quinta-feira, agosto 31, 2023

a igreja dos mortos

Ela dizia-lhe que, por amor de Deus, o casamento dela não poderia ser realizado na igreja paroquial. Poderia ser em qualquer igreja ou capela da paróquia, menos ali. Até poderia ser na rua, mas não ali. Estava fora de questão. O padre, que apenas a escutava e acolhia com atenção, nunca lhe dissera que o casamento tinha de ser na igreja paroquial. Ela é que se adiantava a dizer que queria assim e ponto final. E sem que o padre lhe perguntasse o que quer que fosse, ela acrescentou que associava aquela igreja aos mortos e isso causava-lhe muita dor. Finalmente, o padre, que fez questão de não fazer nenhum comentário, entendeu o motivo daquela empolgada noiva: como ela só costuma entrar na igreja paroquial para os funerais, é natural que ela associe aquela igreja aos mortos. A avaliar pelo número daqueles que só entram na igreja para funerais, é bem provável que muita mais gente pense como ela.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Outra promessa esquisita"

terça-feira, agosto 29, 2023

nós [poema 371]

quando lhe afaguei o rosto, coube-me no coração 
uma mão cheia de rosto por inteiro que era, 
no mesmo instante, eu 

quando os olhos se tocaram, acendeu-se uma vela 
dentro da pele que é o sítio das velas mais vivas, 
no mesmo instante, eu 

quando o lábio se desprendeu e voou na sua direcção 
desenhando um anel, que somos os dois ou nós, 
no mesmo instante, sou eu

sábado, agosto 26, 2023

A paróquia das moscas

É conveniente referir que perto da igreja está um curral. Talvez isso justifique que a maioria das criaturas que vai à missa sejam as moscas. E há épocas festivas para elas, nomeadamente quando vem o estio. Costumam ir em muito maior número que os paroquianos que é comum designar de pessoas. Para cada paroquiano destes que vai à missa corresponde para aí umas quatro ou cinco dúzias de moscas. E se as portas estiverem escancaradas, como o Papa Francisco tem pedido, a proporção aumenta exponencialmente. Foi assim um dia destes, ao ponto de quase não conseguir abrir a boca para a consagração, com medo de que, em vez de sair a Palavra do Senhor, entrasse ou saísse mosca. A solução, certamente para alegria dos paroquianos que é comum designar de pessoas, foi despachar a coisa, passe a expressão. Nos finalmentes, concluída a bênção final, não resisti a despedir-me com um ide em paz e que as moscas vos acompanhem. O ideal é que cada um leve algumas dúzias delas para as amestrar em casa. Naturalmente que o pessoal se riu e esbracejou, ainda que o esbracejar já fizesse parte de quase toda a cerimónia para espantar as moscas. Estais a ver - disse ainda - se não vêm as pessoas à missa, vêm ao menos as moscas.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Será que os animais vão para o céu?"

terça-feira, agosto 22, 2023

todos, todos, todos

O Papa Francisco tem este dom dos chavões. Frases que ficam a tinir nos ouvidos e facilmente se repetem em qualquer circunstância. Até parece que aprendeu bem uma das regras modernas da comunicação. E assim fez nas diferentes comunicações durante a JMJ em Lisboa. Podia citar uns poucos desses chavões, mas um dos que fez mais eco na boca de muitos dos habituais críticos, contra-críticos, comentadores de bancada, escritores de verbo de encher, opinion maker’s e influencer’s foi o do “todos, todos, todos”. Não se conseguem contar pelos dedos todos os que se esforçaram a tentar clarificar, interpretar e até meditar o que significavam tamanhas palavras. Grande hermenêutica. Só faltou alguém se lembrar que o Papa queria dizer “todes” em vez de todos. Muitas vezes me veio à ideia este “todes”. Então é que era um Papa fixe. Mas vamos lá falar a sério, meus amigos. Eu não percebi como é que um chavão que apenas repete aquilo que já se sabe do tão grande amor de Deus, que não exclui ninguém, que ama a todos sem distinção e que, como se percebe na cruz, enviou o Seu filho ao mundo porque quer salvar todos sem excepção, é motivo para tanta tinta e tantas opiniões e contra-opiniões. E agora sou eu que faço hermenêutica de chico-esperto. O que o Papa quis foi deixar claro, mais uma vez, que Deus ama sem medida todos e todos têm lugar no Seu coração. Afinal é isso que qualquer missionário deve dizer e o Papa não é mais que uma missão aqui na terra. E já agora, convinha que TODOS percebêssemos que também nós somos ou devemos ser uma missão aqui na terra.

A PROPÓSITO OUN A DESPROPÓSITO: "Qual é o limite para amar a Deus?"

sexta-feira, agosto 18, 2023

Não sei que dizer da JMJ

Ainda hoje estremeço ao recordar a Carminho a cantar na vigília da JMJ e o silêncio de um milhão e meio de pessoas, sobretudo jovens, diante do Santíssimo. Muito deles de joelhos. Um silêncio que foi um grito. Tenho também no coração as ruas de Lisboa cheias de alegria, de cânticos, de vivas e de muita partilha. Um entusiasmo que foi certeza de uma paz possível. A via-sacra fez-me chorar quase do princípio ao fim. Não fui o único. Quando, no final da mesma, eu e os jovens do grupo nos olhámos de lágrimas nos rostos, demos um abraço colectivo com sabor a eternidade. Foi muito bom. Sinto-me orgulhoso do meu país e da minha Igreja. Pese embora alguns pequenos ou grandes senãos, Lisboa ficou no mapa do mundo e da fé. As palavras não chegam para descrever este tanto. Participei com um grupo de jovens da paróquia e seguramente que, no meio dos imensos cansaços e quilómetros a pé, retemperámos forças. Afinal a fé ainda entusiasma. Afinal a Igreja que tem sido tão criticada é uma Igreja viva. Não é uma Igreja cansada, como se tem ouvido dizer. É apenas uma Igreja a precisar de voltar continuamente à Primavera. Não sei muito mais que dizer da JMJ. Não sei mesmo. E sei que o que disser não será nada de especial, pois não sei dizer as palavras bonitas que muitos comentadores e críticos sabem dizer. O que posso dizer é que ainda estou em modo JMJ e não quero esquecer cada segundo vivido dentro desta peregrinação. E se a pandemia e muitas outras adversidades têm atingido fortemente a Igreja, a JMJ a mim mostrou-me que o mundo tem futuro e que, dentro dele, a fé sempre será um presente. Presente como "agora" e presente como "prenda". Mostrou-me igualmente que esta geração, que muitos temos como individualista e que vive nas redes sociais, também sabe estar aberta aos outros e à realidade transcendente. A ver vamos o que o futuro nos diz ainda desta JMJ, com os frutos que cada um levou para suas casas, seus ambientes, suas comunidades. A ver vamos como continua a JMJ.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Papa nas Jornadas Mundiais da Juventude"

quinta-feira, agosto 10, 2023

casamentos quase civis

Saí agora da igreja, depois de concluído um casamento que me pareceu muito mais um casamento de conservatória de registo civil do que um casamento católico, embora saiba que as raízes da fé estavam, porventura, nalguns dos presentes. Saxofone à entrada com músicas que não tinham nada a ver. Nenhum grupo de animação musical, a não ser este senhor que tocou à entrada do noivo um tema, outro à entrada das damas de honor, outro à entrada dos meninos das alianças e outro à entrada da noiva. Nada de litúrgico ou de mensagem religiosa. Leituras a correr, cerimónia a correr, tudo a correr que à saída se esperava outro grande arraial com música de circunstância, foguetes e o habitual arroz em quantidade. Drone à mistura. Flores pela passadeira, gritos e palmas a horas e a desoras. Quase toda a assembleia comungou, o que me levou a desconfiar pois não respondiam aos diálogos da celebração. O ritual fez-se. Cumpriu-se. Concluiu-se. No final assinámos os registos e pronto. Por mais correcto que eu tentasse ser ou por mais simpáticos e merecedores que fossem os noivos, quase tudo me lembrou o casamento pelo civil a que assisti já lá vão uns tempos. Se não fizermos algo para contrariar esta tendência, qualquer dia estas cerimónias não são mais do que uma cerimónia social na qual tanto dá estar um padre ou um conservador.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Um casamento que se chama civil"