quinta-feira, outubro 31, 2019

Perante a morte

Faz oitenta e oito anos no próximo mês, se assim Deus o permitir, como me disse. Está acabadota. Não pode comer como a maioria das pessoas. Tudo passado. Tudo papas. Tudo quase líquido Tem um pace-maker. E com ele tem mais umas dezenas de coisas que não sabe bem. Vai indo, cheia de energia, porque assim foi sempre. Vai resolvendo a saúde com essa genica. Mas sabe que não há-de faltar muito tempo para ir para o Pai. E diz-me que está contente. Quer viver, mas também deseja, no seu íntimo mais íntimo, chegar a esse momento. Tem muita curiosidade em saber como será tudo. Disse-mo entusiasmada. Estou a imaginar, padre, que deve ser lindíssimo. Deve ser tão bom!

segunda-feira, outubro 28, 2019

Os ultras

O substantivo ou adjectivo, como lhe quiserem chamar, não é da minha autoria. Chamam-se ultras àquelas pessoas que, por algum motivo e em determinado aspecto, são extremistas ou radicais. Ouso chamar ultras àqueles católicos de uma ala extremamente conservadora e que têm atacado veementemente o Papa Francisco e grande parte das suas opções, posturas, discursos e documentos, indiciando que estão contra a doutrina e contra a Igreja. 
Os ultras são, na sua maioria, gente que gosta de se pensar como uma elite. Cardeais, ou parecidos, que adoram longas caudas e longas vénias, vestes bordadas e de marca, autênticos príncipes e princesas da Igreja instituição. Padres e quase padres, ou leigos que parecem mais que padres, e citam de cor o catecismo, Tomás de Aquino, documentos e papas de séculos passados. Os argumentos são quase sempre citações ou passagens da história caducada. Também citam a Bíblia, como arma de arremesso, porque a Bíblia diz assim e assado. Porém, apenas utilizam passagens e versículos que justificam, literalmente, as suas investidas. Parece gente formada. Mas é mais enformada que formada. Mais manipulada que formada. Aliás, utiliza muito esse estratagema da manipulação. E segue líderes interesseiros que não estão dispostos a perder o seu status quo. Gente que se acha dona do Espírito Santo e sabe a vontade de Deus, em primeira mão. 
Arrogam-se o direito de atacar quem quer que tenha opinião diferente da sua ou que ponha em causa a pretensa doutrina ou as normas morais. Nem que seja o Sumo Pontífice. Ou seja, o responsável máximo da mesma Igreja que tanto defendem. São integristas, donos da verdade, e veem inimigos em tudo e em todos. Porque todos os outros são impuros. Não fazem parte do grupo dos puros. Vade retro. 
São católicos que estagnaram numa fase da história da Igreja que já lá vai, mas que querem ressuscitar. Na esperança de que haja uma nova ressurreição. Não a de Jesus. Mas a da Igreja que desfaleceu. Gente que não quer ver os sinais dos tempos e se sente ofendida que alguém o faça. Gente que se acha a mais católica do mundo e que faz juras de fidelidade à mãe Igreja. Na sua boca, fica-se, muitas vezes com a sensação de que é Deus que serve a Igreja e não a Igreja a Deus. 
Gente que me faz lembrar os fariseus hipócritas do tempo de Jesus que viviam para cumprir coisas, rituais, preceitos, sem que isso interferisse realmente no mais íntimo das suas vidas, o coração. Conjunto de gentes que gostam de se chamar comunidades, embora sejam mais guetos fechados sobre si mesmos, que vivem mais para manter as crenças dogmáticas do que a simplicidade da fé e do amor salvador e misericordioso de Deus. Gente que é capaz de adorar a Deus, mas não tenho a certeza de que O amem.

sexta-feira, outubro 25, 2019

Ar [poema 233]

Respiro duas vezes para te levar comigo
Inspiro e aguento quanto posso o ar,
Tenho-te dentro de mim a desabrochar

Respiro mais uma vez
Sei que és tu sem te ver
Sem te apalpar, mas a saber
Que és quem respiro

Pela melodia que se compõe
Pelo deleite que se aninha
Em mim ao respirar
Aquilo que é teu, és tu
O meu ar

quarta-feira, outubro 23, 2019

Baptizado diferente

Senhor padre tal, que era eu, olhe, nós queríamos baptizar a nossa filha, mas queríamos algo diferente! Sabe, assim, usarmos uma música que costumamos colocar à Matilde, à noite, para a embalar. Tínhamos pensado em balões. Azul-turquesa clarinho, porque ela gosta muito dessa cor e nós também. Pelo menos ao fundo da Igreja, para se notar que é uma festa. Que é a festa da nossa menina. Para não ser só água, tínhamos pensado em colocar umas flores por cima daquele recipiente, que não nos recordamos como se chama. Pia baptismal, interrompo. Claro que queremos fazer uma coisa mais nossa. Mais familiar. Pouca gente. Apenas familiares e amigos. Quando lhes perguntei quantos seriam esses poucos familiares e amigos, responderam que não chegariam aos cento e cinquenta. Portanto, pouca gente, como é óbvio. Até tínhamos equacionado a hipótese de ser na igreja tal, que é muito bonita. Não que esta não seja. Mas, está a ver, era mais familiar. Só que acho que não cabemos lá. Porque são poucos, obviamente, penso eu. Ahhh, já nos íamos esquecendo. Estávamos a pensar em fazer a leitura de uns poemas em vez dos textos habituais, misturada com música clássica. Conhecemos um grupo que não é muito caro e que era capaz de ficar bem. Que acha, padre? Claro que não achei nada. Achei muita coisa e nada ao mesmo tempo. No meio de tudo aquilo, não encontrei nada. Nem o baptismo encontrei.

domingo, outubro 20, 2019

Quando nos toca

Toca longe. Toca ao lado. Toca perto. Cada vez mais perto. Um nódulo na mama. Um cancro no intestino. Uma dor estranha. Uma nódoa que não cura. Chama-se melanoma. Ou linfoma. Ou carcinoma. Nomes que há uns anos ninguém conhecia. Nomes que agora se ouvem, mesmo desconhecendo o seu real significado. É apenas mais um caso nos muitos que, diariamente, tocam perto, cada vez mais ao lado. E fica-se assim. Impotente. Há uma coisa chamada fé, que também há dificuldade em definir, que ajuda a aceitar. Há um Deus por detrás disto tudo. Respiro e deixo-me embalar pela respiração. Estou vivo. E há algo com vida que nos vai tocando!

quinta-feira, outubro 17, 2019

O poema [poema 232]

O poema termina aqui, onde começou
Passo-o a limpo para que o possas reconhecer
Para que, lendo-o, possas entender
Que o poema é e já passou
Que tudo começa onde alguém terminou
E mesmo sem o ser
Acabou

segunda-feira, outubro 14, 2019

Missas dominicais ou mais ou menos isso

Regressei, há pouco, de duas missas dominicais, celebradas com o intervalo de cerca de vinte minutos e quarenta quilómetros. Participaram nelas um total de vinte e oito pessoas. Contei-as, porque é fácil contar estes números. Para ser mais concreto, treze numa e quinze noutra. Duas paróquias distantes uma da outra, mas unidas em similar realidade. Numa, o coro é uma senhora que repete sempre os mesmos cânticos e o leitor não varia de semana para semana. Na outra, variam os leitores, embora pouco, mas não varia a idade dos presentes, muito acima dos setenta anos. Por mais que insista, as pessoas ocupam harmonicamente a igreja, um aqui, outro ali e outro lá ao fundo. Dispersos, mas para que mais bancos da igreja sejam ocupados, digo eu. Sempre se pode dizer que havia gente em dez bancos. Terminei a manhã com a missa na minha paróquia maior. Valeu para sentir que valeu. Eu sei que aquela gente das paróquias mais pequenas não pode nem deve ser abandonada. Sei que cada eucaristia vale por si mesma e que possui a dignidade que Cristo lhe conferiu. Sei que as assembleias cristãs não deixam de ser assembleias por terem pouca gente. Aliás, gente que merece escutar a Palavra de Deus e alimentar a fé. Só não sei como manter isto, no meio de outras tantas paróquias!

quinta-feira, outubro 10, 2019

Falemos de missão ou outras coisas

Missão, Missão Ad Gentes, Evangelização, Nova Evangelização. Isto anda como andam as modas. Agora fala-se muito de Missão, porque é o termo que Francisco gosta de usar por excelência. Há uns quarenta anos, a expressão Evangelização também constituía alguma novidade. Não passou muito tempo para que se começasse a falar de Nova Evangelização, ainda que nunca se tenha percebido completamente de que se tratava. Hoje fala-se no conceito amplo da Missão, mas cada vez que se usa o termo, lá se vai o pensamento para as terras de missão, como eram conhecidas as missões ad gentes. Ainda hoje, quando nas nossas comunidades, falamos de missionários, o pensamento foge para aqueles homens que viajaram para esses países onde Cristo, supostamente, não era conhecido. Como se nós, pela nossa identidade, não tivéssemos o dever de ser missionário. Já para não falar no descuido fácil do proselitismo ou colonialismo de algumas dessas missões. Mas passemos à frente. Há quem, de modo mais pró, utilize o termo Missão Inter-gentes. Uma amálgama de tudo para todos e entre todos. Interessante. Assim como a identificação que se faz de Missão Ad Intra e Ad Extra, ou seja, a missão para dentro da Igreja e a missão para fora. Ambas necessárias. Gosto particularmente do termo Evangelizar como ‘dar a boa notícia’, a boa nova da salvação. Mas gosto de falar em Missão porque penso neste termo como vocação, como sentido da vida, como identidade. Porém, o que importa realmente não são os termos que usamos, mas que toda a nossa acção de Igreja, e como Igreja, seja permanentemente o anúncio e o testemunho da Boa Nova da Salvação. Todas as teologias, formações, catequeses, liturgias, para-liturgias, acções sócio-caritativas, planos e programas pastorais, encontros e reuniões pastorais, deveriam ser acções evangelizadoras.

domingo, outubro 06, 2019

brado [poema 231]

Esta noite preciso escrever no teu corpo,
Tatuá-lo, mais uma vez, com a palavra,
Esboçar em ti o que vejo nos espelhos,
Marcar-te com o sinal da minha ânsia,
Sussurrar-te ao coração com este peito
Rasgado por não mais saber onde é a dor,
Desfazer-me num grito a dizer quem sou:

Uma cruz que carrega o teu amor.

quinta-feira, outubro 03, 2019

esta coisa da ressurreição da carne está mal explicada, não tá?

Já estávamos levantados e a despedir-nos. Não tem propriamente fé. Tem qualquer coisa de inquietação que gostava de poder chamar fé. Mas não tem. E não é só por não ir à missa. É porque, mesmo não questionando a existência de Deus, que pouco lhe interessa, acha que estas coisas não são necessárias. Ele tenta que a sua vida tenha sentido. Lê muito. Lê muitas coisas de Deus e da filosofia destas coisas. Gosta de saber. Penso que gostaria de saber de Deus. Por isso procura-me para conversarmos. E faz perguntas. Não sei se para me experimentar, se para aprender, se para se encontrar. Tal como esta que fez da última vez que nos reunimos para uma refeição. Ó padre, esta coisa da ressurreição da carne está mal explicada, não tá? 
Lembrei imediatamente uns textos que li em tempos e que realçavam que a ressurreição de Jesus não tinha sido propriamente corpórea. Não, pelo menos, como o corpo que Jesus possuía enquanto Deus encarnado. Por isso é que os seus apóstolos não o reconheciam. Era uma outra forma de corpo. Difícil de explicar. Muito difícil. Mas também não era um fantasma. Não, não era. Era só uma forma visível de se ser que não se conseguia definir. Contei-lhe isto. E depois disse-lhe que a Igreja, na sua doutrina, nos quer ajudar a entender que havemos de ressuscitar como um todo. Como o ser que somos. Como a pessoa que somos. E que nós somos, segundo a Igreja, tal como aprendi na teologia, um conjunto de corpo e alma. Aquilo que nos faz ser não é só o corpo comandado pelo cérebro. Há algo, a que chamamos alma, que nos faz ir mais longe, para além das nossas capacidades. É a diferença com os animais irracionais. E o que ressuscita é esse todo. Não é só a alma. Na ressurreição existiremos de modo diferente daqui da terra. Ressuscitará o corpo? Ressuscita o que somos e nos constitui. Mas não será como aqui. Até porque aqui somos corruptíveis e na vida eterna seremos incorruptíveis. É por aí que deve procurar, senhor José. Sem todas as certezas. Porque certo, certo, só saberemos quando a nossa vida se atravessar para lá. Eu também não tenho certezas. Tenho entendimentos.