segunda-feira, outubro 07, 2024

Um vaso de flores

Vinte e três anos passam num instante. A gente envelhece e tudo envelhece à nossa volta. Era um jovem padre quando a minha mãe concluiu a sua missão aqui na terra e foi habitar em Deus. Agora caminho para velho. Mais experimentado também. Mas a sentir a mesma saudade de jovem que tinha na sua mãe a confidente e o colo materno e terreno de Deus. Ó mãe, como ainda hoje fazias aqui falta para me escutar e para guardar os meus desabafos! Faz hoje vinte e três anos. Fui visitar a pedra do teu túmulo. Estava bonita como sempre. Mas no lugar das flores, estava um buraco de terra sem flores. Alguém me disse que foram roubadas. Já não é a primeira vez, disseram-me. Ao primeiro impacto, senti-me incomodado. Como poderias estar sem um ramo de flores que adornasse a tua pedra?! Depois de rezar (é assim que falo com a minha mãe), o incómodo passou. É muito triste que haja quem não respeite a morte e a dor alheia. É muito triste que haja quem desça tão baixo por causa de umas simples flores de campa. Mas não são as flores que fazem de ti um vaso de flores. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"

sexta-feira, outubro 04, 2024

O canto a meio

Há muito que, naquela paróquia, é raro escutar-se o canto durante as missas. Desde que a cantora-mor adoeceu e foi para o lar é raro alguém ter a coragem de iniciar algum cântico. Ao início, tentei a todo o custo chamá-los ao entusiasmo. Mas é algo que não abunda em medida suficiente. De vez em quando começo algum que outro cântico conhecido a ver se pega. É que nem nas festas ou datas litúrgicas solenes alguém se chega à frente. E há dias, mais uma vez, comecei um cântico a ver se lhe pegavam. Como estava a preparar o altar para a liturgia eucarística, com as orações necessárias, e ninguém lhe pegou, acabei por o deixar a meio. E a meio ficou como se não tivesse começado, isto é, como se nada fosse. Não sei que dizer de uma paróquia sem canto! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A música liturgica"

segunda-feira, setembro 30, 2024

A senhora que não quis crismar-se, de modo algum

Foi convidada para ser madrinha de um baptismo, mas não está crismada. Foi-lhe proposto que pensasse no assunto e que fizesse o necessário para se crismar e poder ser uma madrinha no verdadeiro sentido da palavra. Não. A resposta foi um rotundo Não, de modo algum. Não está interessada. Isto é, não tem qualquer interesse neste sacramento. Não lhe diz nada e também não está interessada que lhe falem da fé ou de Deus. Não quer, com um rotundo Não. Mas gostava de ser madrinha de baptismo da sobrinha. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Tem de ser ele o padrinho"

sexta-feira, setembro 20, 2024

A catequese que nunca lhe valera de nada

Num diálogo com jovens sobre opções e sobre a fé, fazia-se um balanço da caminhada espiritual que cada um estava fazendo. Todos iam falando, uns mais à vontade, outros mais a medo. A Maria, que terminara a catequese de infância e adolescência há três anos, falava sem rodeios. Não era rapariga de faltar às sessões da catequese. E não fazia parte do grupo dos mal comportados. Mas o seu interesse era diminuto, contou. A catequese nunca lhe valera de nada. Ia por ir. Fazia a vontade aos pais e não se importava de acompanhar algumas amigas. Ninguém a interrompeu enquanto falava estas coisas. O resto dos jovens presentes não esboçava sinais de admiração ou de condena. Muito menos eu. Apenas me intrigava que, apesar desse entendimento da catequese, ela estivesse agora ali, presente, por vontade própria, no seio de um grupo de jovens para dialogar e pensar a fé. Até que a Maria concluiu a sua intervenção dizendo: só mais tarde as coisas começaram a fazer sentido. Só algum tempo depois de ter deixado a catequese fui começando a entender como a catequese me fora importante.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A catequista e o menino"

quarta-feira, setembro 11, 2024

nós [poema 394]

não digo que te amo para não gastar a palavra 
ela tem vida própria e faz-se tua quando a digo 
quero, porém, que seja dos dois e fique no pensamento 
onde não me sai e continua a ser minha, mesmo 
sendo tua 
 
amo-te por dentro, que é o lugar onde acontece 
a verdade das coisas 
e guardo-te na palavra que significas tu 
ou melhor, nós 
 
amo-te por dentro porque é o lugar
onde tu aconteces
e somos nós

sábado, setembro 07, 2024

O milagre da morte

Ela queria um milagre. Diante do caixão com o filho de vinte e oito anos, ela repetia que esperava um milagre. O filho mais velho morrera há uns doze anos com sorte parecida, em idade mais jovem ainda. Este segundo filho estivera em sofrimento uns três anos e agora partira para o Senhor. Os pais não têm mais filhos para cuidar. Não têm mais filhos para esperar o seu futuro e sonhar com ele. Dá para imaginar o sofrimento, mas não dá para o medir. Era mais que visível, tanto no rosto pálido da mãe como no do pai, assim como nos seus corpos sem expressão, sem alento, sem força senão para estar ali e se puderem despedir do menino. Olha o teu pai e a tua mãe, dizia o pai. E a mãe desfalecia em gemidos. A Missa foi toda ela um gemido contido. A multidão dentro da Igreja era prolongada pela multidão fora dela. Não se cabia naquele sofrimento. A homilia foi pesada. Foi pesada no sentido de ser pesarosa, e foi pesada porque se pesou cada palavra. A certa altura, a mãe interveio, dizendo ao senhor padre que nunca perdera a esperança, porque esperava um milagre. Ainda bem, respondeu o senhor padre. Como dizia a primeira leitura que escutámos, “A esperança não engana porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações”. O padre cruzava os olhos com ela no primeiro banco da igreja, sofria com ela à sua maneira, e aproveitava as suas palavras para falar do verdadeiro milagre que estava a acontecer. Este mistério da morte, que é tão difícil, é, afinal, o maior milagre da vida. Morremos para vivermos eternamente, porque Deus nos ama para além da vida.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As não respostas que são resposta"

terça-feira, setembro 03, 2024

descida na subida [poema 393]

subiu o degrau e eu baixei para a apanhar 
ainda no ar 

cada degrau é uma estrada, 
assim como cada muro é uma escada 

subiu e em cada subida eu desci para a apanhar 
no degrau

quinta-feira, agosto 29, 2024

Como será a Igreja daqui a vinte ou trinta anos?

Temos assistido a um declínio acentuado na frequência dos sacramentos e das celebrações de culto em geral. Cada vez mais os baptizados, apesar de terem recebido o sacramento, vivem como se a Igreja não lhes dissesse nada. A acção pastoral era iminentemente paroquial, mas as paróquias não só têm vindo a definhar, como o número de vocações ao sacerdócio ministerial tem vindo a diminuir. Com o fim da cristandade, aos poucos, a Igreja vai deixando de ser uma maioria. A teologia destes dois últimos séculos e o magistério da Igreja, especialmente graças ao Concílio Vaticano II, fez-nos perceber que o objectivo da evangelização não é impor uma cultura cristã, mas convidar à fé. Ser cristão é muito mais que uma questão cultural. Vivemos, pois, numa fase pós-cristandade, onde o que conta não é o número, mas a autenticidade da fé. O grande esforço de hoje é repensar a nossa acção eclesial e pastoral para chamar à fé, iniciá-la, aprofundá-la e alimentá-la. Não está fácil deixar cair o “sempre se fez assim” para nos tornamos uma Igreja verdadeiramente missionária. Com o ritmo da “manutenção”, falta-nos tempo para pensar seriamente sobre como queremos a Igreja daqui por uns vinte ou trinta anos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Este é o tempo da desgraça ou da graça?"

domingo, agosto 25, 2024

A santinha

Numa das redes sociais da moda foi postada, por ocasião da festa em sua honra, uma imagem de Nossa Senhora. Os likes, os diferentes emojis e os comentários não se fizeram esperar. De entre os comentários, sobressaiu um, onde uma senhora, entusiasmada, dizia que era a santinha da festa da sua terra. A Mãe do salvador, a Mãe da Deus e Mãe de todo o Povo de Deus, a Igreja, transformada em “santinha”. Percebo que se trate de uma expressão típica da religiosidade popular e que o diminutivo possa manifestar o carinho das pessoas. Contudo, também me parece o resultado de uma fé infantilizada.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Santinhas e missinhas"

terça-feira, agosto 20, 2024

Pessoas que são o céu na terra.

Há pessoas que são o céu na terra. Gente que passa despercebida, mas deixa marcas. Gente que não vive senão fazendo o bem, vendo o bem em todo o lado e encontrando Deus em cada bem. Gente que está connosco, não porque mereçamos, mas porque a sua vida é para fazer o bem. A senhora Maria é uma destas pessoas que está sempre disposta a dar de si. É para a limpeza da igreja, é para o coro da igreja, é para ir ao encontro espiritual. De manhã à noite, ajuda o marido na horta e no quintal, faz-lhe o comer, vai às compras para o comer. Leva produtos da horta a uma série de vizinhas e necessitados. Também ao senhor prior. Tudo faz por e para quem necessita. Gasta-se nisto. Não faz nada de especial, mas tudo o que faz acaba por ser especial. De manhã à noite é um pouco de céu na terra.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quinze maçãs especiais"

sábado, agosto 17, 2024

As leis que não são minhas

Há muitos padres que vivem facilitando a vida àquelas pessoas que fazem pedidos fora das normas, fora do Direito Canónico, fora da doutrina e, muitas vezes, longe do Evangelho e longe da fé. São, de certo modo, padres merceeiros que fazem da Igreja um supermercado e fazem das paróquias uma agência de produtos sagrados “fast food” para atrair clientes. Evito julgá-los, porque quero crer que não o fazem com má intenção. Talvez o façam porque não têm a força e coragem necessária para responder com um Não. Talvez. Talvez. Há que dizer, no entanto, que são motivo de grandes sofrimentos a outros colegas que, tentando ser honestos com a sua missão, procuram ser correctos e coerentes o mais possível com as orientações, regras e leis que também eles devem cumprir. Quando me fazem alguns pedidos a que tenho de responder Não, é meu costume recordar, a quem me faz o pedido, que as leis não são minhas. Tanto as têm de cumprir eles como as tenho de cumprir eu.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não deitar lixo no cemitério"

quinta-feira, agosto 15, 2024

subida ao céu [poema 392]

trago-te ao mundo como quem traz o céu à terra 
para que a terra seja o céu ou nela se entranhe o mistério, 
a encarnação 
 
por isso uno as mãos em oração e teço um mistério 
atrás de outro mistério sem pontas soltas, num terço 
por onde a terra sobe ao céu 

o que vem depois não é teu nem meu,
porque é dos dois

segunda-feira, agosto 12, 2024

Conversa fiada

Quando chegou ao restaurante para comer e festejar com os pais da criança que baptizara há menos de uma hora, o único lugar vago era ao lado de uma familiar de idade algo avançada, uma senhora que parecia já ter dado muito à vida. As mãos mostravam a calosidade do trabalho de campo, assim como a tez morena. No trato fazia lembrar o mesmo tipo de figura. Tinha o marido ao seu lado, do outro lado, mas não se evitava de comentários jocosos ao senhor prior. Falava dos padres como quem sabe a história de cada um. Por isso, às tantas, no meio da conversa, um pouco atrevida, fez uma afirmação do tamanho da sua boca e da sua vida. Todos os padres têm uma amante. Mesmo que muitos padres tenham dificuldade em lidar com o celibato, a coisa, assim dita, suou excessiva e disparatada. Por isso a resposta não se fez esperar, e, diante do seu marido, o padre fez o mesmo tipo de afirmação, de boca cheia e sorriso nos lábios. Sabia que todas as mulheres têm um amante?!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A ideia que as crianças fazem dos padres"

quinta-feira, agosto 08, 2024

vir à missa

Os bancos das igrejas não têm enchido como era hábito antes da pandemia pelo covid-19. Se já antes se iam esvaziando aos poucos, agora tornou-se mais notória essa realidade. E naturalmente que custa estar diante de uma comunidade com bancos por preencher. Já não é a primeira vez que depois da comunhão, sentado na cátedra da igreja, fecho os olhos para olhar para dentro, e me pergunto se não terei quota parte da culpa por esta situação. 
Entretanto, um dia destes, a conversa entre alguns agentes de pastoral da paróquia direccionou-se para esta realidade. A maioria também constatava que, por mais iniciativas e dinâmicas arrojadas que se propusessem, a realidade não se alterava muito, o que inquietava e alimentava alguma tristeza. No meio da conversa, lembrei e partilhei algo que tenho pensado muito ultimamente, algo que põe o foco na evangelização e não na eucaristia, algo que nos deveria fazer repensar a nossa acção pastoral. É que eu não quero que as pessoas venham à missa, mas que tenham fé... para virem à missa.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O Américo faltou à missa"

sábado, agosto 03, 2024

A catequese dolorosa

Não quer voltar a dar catequese, porque está cansada. O marido concorda com ela, pois está farto de ver a cara com que regressa depois de dar catequese. Se os tempos não estão favoráveis para os professores, que têm formação pedagógica para dar aulas e podem penalizar os alunos com as notas, imagine-se como será para os catequistas. Não se entende como é que algo que deveria ser, à partida, um motivo de alegria, é um motivo de aflicção. Quando a catequista já vai em sofrimento para a sessão de catequese e a desejar que ela acabe depressa porque sabe que vai sofrer com o mau comportamento, desinteresse e indiferença dos catequisandos, que dizer ou fazer?! A catequese, tal como a educação, começa em casa. Mas...

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Catequese na piscina"

sábado, julho 27, 2024

dor de mãe [poema 391]

a espinha é percorrida pelo cansaço, move-se apenas por fora 
porque a mãe não dorme nem descansa em nome dos filhos 
ser mãe é ser uma vida para quem se gerou 

mas o cansaço instala-se, clama por algo que se esconde 
detrás dos sorrisos, entre o seu significado e a sua verdade 
tão diferente sorrir cansado por amor e sorrir cansado por amor 

a espinha é isso que põe uma pessoa em pé, mesmo com dor 
de mãe

quarta-feira, julho 24, 2024

restos de casas [poema 290]

os restos das casas estavam sobre a mesa 
por cima da madeira e de um pano de linho, trabalhado 
da avó que tivera doze filhos, imagine-se, 
como eram outrora as construções das casas 

em seu redor três cadeiras e três bancos antigos 
daqueles que parecem madeira que dura sempre 
discute-se quantas casas se hão de construir com os restos 
gasta-se, é mesmo essa a palavra, gasta-se o tempo 
das casas novas

sábado, julho 20, 2024

Uma Igreja que se quer sinodal, mas na mesma

Vou lendo aos poucos o Instrumentum Laboris para a segunda sessão da XVI assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos a ocorrer no próximo mês de outubro, e vou lendo também as opiniões e os comentários de alguns observadores. Não me reconheço abalizado para fazer parte deste grupo de pessoas, mas tenho as minhas opiniões, que são, acima de tudo, formas de sentir. Neste sentido, devo referir que também eu não tenho soluções fáceis ou óbvias que transformem a estrutura institucional pesada e milenar da Igreja Católica. Contudo, leio e vejo tantas palavras que me parecem só palavras, que fico algo constrangido. Tenho receio que as palavras vençam, mais uma vez, as acções, atitudes e mentalidades. Tenho receio que não se passe das palavras às práticas. Tenho receio que este sínodo sobre a sinodalidade não consiga acabar com o modelo clerical hierárquico, autoritário e patriarcal. É certo que muitos dos temas importantes não estão contidos de forma clara no Instrumentum Laboris porque foram entregues a dezasseis grupos de estudos especiais, mas, por sinal, constituídos por 74% de clérigos. Não faz sentido querer uma Igreja sinodal e manter uma Igreja clericalizada, autoritária e patriarcal. Tenho receio que este sínodo seja como muitos dos anos especiais disto e daquilo, dos sínodos dos bispos para isto e para aquilo que, depois, na prática, mantêm quase tudo igual. A Igreja não pode continuar a repetir palavras sem alma e sem vida.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Igreja clericalizada"

Pode ler AQUI na íntegra o Instrumentum Laboris.

segunda-feira, julho 08, 2024

Os preços dos casamentos

Na Coreia do Sul o padre que preside a um casamento recebe, no mínimo, quinhentos euros. Mesmo assim, é o custo mais barato da cerimónia, porque os noivos gastam muito mais noutras coisas. Em Portugal, mesmo que a celebração ande em redor dos cem euros, os noivos queixam-se quase sempre, falam mal dos padres e dizem que a Igreja só quer dinheiro. No entanto, acham praticamente normal gastar cerca de dois mil euros no vestido da noiva, mais mil e quinhentos euros no produtor de imagem, mais aproximadamente uns mil euros para flores e outros adornos, mais seiscentos euros para os músicos, and so on and so on... É como querer gastar pouco dinheiro com uma prenda e não se importar de gastar muito com o embrulho da prenda.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma benção especial de alianças"

quinta-feira, junho 27, 2024

Os avós, esses evangelizadores modernos

Na França secular e descrente, alguns dados inesperados têm dado que falar aos diversos analistas. Na última vigília pascal, foram baptizados 7.135 adultos nas dioceses francesas, dos quais 36% tinham entre 18 e 25 anos, assim como 5.000 adolescentes ou jovens entre 11 e 18 anos. Mais de 12.000 no total e quase todos em idade da juventude. Dizem os analistas que se trata de 31% a mais que no ano passado e 120% a mais que há dez anos. Naturalmente que a pergunta surge: qual a origem desta mudança? E a resposta dão-na também os analistas: As avós. E, um pouco também, alguns avós. Dizem eles que estes aproveitam o maior contacto com os netos durante as férias de verão ou outros períodos de descanso onde podem estar com eles, para os aproximar da Igreja, para os acompanhar à missa, para lhes ensinar a rezar. 
Na sociedade do efémero, do voraz e do passageiro, é verdade que muitos pais se demitiram da educação dos filhos. Deixaram de ter tempo para eles. Deixaram de ter tempo para a fé. Deixaram de ter tempo para pensar a vida. Por outro lado, os avós têm todo o tempo do mundo, apesar de pouco tempo que lhes possa restar. E têm a fé que foram amadurecendo com o avançar da idade e com a história religiosa que os construiu. Os avós são hoje, em imensos casos e lugares, os maiores evangelizadores. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As 'avós da fé' ou 'catequistas dos tempos modernos'"

quinta-feira, junho 20, 2024

a Igreja e o 'um aqui e um ali'

O senhor padre fora da igreja é como os outros, dizia a senhora Maria. Mas quem são esses outros?! pensava eu. Para haver outros, tem de haver algo que diferencia ou separa. Assim também a observação d ‘O senhor padre é que sabe’, aumenta uma distância que não é desejável. São afirmações que ainda se ouvem da boca de um número notório de paroquianos e que fazem parte de um entendimento com quase dois milénios de história da Igreja que potenciou um aqui e um ali. Como se houvesse um binómio antagónico entre o religioso e o secular. Como se houvesse um dentro da Igreja e um fora da Igreja. Como se a Igreja se identificasse apenas com a sua hierarquia. Como se houvesse uma distância entre presbíteros e leigos. Como se houvesse um espaço sagrado e um espaço mundano ou profano. Ou seja, como se a Igreja fosse um espaço e o mundo outro. E em cada um destes espaços houvesse um sujeito diferente: na Igreja o clero e no mundo os outros, os leigos. Como se a Igreja se definisse por lugares e por estados de vida. Por isso me cansam certas dicotomias dentro da Igreja que apenas servem para separar aquilo que deveria estar unido. Ora, nós, padres e leigos, somos Igreja onde estivermos, porque o que nos faz Igreja não é o lugar onde estamos, mas o que somos e como vivemos. A Igreja existe e é Igreja em todo o lado onde estejamos os que somos Igreja. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nós e vós"

quinta-feira, junho 13, 2024

pedra [poema 389]

ainda sou uma pedra sem vida 
parada e calcada. 
no entanto, calço também outras pedras 
da calçada 
 
não ando não porque as pedras não andem 
não ando porque as pedras me doem o andar 
 
ainda sou pedra que quer ser estrada 
na vida calcada

segunda-feira, junho 10, 2024

Os novos missais

Também tive resistências em mudar o meu e o hábito das pessoas com o novo missal que, em Portugal, foi preparado e aprovado pela Conferência Episcopal Portuguesa a 19 de Novembro de 2019, validado pelo Papa Francisco e confirmado pela Santa Sé a 13 de Outubro de 2021 e que entrou em vigor a 14 de Abril de 2022. Recordo a dificuldade que tive em aceitar a mudança e as justificações que fui arranjando para adiá-la. Percebi em pouco tempo que, mesmo que não concordasse com algumas das alterações a nível metodológico, teológico e litúrgico, fazia sentido dar esse passo, sobretudo em razão e em nome da comunhão que defendo na Igreja. 
Entretanto, para meu espanto, passados estes dois anos, nalgumas paróquias - pelos vistos bastantes - continua-se a usar o missal antigo e alguns colegas pouco ou nada fazem para usar o novo. Ainda há dias um deles me dizia que não mudava porque não gostava da linguagem de algumas orações. Naturalmente que estranhei a justificação, uma vez que ele ainda não manuseava o novo missal. Também não deve ter sido muito diferente quando, em 1969, Paulo VI promulgou o novo missal romano, fruto da determinação do Concílio Vaticano II. As mudanças custam sempre. Mas se não existissem, não sairíamos do passado e nunca seria presente. Valha-nos ao menos que, por este andar, em Portugal os novos missais serão sempre novos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre não é bom da cabeça"

sexta-feira, junho 07, 2024

Crua [poema 388]

cru, esse espaço cru entre as duas mãos, que não se apertam 
são da mesma carne e do mesmo corpo nu 
a dor enche-se de ar como um pulmão vazio 
clama por um sinal que se torne um cordão umbilical 
 
ai esses tempos antigos que faziam das catedrais 
lugar, 
 
ai esses tempos antigos que construíam capelas no lugar 
do coração 
e eram a Igreja nua 
e crua

terça-feira, junho 04, 2024

Dou por mim muitas vezes a não dar por ti, Senhor

Arrepiei-me ao ver, num pequeno vídeo, o modo como o padre Pio olhava fixamente a hóstia consagrada em suas mãos. Quase me vieram umas lágrimas ao rosto. Assim também no vídeo, após um longo momento detido com o olhar em Jesus sacramentado, o padre Pio teve de usar um pano para limpar as lágrimas, tão emocionado estava. Já sabia que ele tinha um profundo amor à Eucaristia, mas agora via-o com os meus próprios olhos. Fiquei embaraçado. Envergonhei-me das muitas vezes em que me distraio a celebrar a Eucaristia. Na verdade, muitas vezes o meu pensamento voa para as preocupações da vida, para as inquietações do ministério sacerdotal, para as decisões pastorais, para os problemas das pessoas que também me apoquentam. Dou por mim muitas vezes a não dar por ti, Senhor. Que vergonha! Dás-me a graça de te poder olhar a um palmo de distância, de poder usar as tuas palavras da Última Ceia, de poder estar contigo suspenso nas minhas indignas mãos, e perco-me na minha limitada condição existencial e sacerdotal. Li, em tempos, que o padre Pio afirmara: “Que a sua primeira eucaristia e a última tenham o mesmo amor e o mesmo ardor”. Peço-te perdão, Senhor, pelas vezes em que não tenho presidido à Eucaristia como devia. Sei que te tornas presente em cada Eucaristia, independentemente de quem a preside e do modo como é presidida. Mas, por favor, faz-te presente também em mim sempre que eu celebre a Eucaristia. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não falo não falo e não falo"

quarta-feira, maio 29, 2024

As promessas e as despromessas

Estou consciente que muitas pessoas, quando fazem promessas a Deus para obter algum dividendo em troca, o fazem sem pensar verdadeiramente nas suas consequências. Na hora da aflição prometem coisas que depois têm dificuldade em cumprir. Mais ainda quando são promessas não temporárias. Aconteceu assim com o Manuel. Quando estudava na universidade fizera uma promessa: não rapar mais o seu cabelo, caso o Senhor o ajudasse a passar numa disciplina extremamente difícil. Tudo correu como desejado e não mais rapou o cabelo. No entanto, uns anos mais tarde, começou a perder cabelo e, mesmo após várias tentativas para reverter o processo, foi-lhe aconselhado rapar o cabelo. E aí começou a preocupação com a promessa que não pretendia quebrar. Por isso perguntava se seria possível quebrar uma promessa ou reformulá-la, e se isso não seria contra a vontade de Deus. 
Não o quis julgar, porque evito este tipo de julgamentos, mas reconheço que fui duro ao dizer-lhe que era uma tolice fazer esse tipo de promessas, as quais, ainda por cima, pouco acrescentam à nossa fé ou vivência cristãs. Na verdade, grande parte das promessas que se fazem não parecem mais que um negócio com Deus. Deus não é nem um bombeiro nem um comerciante de troca de benesses ou graças. O que Ele quer é a nossa felicidade. Por isso o Manuel também não precisava estar tão preocupado. O melhor era levar mais a sério a sua relação com o Senhor, amadurecendo e aprofundando a fé. Ainda assim, digamos que é possível reformular uma promessa com auxílio, de preferência, do confessor, sem que se faça disso um procedimento banal. Se ser fiel a uma promessa é importante, muito mais ser fiel ao Senhor!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Prometi uma missa a Nossa Senhora do Ó"

sábado, maio 25, 2024

o Deus das opiniões

Vivemos na sociedade das opiniões. Hoje toda a gente tem uma opinião sobre tudo. Tudo é escrutinado por opiniões que se multiplicam sobretudo em redes sociais. Toda a gente, independentemente do assunto e da sabedoria do mesmo, tem uma opinião que se torna verdade absoluta do seu dono porque se tem de respeitar a opinião de cada um. São, no fundo, opiniões que se tornam verdades. Mas são verdades sem objectividade, sem substracto, sem argumentos seguros. Por outro lado, as verdades passam a estar dependentes das opiniões. Só existe uma verdade se for essa a opinião da pessoa que a assume como tal ou do grupo que a consolida por ser um conjunto de pessoas a pensar de modo igual. Neste contexto, como fazer de Deus mais do que uma opinião?!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Falar de Deus"

quinta-feira, maio 23, 2024

mãe [poema 387]

ainda recordo a terra húmida do seu colo 
o sangue a derreter com o calor das suas mãos 
no embalo da vida 
 
as formas do corpo não tinham rosto, sempre as vi como mãos 
como mãos de pianista a desenhar espaços de luz, 
a germinar 
 
gosto de recordar esse tempo de madrugada 
trazê-lo a mim como quem traz uma sombra agarrada 
ao sol 
 
não havia mal que pudesse suceder 
nem pontas soltas de azar ou de desamor 
ainda ontem eras o regaço e hoje és 
estás a nascer

quinta-feira, maio 16, 2024

Os padres e as paróquias não vivem do ar

As pessoas pensam que os padres e as paróquias vivem do ar ou dos proveitos do Vaticano. A Igreja é sempre rica por natureza na mente das pessoas. E os padres uns oportunistas. Por isso dizem que os padres só querem dinheiro e não fazem nada de graça. As mesmas pessoas que raramente são generosas com a comunidade cristã e pouco se importam se ela tem gastos e necessidades. Pressupõem que, por se tratar da Igreja, tudo é gratuito. E a verdade é que tudo deveria ser gratuito na Igreja, porque todos os seus gastos deveriam ser supridos pela generosidade dos membros da comunidade. Nas comunidades cristãs primitivas, ao que se sabe, a partilha e a hospitalidade eram características do ambiente comunitário. Agora, perdeu-se o sentido da “comunidade” e ganhou o sentido do “supermercado” numa sociedade consumista até ao nível religioso. A missão dos padres é gratuita e deve ser desinteressada. As paróquias estão abertas de modo desinteressado e desprendido. Mas o ar não paga as contas e ninguém vive do ar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não há engano que pague a nossa generosidade"

quinta-feira, maio 09, 2024

Leigos a presidir eucaristias?

Um bispo espanhol em Africa, para visitar uma das muitas comunidades que tem a sua diocese, tardou mais de uma hora para percorrer uma distância de 13 quilómetros, o que informa como é a estrada. Por isso não é de estranhar que, associado à falta de padres, a última eucaristia que aquela comunidade tivera fora há 8 anos. São duas ou três centenas de pessoas, a maioria cristãos. Não deixam propriamente de ter fé, mas têm imensa dificuldade em alimentá-la. A eucaristia não resume nem aglutina em si a vida da fé mas, se é o centro e o cume da vida do cristão, que dizer a estas duas ou três centenas de cristãos que não têm possibilidade de aceder à eucaristia? A acção da Igreja vai para além da eucaristia, porque a sua missão é evangelizar. No entanto, a realidade leva-nos, ao menos, a equacionar a hipótese da presidência da eucaristia ser feita por um leigo. A este propósito, Tomás Muro Ugalde publicou em 2020 um artigo na revista Scriptorium Victoriense “Sobre a presidência da Eucaristia”, onde faz a mesma pergunta recorrendo a grandes autores e teólogos. Sabemos que na origem da Igreja não existiam ministros ordenados e que o sujeito eclesial era a própria comunidade. Com a metamorfose constantiniana, cimentada pela Igreja da Idade Média, o sujeito eclesial passou a ser a hierarquia. Sei que é um assunto melindroso e também não tenho certezas. Assim como não pretendo ver nisto a solução para a falta de vocações ao sacerdócio ministerial. Talvez assim se recuperasse um pouco mais a comunidade como sujeito eclesial. Não precisamos de leigos clericalizados, mas a pergunta é pertinente. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nós e vós"

domingo, maio 05, 2024

Também te amo

Basta-me o teu olhar. Basta-me o teu olhar para ter a certeza de que estás fixo em mim, e que essa fixação é estar comigo. Gostava muito de ter palavras tuas e de ouvir sons que construíssem palavras, mesmo que não fizessem sentido. A verdade é que cada vez tenho menos palavras tuas. Mas não tenho menos certezas. O teu olhar fixo em mim diz mais do que qualquer palavra pudesse dizer. E os teus beijos miudinhos parecem enormes. Têm um tamanho sem tamanho. Sempre que encosto a face nos teus lábios, esboças o beijo mais puro e o beijo que mais me importa. Além do teu olhar fixo, basta-me também um beijo, um pequeno murmúrio de beijo, para ter a certeza que o amor por inteiro está nele... e vem a mim. A tua vida prolongou-se na minha através do amor íntimo com a mãe. A tua vida vem a mim desde que me chamaste a ser. O amor gera sempre amor. E mesmo que estejas no lar, sem as capacidades que todos lá em casa gostaríamos que tivesses, não deixas de ter um amor por inteiro. E eu não deixo de o sentir em cada olhar fixo no meu olhar, em cada murmúrio de beijo na minha face. Também te amo, meu pai.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha mãe está viva"

Bom "dia da Mãe" a todos os pais também!

sexta-feira, maio 03, 2024

O dia de Páscoa

O dia de Páscoa já lá vai. Houve amêndoas. Houve pão de azeite. Houve almoço melhorado. Houve reunião de família. Na missa gritou-se que Jesus ressuscitara e os que nela participaram estavam contentes. O ambiente de festa o proporcionava. Uns dias antes a azáfama andava à volta da sua paixão e da sua morte, mas agora isso já não interessava, porque Ele ressuscitou. A boa notícia da ressurreição é a certeza principal da fé. Mas o dia de Páscoa já la vai. Logo na segunda-feira se regressou ao trabalho ou à escola. Tudo continua igual, no mesmo sítio. As ruas permanecem com as mesmas pedras. E o caminho continua o mesmo. Continua a parecer mais caminho a subir para o calvário do que a descer do sepulcro vazio. Por outro lado, não vimos a sua ressurreição. Nada. Ele não nos apareceu. Nem o sepulcro vimos vazio. O padre bem que se explicou na homilia da missa, mas que fazer com isso? Não sabemos que fazer com a boa notícia da ressurreição. Não sabemos que fazer com a Páscoa. Parece mais um rito que uma experiência. Parece mais um hábito que uma vivência. Andámos quarenta dias de quaresma a preparar-nos para algo grande, mas passou num instante. Num dia. Ainda que a Igreja nos proponha um período pascal de mais dias, parece que a Páscoa já lá vai. As rotinas tomaram-lhe o lugar. E não sabemos onde está o Senhor, onde o puseram. Não sabemos se ressuscitou para se guardar escondido num sacrário ou numa igreja, se para morar no nosso coração. O que sabemos é que o dia de Páscoa já lá vai e continua tudo igual. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A tradição da procissão de Páscoa"

segunda-feira, abril 29, 2024

As categorias tridentinas

Têm aumentando os estudos sobre a crise religiosa e as urgentes reformas da Igreja, mas os agentes pastorais principais, sobretudo os que têm algum poder de decisão, continuam com dificuldade em arriscar e em repensar posturas, mentalidades, pastorais e estruturas cristãs. Entretanto, as pessoas abandonam os bancos das igrejas, os baptismos diminuem, os casamentos religiosos estão em queda livre, as vocações à vida consagrada definham, os seminários estão vazios e os padres abandonam o ministério ou adoecem com esgotamento. A pastoral continua praticamente concentrada na “paróquia” onde permanecem os mesmos ritmos, as mesmas iniciativas, os mesmos métodos de há muitos anos. Mesmo depois do concílio Vaticano II ter aberto portas a uma Igreja mais comunhão e mais missionária, há uma dificuldade enorme em sair do “sempre se fez assim”. Nem mesmo uma pandemia que interrompeu durante meses o trabalho pastoral e que foi vista como uma oportunidade para reler o tecido eclesial e as estruturas paroquiais e pastorais, conseguiu esse objectivo. O cristianismo mudou de forma muitas vezes na história. Por que persistimos em não ler os sinais dos tempos e em enterrar a cabeça na areia, propondo uma vida de fé que parece seguir essencialmente as categorias tridentinas, com alguns acréscimos e atualizações do século XIX e algumas estruturas do século XX? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As dicas e tricas de uma paróquia"

sábado, abril 20, 2024

a droga

Na aldeia toda a gente se conhece e toda a gente sabe tudo de todos. Toda a gente se mete na vida de toda a gente. Ninguém é indiferente a ninguém, para o bem e para o mal. Quando o filho da Antónia, de nome António por amor da mãe, entrou para o Seminário, não faltaram as murmuradoras e os murmuradores da aldeia nas conversas da rua. Mas uns vizinhos, que se achavam mais próximos da Antónia, já que mais não seja pela distância geográfica, bateram à porta para tirar nabos do púcaro. Ó Antónia, é verdade que o teu Antoninho foi para o Seminário? Dizem para aí que ele foi. E a Antónia, que não tinha nada a esconder, respondeu que sim. Sim, foi na outra semana. O rapaz quer ser padre e a gente não lho refuta. O que ela queria era que o filho fosse o que quisesse ser e que fosse feliz. E a resposta dos vizinhos não se fez esperar, pois que o assunto o merecia. Ó Antónia, não te aflijas mulher, sempre é melhor isso que meter-se na droga! 
 

quinta-feira, abril 18, 2024

peixe e pão [poema 386]

o peixe na brasa, o pão 
indizível 

as mãos que acenam são as pessoas a pedir 
há uma multidão por detrás das coisas 

é o milagre que acontece 
quando o peixe sai da água e vive 
quando a farinha se amassa e é carne 

as mãos agarram-se umas às outras sem desfecho 
e o peixe espera na brasa 
por mim

segunda-feira, abril 15, 2024

a Clara e as experiências da fé

A Clara participou num encontro religioso que mudou a sua vida. Pelo menos mudou a sua relação com Deus. Fez-lhe muito bem. Saiu daquele encontro, tal como a maioria dos jovens que nele participara, cheia de Deus, como me dizia. E notava-se abundantemente no seu rosto, que era muito mais descoberto e aberto que outrora. Senhor padre, quando houver mais coisas assim, lembre-se de mim. Lembre-se de me informar. E lembro. E ela participa. Faz-lhe bem. Mas fica nesse consumo de experiências. E a fé não vive de um conjunto de experiências de fé. A fé não se consome. Vive-se. É um processo de vida. É um caminhar constante, mesmo por entre altos e baixos, entre momentos mágicos e momentos sem magia. É um caminho para fazer diariamente e para se alimentar da correnteza do dia, da normalidade das coisas, da quotidianidade da vida. Não lhe chega o acumular de experiências marcantes. Porque o dia a dia, mesmo por dentro do consciente, marca muito mais quem somos e quem nos fazemos, para onde vamos e como vamos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não há caminhos certos"

sexta-feira, abril 12, 2024

faltas [poema 385]

falta-me o tempo da noite, 
como corrente de água que se aquieta 
 
faltam-me as construções das letras 
como pedras que têm pés e têm asas 
 
falta-me o papel, sim o papel 
de embrulho para deitar as palavras 
e abraçá-las 
 
faltam-me as forças porque se escondem 
entre os dias que são árvores a crescer para dentro 
 
faltas-me tu e falto-me eu

terça-feira, abril 09, 2024

A operação do Micael

O Micael é o terceiro filho de uma família que reza. É um pequeno que tem a especialidade de falar as coisas de um modo puro. Diz o que sente sem maldade e sem medir consequências. Tem a pureza das crianças de um modo muito apurado. E há dias precisou de uma intervenção cirúrgica. Não era complicada, mas tinha as suas exigências, cautelas e perigos. A mãe tentou explicar-lhe algumas coisas, mas a médica de serviço sentou-se na sua frente e dispôs-se carinhosamente a responder a todas as suas questões e dúvidas. O Micael não fez muitas. Parecia muito confiante. A conversa que, apesar de curta, foi sobejamente interessante, terminou com a médica a dizer-lhe que confiasse que tudo ia correr bem. Ao que o Marco respondeu que já o sabia. Sabia que tudo ia correr muito bem porque de manhã cedo todos tinham rezado por ela. Todos tinham rezado lá em casa pela médica que o ia operar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A senhora vai à missa"

sábado, março 30, 2024

explicação dos mantos [poema 384]

desnudado, o tecido não tem explicação, é a inutilidade. 
mas depois faz-se a descoberta da divisão, em quatro partes 
cai sobre nós o que resta do amor e acontece 

é uma partilha 

é um cobertor de sangue, na terra seca onde nascem flores 
é a explicação do abraço entre braços ou a própria explicação 

da partilha 

por último construo o caminho com chicotes 
entre laços 

é a partida

Que este Amor ressuscite em nós! (Jo 19,23-24)
Páscoa 2024

quinta-feira, março 21, 2024

explicação da cruz [poema 383]

além do nome da manhã 
ouvi o meu nome e o teu sussurro de silêncio. 
foi rápido e mais rápido passou 
silêncio que permaneceu silêncio 
e quedou 
 
os olhos ficaram presos em água.
com ela tudo se dilatou. 
cresceram até ao lugar do sussurro,
não conheço bem essa estrada. 
 
ouvi-te como um murro. 
 
sei que é uma escada 
 
 
Hoje, dia Mundial da poesia, achei que fazia sentido lembrar o dia do amor!

terça-feira, março 19, 2024

A solução vocacional da inteligência artificial

No ano passado, numa pequena cidade alemã, uma multidão reuniu-se para uma cerimónia religiosa protestante que foi orientada, na sua quase totalidade, pela inteligência artificial. Os sermões, as orações e a música difundiram-se por quatro avatares num ecrã junto ao púlpito. Li que alguns dos presentes acharam que faltara autenticidade, mas que muitos outros se haviam entusiasmado com o potencial da IA para tornar mais acessíveis e inclusivos os serviços religiosos. Sei que a discussão está lançada e que muita tinta há-de correr ainda sobre esta ferramenta. Mas estará à vista a resolução para a falta de vocações ao sacerdócio ministerial? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma Igreja virtual"

quarta-feira, março 13, 2024

O futuro da Igreja ou a Igreja do futuro

A Idade Média garantiu à Igreja um lugar na sociedade. A sociedade tornou-se cristã, sobretudo no Ocidente. Nascíamos praticamente cristãos. A fé não se questionava. A fé confundia-se com religiosidade. A religiosidade confundia-se com a cultura e, muitas vezes, com o poder temporal. Estamos, porém, numa época de mudança na Igreja. Estamos num tempo novo. Estamos, de certo modo, num tempo pós-cristão. Agora temos de anunciar o Evangelho a uma sociedade que já foi cristã, mas quis deixar de ser, e isso é novo. O primeiro anúncio era realizado junto de pessoas que não tinham ouvido falar do Senhor e agora é realizado junto de pessoas que se fartaram de ouvir falar dele ou que se fartaram de quem falava dele. 
Precisamos voltar ao início do cristianismo, recordando a razão do aumento exponencial do cristianismo. É a experiência do ressuscitado que tem de voltar aos nossos corações. É o testemunho dessa experiência que muda as vidas e os corações. O futuro passará por comunidades mais simples, mais pequenas provavelmente, ainda que em territórios grandes, mas numa organização mais aberta e participativa, mais vivas, coerentes e verdadeiras, mais capazes de testemunhar e ser exemplo, não tanto para a sociedade, mas nela. Serão sobretudo as relações inter-pessoais, familiares e afectivas, os instrumentos privilegiados da futura evangelização. Será necessário recuperar a vida normal como o espaço onde os cristãos dão testemunho de fé. A estrutura eclesiástica terá de assumir novos enquadramentos na sociedade e a sua organização eclesial terá de se assumir como um “nós eclesial”, deixando de lado "hierarquologias" instaladas. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As paróquias que estão a morrer"

sábado, março 09, 2024

enterro religioso de animais

Um padre católico zoólogo, de nome Rainer Hagencord, há muito que se preocupa cientificamente com a relação entre o homem e os animais. O padre que, pelo que me foi dado ler, dirige o Instituto de Zoologia Teológica de Münster, é a favor de que haja igrejas para sepultar animais, pois hoje, e cito palavras suas que li, “os animais são membros da família de muitas pessoas”. Como, na sua opinião, o processo de luto requer rituais, há dias manifestava publicamente o seu entusiasmo com a inauguração de uma igreja para animais. Um outro senhor, professor de teologia moral na Universidade Católica de Linz, na Áustria, Michael Rosenberger, a este propósito, informava que as igrejas cristãs evitam os enterros religiosos de animais, mas não existem declarações doutrinais em contrários. 
Não sei se é necessário haver declarações doutrinais para justificar a acção pastoral da Igreja. Nada tenho contra o padre Rainer e o seu amor pelos animais. Numa época em que tanto se fala do cuidado da Casa Comum, faz sentido reaprendermos a cuidar dos animais. Contudo, inquieta-me pensar na hipótese dos animais serem considerados membros das famílias, serem tratados como pessoas e, ainda por cima, como se tivessem fé. É, no mínimo, altamente estranho. Carece de uma maior reflexão. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Será que os animais vão para o céu?"

quarta-feira, março 06, 2024

soalhos [poema 382]

há pessoas que são soalhos 
nascem no chão e dele não saem para ser outra 
coisa que terra onde se pisar. São esse caminho sem nome 
à espera de ser húmus

segunda-feira, março 04, 2024

A confissão pelas redes sociais

Estava em casa, assolapada no sofá, no meio das teclas da virtualidade e, quando se apercebeu que o seu amigo padre internauta estava disponível, perguntou-lhe se a poderia confessar daquela maneira, por email ou por whatsapp ou através de uma outra rede social. E o padre respondeu-lhe que a confissão era presencial, era um tu a tu com Deus por meio de um instrumento chamado confessor. Podia desabafar e receber conselhos pelas redes sociais, mas a absolvição é presencial. 
Porque já o fizera um dia destes, questionava-se também e questionava o seu padre amigo da internet se podia pedir perdão a Deus diante do Santíssimo Sacramento e se isso bastava para se confessar. Pelos vistos, tinha vontade em se confessar diante de Deus, mas não diante do padre. Muito menos de forma presencial, olhos nos olhos. Talvez porque custe ou porque nem sempre os padres temos sido acolhedores o suficiente. 
O que esta amiga não sabia é que uma coisa é pedir perdão a Deus, o que é sempre bom, seja em que ocasião for, e outra um sacramento com o qual recebemos especialmente a graça de Deus com o Seu perdão. Parece-me que se tem esvaziado o sacramento da Confissão. Percebe-se isso de forma óbvia na diminuição daqueles que se confessam. Mas também no modo como se percebe a graça sacramental. A confissão não existe apenas para descarregar pecados, mas para se encontrar especialmente com a Graça de Deus.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Já ninguém se confessa"

quarta-feira, fevereiro 28, 2024

Tê-lo cá para o ver e amar assim

O meu pai teve de ser levado, de ambulância, ao hospital e levar quatro pontos na nuca. A funcionária do lar não conseguiu segurá-lo para não cair. Com estas notícias fica-se com o coração a palpitar, embora se confie nas pessoas que cuidam dele. Como a sua saúde está frágil e o problema maior está situado no cérebro, com sucessivos ait’s, fica-se com o coração a palpitar nas mãos. Para tranquilizar as minhas irmãs, mas ao mesmo tempo porque é assim que penso estas coisas, ao informá-las da situação, disse-lhes e cito-me: O problema, penso eu, que não sei nada destas coisas, é que para a situação clínica do pai, estas coisas só pioram. Mas também sabemos que nada está nas nossas mãos. Nem podemos ser egoístas ao ponto de querer tê-lo eternamente connosco. É o que é ou o que tem de ser. Eu prefiro vê-lo e amá-lo assim do que não o ter cá para o ver e amar assim, mas a vida é isto. Somos frágeis e peregrinamos para um dia chegarmos plenamente a Deus!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Feliz dia do pai"

sábado, fevereiro 24, 2024

A nossa língua

Num encontro de padres de diferentes idades e proveniências, antes da refeição comunitária, em bom modo eclesial, rezou-se para pedir a bênção dos alimentos. Qual não é o meu espanto quando o padre convidado para presidir à breve oração o fez em latim. Assim que terminou de rezar, naturalmente a uma só voz, a dele, eu intervim, em tom de brincadeira, para sugerir. Vá, agora, rezemos como deve ser. Alguns esboçaram um sorriso. Insisti, no mesmo tom, perguntando porque rezara em latim e, para aumentar o meu espanto, ele respondeu que era a ‘nossa língua’. Não tenho a certeza se ele entendeu o que disse ou se fui eu que não entendi. Falava seguramente do latim como a língua própria do clero, que o define e o delimita. E esta coisa da ‘nossa língua’ deixou-me inquieto. Durante a refeição pouco mais fiz do que alimentar maus pensamentos para com a ideia de uma certa casta especial que, dentro da Igreja, utiliza uma linguagem ou língua que ninguém entende, muitas vezes, nem os que a usam. Respeito que o colega diga o que pensa e faça como acha que deve fazer, assim como respeito as roupas ou gestos que utiliza e me parecem excessivamente clericais. Respeito a sua postura, porque faço esforço por respeitar as posturas que diferem da minha. Mas não gosto de ouvir expressões que parecem fazer de nós, os padres, gente especial.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O colarinho branco"

sábado, fevereiro 17, 2024

A meia homilia

Estava a meio da homilia do funeral quando a senhora entra na igreja, sobe a coxia até ao cimo, perto do altar, como se nada estivesse a ocorrer ao seu redor. Todas as atenções se voltaram para ela. Também a minha. E depois as atenções passaram para os beijos e abraços sentidos aos familiares. Gestos que nunca mais paravam. Parei eu de falar. Porque paralisei, sem querer, o raciocínio da homilia. Perdi-o. Mesmo assim, ela não parou porque eu parara. Provavelmente nem deu conta de que tudo parara em seu redor. A homilia terminou pouco depois porque eu perdera o fio à meada e não consegui mais saber que dizer. Ela não teve propriamente culpa. As minhas capacidades é que não chegam para tanto.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Um senhor Joaquim"

terça-feira, fevereiro 13, 2024

A escassez de padres e a oportunidade

Há cada vez menos padres, sobretudo na Europa. A tendência vai em crescendo. Entre 1985 e 2005, houve uma redução de 11% no número de padres no continente. Dados de 2021, as últimas estatísticas do Anuário Estatístico da Igreja, davam conta que em 2020 houve uma perda de 3.632 padres na Europa, perfazendo um total de 160.322. O número de seminaristas em estudos teológicos também diminuiu, rondando uma perda de quase 900 seminaristas. O único continente a registar aumento, tanto num caso como no outro, foi África. 
Esta escassez poderia ser a oportunidade para se repensar uma Igreja clerical, patriarcal e, de certo modo, machista, que finalmente aceitasse transformar-se para se tentar tornar uma comunidade de pessoas a caminho, na diversidade e na complementaridade, na responsabilidade partilhada. Em vez disso, vemos os bispos e os planos pastorais a insistir no mesmo, mesmo que se usem slogan’s a pedir uma Igreja menos clerical e mais sinodal. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os quatro primeiros apóstolos"

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Best post 2023 [parte III]

Deixamos os resultados da sondagem que perguntava: Qual foi para ti o melhor post de 2023? 

Os resultado passarão a estar junto aos restantes resultados de anos anteriores, AQUI.
 

terça-feira, janeiro 30, 2024

O padre e o outro lado da dor

Pouca gente se lembra dos que têm de trabalhar no meio da dor. Dos que estão do outro lado da dor. A Isabel não é assim. Não faz parte desse grupo. Ligou-me depois de ter ido dar um abraço apertado à ‘senhora Maria”, a senhora da funerária. E agora ligava-me para me dar um abraço pelo telefone. Com poucas palavras. Mas a chegarem ao coração como força. A Isabel tem o dom especial de estar atenta aos outros. Atenta ao ponto de ver o que poucos conseguem enxergar. Por sinal, hoje, aqui na paróquia, um acidente de automóvel e as mortes que ocorreram nele deixaram meio mundo num caos de emoções, eu incluído. E poucas pessoas conseguem entender a dureza do que é estar do lado da dor que não tem refúgio possível. O lado da dor que tem de dar a cara para que a dor pareça mais leve, como uma luz ténue ao fundo de um túnel. Esse lado que se aguenta somente por amor a Deus e às pessoas! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os funerais fazem-me dor de estômago"

quinta-feira, janeiro 25, 2024

Onde estava Deus?

Imagem de mdjaff no Freepik
Estava aflita, perdida, quase revoltada com a morte de uma familiar que lhe era muito querida e ainda não tinha a idade que nós achamos que já seria suficiente. Por isso me perguntava onde estava Deus na hora em que a sua familiar morrera de forma tão drástica e inesperada. Nestes momentos, ainda que faltem as palavras, temos o dever de dizer algo desde a nossa fé na ressurreição. Ocorreu-me dizer-lhe o que lera em tempos nalgum texto que me tocara e que não sabia agora o seu autor. Não sou eu, mas concordo absolutamente com ele. Deus estava no mesmo local onde estava quando morreu o seu filho. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"

terça-feira, janeiro 23, 2024

Best post [parte II]

Agradeço as indicações que me foram dadas e coloco à votação aqueles textos que, segundo essas indicações e segundo me pareceu, por gosto pessoal ou por terem sido mais comentados, podem ser os 10 melhores, mais tocantes ou mais interessantes textos não poéticos de 2023.
 
Agradeço agora o vosso contributo para apurar os 3 melhores. Podem efectuar essa escolha na barra lateral, no sidebar. 
 
Quem os quiser "revisitar", tem os links respectivos abaixo da sondagem. Bem haja pelo vosso interesse e colaboração!

terça-feira, janeiro 16, 2024

Best post 2023

Nos últimos anos, por esta altura, costumo colocar os textos de todo o ano a uma votação. Embora sabendo que não é o mais importante, é uma boa desculpa para revermos e relermos um ano que passou. Peço novamente a vossa ajuda para seleccionar aqueles textos/prosa que considerais ou considerastes como os melhores, os mais tocantes ou interessantes em 2023. 
 
Indiquem nos comentários o título ou títulos dos vossos preferidos. Deixo algumas sugestões, de acordo com a minha apreciação particular e tendo em conta alguns dos que foram mais visualizados, mas podem indicar outros que aqui não se encontrem linkados. Depois colocarei os 10 mais apontados a uma votação. 
 
Agradeço desde já a vossa participação e colaboração. A mim fez-me bem relê-los. Pode ser que faça bem a mais alguém.
 

Nota que os poemas não entram nesta sondagem.
Quem quiser dar uma espreitadela aos "best post" de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022 clique AQUI.

 

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