quinta-feira, fevereiro 24, 2022

A fé não é bem fazer o bem

Um dia destes, numa tarde ensolarada e à sombra de uma árvore a que não sei dar nome, cruzei-me com a senhora Encarnação, uma mulher acostumada a fazer o bem, mas que não põe os pés na missa, como ela diz. Aquilo está cheio de beatas falsas. Eu faço o bem, senhor padre, sem olhar a quem. Não preciso de ir à missa nem de rezar para fazer o bem. Eu tenho mais fé que todas elas, referindo-se às tais que chama de beatas. 
A conversa prolongou-se entre palavreados castiços de quem não tem tento na língua, mas gosta de a usar para uns dedos de conversa com o senhor prior. E ainda bem. E nunca se azedou a conversa, nem quando lhe expliquei que a fé era muito mais que fazer o bem. Qualquer pessoa pode fazer o bem. Um muçulmano ou um hindu, um agnóstico ou um ateu podem fazer o bem. Naturalmente que tive de explicar algumas destas palavras porque a senhora Encarnação andou na escola apenas até à quarta-classe. E clarifiquei que os cristãos fazem o bem, ou devem fazê-lo, por Cristo, em nome de Cristo. E desse modo é que manifestam a sua fé. A fé tem mais a ver com fazer o bem por Cristo, com Cristo e em Cristo, a típica expressão que usamos na eucaristia e que gosto sobremaneira. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A fé de Portugal"

sábado, fevereiro 19, 2022

Jesus era um leigo

Numa Igreja que se clericalizou, é oportuno recordar alguns dados sobre a identidade humana e histórica de Jesus, assim como os inícios do cristianismo. 
Jesus não era cristão, mas judeu. Tinha uma índole secular, laical, isto é, era um homem imerso no seu mundo, entre os demais humanos, e não fazia parte de nenhuma casta sacerdotal do tempo. Por isso fora tão difícil acreditar que era o Filho de Deus, uma vez que era suposto um filho de Deus nascer e viver imerso na religiosidade, no templo. Como também seria expectável que manifestasse um poderio sem igual. Mas nada disso. Não nasceu nem na grande Judeia nem na cidade santa de Jerusalém, mas na simples Nazaré da Galileia dos gentios. Recorde-se ainda que dos supostos trinta e três anos em que viveu, só três deles foram passados a pregar. Cresceu e viveu como o comum das pessoas, num ocultamento e anonimato. Aliás, pode-se dizer que viveu, como a maioria das pessoas, ignorado e desconhecido. 
Não é adequado, igualmente, afirmar que foi ele que fundou a Igreja, senão que constituiu um grupo de discípulos a quem pediu que continuasse a sua obra. É mais correcto afirmar que apenas lhe colocou os alicerces. Por isso é que não vemos nos evangelhos um momento fundante da Igreja. A obra foi nascendo, cimentando-se, construindo-se, organizando-se, muito à imagem das estruturas de organização e de poder do tempo. É muito difícil fazer uma organização do nada e é natural que se sigam modelos já experimentados. Foi o que ocorreu. E, embora se possa olhar esta necessidade como algo menos positivo, há que dizer também que, ao contrário de outras expressões religiosas, a Igreja não nasceu à volta de doutrinas e de práticas. Ela construiu-se no seguimento de uma personagem histórica que serve de modelo e é precursor de um estilo de vida, no que há que inspirar-se. Seguir Jesus é aderir a Ele. Ser Igreja é estar configurado com Ele… na quotidianidade!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pesquisar Jesus na Internet"

quarta-feira, fevereiro 16, 2022

A pandemia está a retirar-nos alguns bairrismos escusados

Uns dizem que a pandemia está a acabar e outros que está para durar. Uns dizem que a vida tem de continuar e outros ficam a vê-la passar. E algo similar se passa dentro da Igreja, onde se dá conta de uma série de mudanças que a pandemia tem desvelado e de uma série de mudanças que se têm tornado ainda mais urgentes. Diz-se que o mundo não mais será o mesmo depois desta pandemia. Eu digo que a Igreja ou a sua acção não voltará a ser igual. Tenho pensado muito nisto. Tenho reflectido e amadurecido algumas posturas e pastorais. E reconheço que, quase naturalmente, alguns pequenos processos vão-se tornando parte de uma grande conversão. Pelo menos nas comunidades que, pastoralmente falando, coordeno. Dou alguns exemplos. 
Nalgumas das minhas comunidades mais pequenas, a missa destes últimos tempos tem sido quando é possível, ou seja, quase sempre fora do fim-de-semana. Não têm reclamado não terem missa no Domingo e aceitam a possibilidade que lhes é oferecida. Talvez tenham aprendido que o Domingo é o dia do Senhor, mas que em qualquer dia podemos celebrar a Páscoa do Senhor. 
Nalgumas das comunidades maiores, as pessoas vão-se sentando, à medida que entram na igreja, nos lugares que lhes são indicados pelos ministros do acolhimento, e não no lugar a que se habituaram e que preferiram ou a que se acomodaram durante anos como um direito adquirido. 
Há paroquianos que, cada vez mais, começam a ir à Eucaristia da paróquia maior, porque sabem que ali há sempre eucaristia. A mobilidade que usam para o comércio, usam agora para a celebração da fé. 
A comunicação saiu da Igreja, para além do púlpito, e começou a ser mais usual e visível em outros âmbitos, sobretudo as plataformas virtuais e digitais. Dizem-me que a comunicação está muito melhor e menos fechada. 
Dá-me a sensação de que os ritmos e hábitos dos fiéis estão a ser reconfigurados com uma certa naturalidade. A pandemia está a retirar-nos alguns bairrismos escusados. E está a alargar os nossos horizontes.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A pandemia descristianizante"

domingo, fevereiro 13, 2022

“assassinado pela indiferença”

No centro de Paris, numa rua movimentada, no passado dia 18 de Janeiro, o fotógrafo René Robert, de 85 anos, depois de ter saído de casa, após o jantar, para um passeio, não se sabe ao certo como nem porquê, caiu inconsciente. Ali permaneceu caído cerca de nove horas, exposto ao frio numa noite em que as previsões meteorológicas apontavam para temperaturas de 3ºC. Levado para o hospital, depois que um sem-abrigo chamou os serviços de emergência, já pelas 6h30 da manhã, foi-lhe diagnosticado um traumatismo craniano e uma grave hipotermia como causa do óbito. Foi um desalojado da sociedade, um sem-nome, quem deu o alarme. Mais um dos que não conta. E um jornalista, amigo do fotógrafo, ao falar do assunto, intitulou-o de “assassinado pela indiferença”. Como de facto, assassinado por uma sociedade que tem opinião para tudo, mas que é indiferente a tudo. Uma sociedade que defende a diferença, mas não dá conta do outro. Uma sociedade formada por indivíduos que não se olham senão a si próprios. Paradoxalmente plural e individual como nunca na história do mundo. Uma sociedade em rede desligada. Uma sociedade feita de pessoas que vivem, sozinhas, ao lado uns dos outros!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O sacrário está vazio"

sexta-feira, fevereiro 11, 2022

pedras [poema 345]

as pedras doem nos sapatos e alargam-nos 
fazem ali a calçada para os passantes 

e os que passam não dão conta 
que as pedras doem por dentro 
sem o dizer, na calçada 
da vida, à noite são mais pedras 
a doer

segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Comunhão clericalizada

No século IV, com a passagem do cristianismo de religião perseguida a religião de estado protegida pelo Império Romano, agravou-se uma distinção e separação entre os cristãos que já se vinham designando por clérigos ou leigos. 
Não existia nenhuma separação no tempo de Jesus e o cristianismo surgia como uma comunidade fraterna. Mas estas mudanças fizeram dos clérigos uns funcionários com honras de estado, ao ponto de pouco a pouco passarem a vestir-se diferente, copiando os trajes da nobreza, sobretudo na liturgia. Pior ainda, passaram a sentir-se diferentes dos que não eram clérigos. Passaram a sentir-se superiores. 
Esta eclesiologia hierarcológica durou muitos anos e hoje há uma facção, dentro e fora da hierarquia da Igreja, que insiste em restaurar estes tempos, afirmando falaciosamente que é um voltar à doutrina, quando se trata do afastamento da Igreja das primeiras comunidades cristãs e um regresso ao clericalismo do qual ainda não se saiu. 
Neste espírito de neocristandade, é comum assistir à imposição ou obrigatoriedade da comunhão exclusivamente na boca e, de preferência de joelhos. Dizem que é deste modo que se dignifica a comunhão e que se manifesta a nossa humildade diante do Santíssimo Sacramento. Esquecem que, quando Jesus supostamente instituiu a eucaristia, o pão e o vinho passaram de mão em mão pelos seus apóstolos e nenhum deles se ajoelhou diante dessa partilha. O que os defensores deste modus operandi não referem ou não dão conta é que essa forma de entender a distribuição da comunhão não é própria de uma Igreja comunhão de irmãos, uma Igreja de povo peregrino. É antes de uma Igreja clericalizada, que não só distingue, como separa clérigos dos leigos, como se os primeiros fossem a casta de Deus, a elite de Deus que pode estar de pé e tocar com as mãos no Senhor. O que estes colegas não dizem é que as pessoas, afinal, e num simbolismo enganoso, estão a inclinar-se ao clérigo e não a Deus! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Aqui só comungam as mulheres"

sexta-feira, fevereiro 04, 2022

desassossego [poema 344]

a tempestade caiu nos degraus da casa 
enquanto a manhã os subia 
os pés ficavam marcados na escada, como o barro se marca com uma mão 
e o pincel
Era lama da tempestade. Era terra. Era lugar 
 
Não te importas que a tempestade seja o nosso morar? 
a manhã não queria acordar nos degraus. A tempestade avultava-se
 
Tens medo, perguntou a escada, que era o lar 
da tempestade e do barro. A terra 
onde nascem as manhãs 
a pincel 
 
Mc 4,35-41 

quinta-feira, fevereiro 03, 2022

resultado da sondagem "best post 2021"

Deixamos os resultados da última sondagem que perguntava sobre o texto mais interessante ou tocante de 2021:

Se quiser, pode ler de novo os textos mais votados, que já estão na secção "Best post":

3. A fé provoca-nos muitas dúvidas