser

Serás Tu o mesmo Pai
Que me fez nascer?

quinta-feira, março 13, 2014

A Quaresma não chega a todos

Tinha Intenção de Missa marcada. Ouviu o nome da sua esposa e de mais alguns familiares. Sentou-se de forma cansada. Impaciente. Ouviu a missa. Era missa com imposição das cinzas que a Quaresma está à espreita. Sentou. Levantou. Não ajoelhou. Não veio para isso. Esteve lá, mas não inteiro. Explicada a cerimónia da imposição das cinzas, veio a tomada de consciência da conversão. Quem quer, quem veio, quem está, vem até ao altar receber das mãos do ministro as cinzas que abrem o espírito da Quaresma. Ele ficou no lugar. Aquilo é mais para as mulheres. Ou para os outros. O padre que era eu, apercebeu-se daquele estar que não estava, que não queria estar. E embora não querendo julgar, o padre que era eu pensou que alguns não devem querer nada com a Quaresma, ou lá o que seja essa coisa de quarenta dias para preparar aquela outra coisa que é a Páscoa.
Pena que não foi o único a ficar no lugar. Pena que não foi o único a quem a Quaresma não chegou.

segunda-feira, março 10, 2014

eu, a morte e o avião

Tinha o rádio do carro ligado nas notícias quando falaram do avião que tinha desparecido nos mares não sei de onde. Embora não tenha desligado o rádio, desliguei dele e vi-me, sem querer, no avião, sentado num banco que dava para três pessoas, encurralado na desventura da notícia. Não recordo o rosto dos que iam comigo no avião, mas garanto que alguém próximo ia comigo no banco. Não consigo descrever a tranquilidade que vivia no meio de tamanha confusão de gente a tentar abrir uma brecha no meio de corpos e bancos, gente a segurar-se, com a força da vida, aos braços dos bancos ou aos ombros do vizinho. Não quero pensar em sangue, porque a água seria sempre mais abundante que o sangue. Estou ali. Numa rápida milésima de segundo, que ali o tempo é sempre menor que os segundos, penso na família, nos amigos, nos meus paroquianos. Vejo-os a correr como num fotograma onde todos cabem. São eles apenas que me trazem a dúvida da partida. Uma sensação de que não queria aquilo. Mas permaneço tranquilo, na certeza de saber o que vai suceder a seguir. Aproveito para dizer Amo-te em voz alta, confundida com os berros e gritos sem sentido, alguns noutra língua que não a minha. Apetece-me dizer a Deus que O amo e que espero a sua misericórdia quando lhe der o abraço que há tanto almejo. A curva da vida chegara. E de repente veio uma curva na estrada, que não ia fazendo porque estava dentro de um avião que desapareceu algures no mar. Veio-me uma sensação de tanta tranquilidade, que não consigo agora descrever. Senti-me nos braços do Pai. Receava apenas pelos que amo aqui na terra. Mas o amor daquele que me ama do céu era mais forte. Uma força que também não consigo dizer.
Espero um dia, se e quando tiver de me confrontar com a morte, ter a mesma tranquilidade que senti hoje quando, do carro, me vi no banco de um avião despenhado.

sábado, março 08, 2014

Gostaste das alterações feitas no blogue?

A última sondagem proposta questionava-nos sobre o melhor post de 2012. Não tinha pretensão alguma senão - como afirmei - interagir, auscultar, saber o que mais toca as pessoas, o que mais precisam de ler, quais os melhores caminhos neste espaço. E não escondo a mera curiosidade. Os resultados obtidos estão abaixo, e os três textos mais votados foram:
Hoje, porque estamos no início da Quaresma, porque “escutei” muitos dos comentários e opiniões acerca do aspecto que tinha dado ao blogue no início deste ano, porque tinha prometido ir fazendo algumas alterações de vez em quando, venho agora, com o aspecto do blogue renovado, sondar as vossas opiniões. Gostaste das alterações feitas no blogue?

quarta-feira, março 05, 2014

Rezar é falar com Deus

Sentada à minha beira para me sussurrar e não ser ouvida senão por mim e por Deus, dizia que rezava pouco e que gostava mais de falar com Deus. Que gostava de falar com Ele, pedir-lhe coisas, contar-lhe coisas, agradecer-lhe coisas, falar-lhe como se falasse com a vizinha Amélia. Às vezes o meu marido diz que eu não estou boa da cabeça. Insistia que não rezava muito, pois gostava mais de falar com Deus. Interrompi-a duas ou três vezes para lhe dizer que isso era rezar. E como me parecia que ela não entendia o que eu queria dizer, enchi um pouquinho mais a boca e o tom de voz para dizer. Reza mais quem fala com Deus como se estivesse a falar com a vizinha Amélia do que quem diz orações sem falar com Ele.

sábado, março 01, 2014

A vida [poema 6]

No vai e vem do tempo
Esquecemos que vai mais que vem
É mais forte a nossa corpórea fraqueza
Que a força do caminho que ela faz

Quando é que percebemos que aqui
Fazemos um caminho
Para lá?