terça-feira, maio 29, 2007

Foi um colega que contou

Hoje venho aqui, às escondidas, para esboçar umas palavras de desconforto. Bem baixinho. Para ninguém ouvir a minha confusão. E conto, porque o colega não contou em confissão.
Um destes dias um colega. Um padre, claro. Outro. Nem sei bem a que propósito. Falava de um outro colega. Outro ainda. Que tinha viajado aos Estados Unidos. Visitava um amigo. Outro colega mais. E numa visita às paróquias encontrou uma criança. Como é normal e hábito aqui em Portugal, sorriu para ela. Com certeza concentrado nas palavras de Jesus: “Deixai vir a mim as criancinhas”. Ou então por pura exterioridade de simpatia. Que também nos é próprio. Aos portugueses. O colega deu-lhe um encontrão. Repeliu-o. Afastou-o da criança. Não entendeu. Mais tarde, em casa, explicou: não se pode olhar uma criança aqui nos Estados Unidos. Muito menos sorrir-lhe. Pode levar a outras interpretações. Todos desconfiam. Os padres são o alvo preferido. Lembras aquelas notícias? Há até quem desista de se abeirar do sacerdócio. Os jovens não querem ser conotados com nada.
E o colega que visitara os Estados Unidos não mais sorriu durante a sua estadia.

terça-feira, maio 22, 2007

O que é preciso para ser santa?

Sentou-se ao meu lado, quase com as mãos postas e com a cabeça inclinada levemente para o lado direito. É muito importante o pormenor do lado direito. Senhor padre, andei tão entusiasmada com aquilo da irmã Lúcia. Olhe. E olhei. Posso fazer uma pergunta? Já fez, mas nem lho digo, senão tinha de explicar-lhe a teologia toda. Senhor padre, o que é preciso para ser santa? Recordei automaticamente o jovem rico que chega junto de Jesus e faz uma pergunta idêntica. Não que ela fosse jovem ou rica. Eu também não sou propriamente Jesus. Mas é a situação. E digo. Pois, minha amiga, é preciso fazer o bem. Ah, mas isso eu já faço. Dou esmola aos pobrezinhos, vou a todas as missas, visito os doentinhos, a minha vizinha que tá c’uma trombose. Pois, digo. Digo sempre pois quando não sei que dizer a seguir. E pergunto-me baixinho, bem lá dentro, o que será fazer o bem. Depois, falando sério e em poucas palavras, é estar atento ao próximo, ao outro, às suas necessidades, com todo o amor desinteressado e gratuito que possamos utilizar. Claro que explico à senhora por outras palavras. Ela responde-me que isso já o faz. Na sua simplicidade, que por ser simplicidade é sempre linda, ela diz que cumpre já. Bom. Digo eu. Então só falta saber como vive. E continuo o raciocínio sem esperar que perceba. Não está em causa apenas o que fazemos, mas como vivemos o que fazemos. Podemos dar, fazer muito e não vivermos nada! Não interessa aquilo que se faz, mas a intensidade com que se faz. Há dias alguém pesava na balança a irmã Lúcia e a Madre Teresa de Calcutá. Ela riu e disse que deviam ser ambas magritas. Sorri também, mas continuei a comparação. Uma fechada no convento. Outra, de mãos, boca e coração abertos e libertos. Quem será a mais santa? Não respondeu. Pessoalmente, também gosto mais daquela parte de Jesus que investe claramente no irmão. Mas a resposta não pode ser dada desta ou daquela forma pelo modo pessoal como se gosta. As duas podem ser santas, imensamente santas, sem comparações possíveis. Porque o mais importante não é tanto o que fizeram mas como o fizeram. O que mais interessa é a forma como, no contexto social, político e religioso em que viveram, elas se tornaram verdades de fé e de amor, de entrega e de intimidade com o Senhor. E posso ser santa como elas? Faça bem esse bem. Faça-o com verdade.

quinta-feira, maio 17, 2007

O terço das vinte e uma e tal

Estavam assim habituadas. O terço das vinte e uma horas era cerca das vinte e uma e quinze, ou mais. Vinte e uma e tal. Esperavam-se. Enquanto a Igreja não estivesse composta, pelo menos uma ou duas pessoas em cada banco, não começavam. Hábitos antigos. Recordo os primeiros anos da minha paroquialidade. Sempre fui amigo da pontualidade. Quase casei com ela, o que não é exclusivamente bom, porque os carros e as viagens e os acidentes não perdoam. Podia chegar à porta da Igreja a faltar cinco minutos para a missa, ou até dois, mas à hora programada estava ao altar, paramentado e com um sorriso nos lábios. Acabava por ser engraçado, dado que iam pedir-me à sacristia para esperar as pessoas, que a Igreja ainda não estava composta. Como não conseguiam, tentavam empatar-me com conversa. Altruísmo, descobri. Um altruísmo estranho, mas altruísmo. Estavam preocupados com os outros. No entanto, nem que fosse só com cinco pessoas, eu começava. Assim os fui desabituando.
Entretanto, como não tenho ido rezar o terço com eles senão no dia em que lá vou celebrar a missa, o terço é rezado em comunidade na hora em que a Igreja se compõe. A missa fora marcada para as vinte horas e trinta minutos. Não demorou meia hora, que durante a semana não demoro muito. Como combinado, iniciámos o terço logo a seguir. Nem fazia sentido de outra forma. Eles estavam ali. Não iam a casa para voltar em vinte minutos. Aliás, a Igreja estava composta. Rezei com eles. A meio do terço dei conta de uns barulhos na rua. Não liguei senão mais tarde, quando a Maria me contou duma pequena discussão na rua. Umas poucas zangadas com o terço ter começado sem elas. Que não era costume, esbracejavam. Pela história, desta vez não estavam contra o padre. Também não estavam contra a hora da missa. Nem se lembraram dela. Pelo menos a discussão não a aflorou, pois que elas queriam era o terço. Não era a missinha. Na minha opinião elas não sabiam sequer contra o que estava a sua conversa a falar. Só não compreendiam como é que o terço foi mais cedo e não foi como é hábito. Porque elas estavam habituadas.

sexta-feira, maio 11, 2007

Só se for a fingir

Fora convidado para um almoço ao ar livre, depois de uma longa caminhada. Eu vestia normal, mas arejado. O meu normal arejado. Sentei-me na pedra. Encolhido, que não éramos poucos, mas uns poucos na mesma pedra. Comi no prato de plástico. Garfo apenas. Dava mais jeito para segurar o prato. Estava entre amigos. À vontade. Umas graçolas. Conversas banais. Rimos. Outras mesas vizinhas olhavam para as nossas gargalhadas. Quase todos nos conhecíamos. A minha excepção era constituída por dois casais, pai e mãe, filho e filha, ela de três anos e ele de quatro. Não hesitei em brincar com eles. Estavam já os meus braços a servir de trampolim quando alguém chamou o miúdo para levar, nem lembro, seria uma peça de fruta, ao senhor padre. Onde está? Perguntou. É esse senhor. Não é nada. Eu acrescento. Sou. Sou. Sou. Não é nada. Pergunto porque não. A cara de envergonhado e desiludido encosta-se ao pai, ao seu colo. A sério, filho, é padre. Não é como o da nossa terra. É mais moderno, mas é. Não é. Não pode ser. Pausou. Assim vestido? Acreditem que eu trazia roupa que bastasse. Não estava rota nem descosida. Eram apenas umas calças de ganga e uma t’shirt branca e vermelha nas mangas. Óculos de sol, que estava sol. Aproximei-me dele para lhe dizer que também havia de ir para o Seminário. Não, não vou. E já chega de brincadeira. Ó filho, não vês que é amigo da tia! A tia tem um amigo padre. Virou-se para mim de lado, não deixou desenvolver mais o assunto, e sentenciou. Só se for a fingir!
O pior é que as crianças não sabem mentir. O que dizem, no mínimo, é a verdade delas. Mas que verdades faziam parte do seu mundo? Eu garanto que não fiz nada de outro, de outro mundo. E não sei que parte de mim poderia estar a fingir. Ou que não estava a parecer real. Ou se outros fingem na sua realidade. Ou se fingem nas vidas que conhece. Ou em que mundo vivem os padres que ele conhece. Ou como devem viver os padres…

terça-feira, maio 08, 2007

Esta é a minha arma

Cheguei, como sempre, mais cedo. Estava diante do sacrário com o terço nas mãos. Admirei-me. Não o fazia tão devoto. De cinquenta e poucos anos, este amigo costuma usar quase todas as circunstâncias e situações para a brincadeira. Por isso nos damos tão bem. A amizade estende-se até às palavras medidas, mas sempre a roçar a gargalhada. Há quem ache exagero ou falta de respeito. Eu não. Eu gosto de viver assim com palavras fora de sítio no sítio certo, no limite do significado das palavras que podem ter ou ser usadas noutros sentidos, bem mais divertidos. Há quem o julgue homem de não se levar a sério. Eu levo das duas maneiras. A sério e a brincar. Admito que mais a brincar. No final da missa ficámos a sós com uma que outra piada. No momento da despedida realcei a sua postura com o terço dedilhado. Dizia-lhe que tinha subido mais uns pontos na minha consideração. Como se isso fosse importante. Era mais uma daquelas. Colocou-se então entre mim e a porta. Estancou-me, e olhou-me como ainda não tinha dado conta. Sabe, este terço anda sempre comigo há mais de trinta anos. Ganhei-o como prémio. Quando era miúdo acompanhava sempre o meu avô que era o sacristão. O padre, na altura, para nos fazer ir ao terço, lançava um concurso. Cartões. Por cada ida ao terço recebíamos um. No final do mês de Maio quem tivesse mais recebia um prémio. Eu nunca faltava. A bem ou a mal, nunca faltava. Era ainda uma oportunidade para estar fora de casa. Torci um pouco o nariz às últimas palavras e ao concurso, mas cocei-o na esperança desconfiada. Nunca tinha pensado numa assim. Não me parece de inculturar nos dias de hoje. Claro que o ganhei eu, padre. Nunca mais me abandonou. E mostrava-o. Andou comigo por Angola. Garanto-lhe que o rezo todos os dias. Nunca em trinta e tal anos, desde que o recebi, ficou por rezar. Em Angola juntava-me a um colega e, numa hora mais leve, rezávamos por aqui. O terço ia mexendo-se de um dedo para o outro na sua mão. Eu acompanhava o terço, os dedos, as palavras, os olhos molhados. Posso ser um doidivanas, mas com Deus nunca brinquei. Esta é a minha arma. Sempre foi. Todos os dias, padre. Caramba, respondi. E acrescentei que não tinha mais pontos para subir na minha consideração. A minha boca admirada perdera os pontos. Recordei a minha mãe que também rezava três terços todos os dias. Lembrei quanto gostava e gosto dela. Este amigo, o Zé, ensinou-me a gostar ainda mais dele. Fiz-lhe continência.

quinta-feira, maio 03, 2007

Ontem foi assim

Levantei-me mais tarde porque me deitara tarde. Cerca das nove e trinta. Casa de Banho com ele. Sim. Também fazemos dessas coisas! Tomo um banho meio quente porque o gás está a ir-se e ainda não tive tempo para ir buscar novo. Precisava uma secretária só para estas coisas. Ou secretário. Se calhar era mais próprio. A casa está fria porque… só preciso ligar o aquecimento para mim. Entretanto bateram à porta. Moro sozinho. Por isso não atendo. Deve estar a dormir. Estou sempre a dormir quando não abro a porta. Dizem. Às vezes escolhem aqueles momentos mais fisiológicos para bater à porta. E continua o dia. Depois do pequeno-almoço, saio para tomar o meu café da manhã no café em frente. Tenho um café que mora em frente e que me permite usufruir de som ambiente até bem tarde. Pior é quando não tenho estacionamento à minha porta. Ouço falar da Jacinta. Uma paroquiana doente com cancro. Preocupa-me o estado dela. Vou ligar dizendo umas piadas para animar. Só o possível. Recebo outro telefonema. Precisam que lhe faça o baptizado sem que os padrinhos estejam crismados: Há outro padre lá do sítio que permite. Explico o Código Direito Canónico. Entendo que estar crismado não é igual a ter fé. Mas tem de ser. Penso. Tenho de ir ao Centro por causa dos dois velhinhos que precisam que se lhes resolva o problema. Vou e almoço. No meio ainda rabisco o calendário litúrgico da semana. Preparo os avisos para os jovens elaborarem a Folha Paroquial. Quase duas horas. Converso com as empregadas. Uma refila porque não concorda com o horário do Domingo. Bateu a porta do escritório. Mais uns desabafos da Directora Técnica do Centro. Ouço já com o pensamento noutros lados. Entro em casa e torno a sair. Um amigo convida para café. Outro. Conversa puxa conversa. Desabafa. Quer desistir do Conselho Económico. Está cansado do que tem de ouvir. Animo-o. Animo-me. Já preciso. Chego a casa para ver as leituras do funeral. Faço o funeral que é o que me custa mais como padre. No final, depois do constrangimento dos choros a que assisto, vem uma senhora. Quer perceber porque é que não pode fazer a festa da Santa tal. Tal porque já nem consigo ouvir o nome correcto. Insulta-me. E continuo a sorrir-lhe. Casa de novo. Outra paróquia para celebrar missa. Vou mais cedo para atender confissões ou outras necessidades. Atendo só uma. Celebro a pensar no dia que está a passar. Acabo. Tinha uma reunião marcada com as zeladoras dos altares. Até para estas inventam reuniões. De doze aparecem duas. Não tenho vontade de fazer jantar. Ainda tenho de trabalhar no computador. Vou ao centro. Já está fechado. Tenho chaves e como qualquer coisa. Programo mais umas coisas no computador. Penso numa actividade. Recebo mais uns telefonemas. Bons e maus. Trabalho. Afazeres. Experimentam até ao tutano. Ouço do outro lado um paroquiano com problemas sérios. A esposa. Sinto-me incapaz. Queria rezar e já não consigo. A cabeça à roda. Apetece-me ter uma reunião com Deus e discutir com Ele. Deito-me. Claro que não adormeço logo. Revejo o dia todo. E o de amanhã. Ainda há quem pense que não trabalhamos!
E vou marcar uma reunião com Ele.