sexta-feira, setembro 29, 2023

re-clamação [poema 373]

ainda hoje te reclamo o sangue 
disseste que seria azul e às vezes verde,
como o céu e a terra em tempo eterno 
de acalmia 
 
disseste que seria um rio, e n’ele eu 
encontraria o mar nas suas margens
 
fui confundido pela palavra que ouvi 
e tu só disseste porque eu pedi 
 
vem com a lança e abraça-me com ela 
no peito desenha uma estrada em forma de cruz 
e o meu sangue será tão confundido como eu 
Será confundido com o teu

terça-feira, setembro 26, 2023

contemplar [poema 372]

não sei falar do campo, nem como se escreve 
pinto-o de cores, com flores, isso sei inventar 
porque basta estar atento 
ao teu olhar 
 
também não sei os nomes das flores, mas as cores 
pinto-as como se fossem os meus amores 
a dançar 
 
falta-me o salto do olhar pelo que desconheço 
mas imagino, pois sei imaginar 
e me fico para perpetuamente 
te contemplar

quarta-feira, setembro 20, 2023

A generosidade dos pobres

Esteve em Roma o tempo suficiente para conhecer algumas ruas de cor e alguns dos seus habitantes. Naturalmente que ia algumas vezes à Praça de São Pedro. Ali perto, encontrava sempre um casal sem-abrigo, ele sentado numa cadeira de rodas, ela sentada a seu lado, muitas vezes a fazer tricô. Saudavam-no sempre que passava. Buongiorno, padre. Reconheciam-no no meio dos transeuntes, porque ele também os saudava. Uma manhã, ao passar junto deles, a senhora pediu-lhe uma ajuda diferente da moedinha habitual. Que ajudasse o marido a levantar-se do seu cobertor estendido no chão e o colocasse na sua cadeira de rodas. Nem o cheiro do descuido o impediu de se dispor prontamente a levantá-lo e a ajustá-lo na cadeira. No final, delicada e muito agradecida, a senhora perguntou-lhe se aceitava um café, que ela teria todo o gosto em oferecer-lho.
 

sexta-feira, setembro 15, 2023

O padre das onze missas ao domingo

Tenho um colega e amigo que vive no outro lado do mapa, numas terras que o Papa Francisco chamaria de ‘periferias’. Desde o tempo dos estudos teológicos na universidade que, de vez em quando, trocamos umas palavras por telefone. Na segunda-feira pela manhã o Lucas estava cansado. Na véspera, no domingo, celebrara onze missas. Começara pelas seis da madrugada e terminara ao final da tarde. E falava-me disto como se fosse o mais natural. Não faz praticamente mais nada nos domingos. Não entendo como consegue. E não acredito que estas onze missas não sejam a correr, com homilias brevíssimas e com o cansaço a arrastar-se nas palavras e nos gestos. Dizia-me que não podia ser de outro modo. As pessoas exigem. As pessoas precisam. Lembrei-lhe o Código de Direito Canónico que ele estudara na universidade e ele respondeu-me com uma respiração prolongada. Lucas, falo-te do que conheço pelas minhas bandas. Se tivéssemos levado a peito, há muito, a norma canónica quanto ao limite de missas, já tínhamos percebido que há muito mais Igreja para além das missas, já tínhamos mais reorganizada a nossa vida pastoral, já tínhamos investido noutros ministérios, já tínhamos ensaiado novos caminhos para sair de uma encruzilhada cada vez mais encruzilhada.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Ser padre ou ser Igreja?"

segunda-feira, setembro 11, 2023

a igreja cheia de gatos

Não saberia dizer quantos gatos vão à missa, mas sei que são muitos pelo ‘bichanar’ que se escuta naquela igreja durante quase toda a missa. São vozes de fundo de gente que gosta de rezar o que o padre está a rezar. Sabem a missa de cor, e tentam acompanhar em voz baixa, mas o suficientemente audível. Algumas delas têm o terço na mão e vão passando as contas. São ecos de oração bsch bsch bschee. E por mais que o padre da freguesia lembre que a eucaristia é feita de diálogos entre o presidente da celebração e os demais celebrantes ou que na eucaristia não se deve rezar o tercinho, elas continuam a fazer bsch bsch bsche... Ora o senhor padre, que é muito compreensivo mas risoteiro ao mesmo tempo, um dia destes interrompeu a missa para as escutar. Elas calaram-se assim que deram pelo silêncio. E o senhor padre lá explicou novamente que esses ruídos de fundo eram mais do tempo das missas em latim, quando não se entendia nada do que o padre dizia, mas que agora já não devia ser assim. A não ser que também não entendessem nada do que ele dizia. E na verdade, das duas uma: ou não entendiam mesmo ou então eram surdas. Porque mal o padre terminou a explicação, os gatos continuaram a ser chamados: bsch bsch bsche...

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me desumano"

segunda-feira, setembro 04, 2023

Vinha apenas para se casar.

Muito querida e simpática. Ele também, mas mais discreto. Ou mais calado. Encontraram-se com o padre para combinar os últimos retoques da cerimónia do seu casamento. Ela olhando de frente e ele de soslaio. Ela atrevida e corajosa e ele meio envergonhado. Senhor padre, queremos pedir-lhe um favor. Durante a cerimónia não pergunte quantos filhos queremos ter. É que, embora em tom mais ou menos de brincadeira, já o ouvimos perguntar a uns noivos quantos pretendiam ter, e como nós não pretendemos ter nenhum, gostaríamos de não ter de responder a isso publicamente. O noivo pareceu-me ter vontade de a interromper para dizer que ela é que não queria ter filhos. No entanto, mudou somente o olhar de soslaio para ela. Ela é que vestia calças, como se costuma dizer. O padre prometeu que não perguntava. Também lhes fez considerações sobre o significado de um amor fecundo. Mas ela não quis ouvir. Vinha apenas para se casar.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Mais um Manuel e uma Maria vão casar pela Igreja"