quarta-feira, dezembro 31, 2014

2015: Nunca desistas de nós.

Acho que a idade é uma mestra. É dos melhores professores que temos na vida. Ou pelo menos com ela vêm até nós muitas sabedorias. E em cada ano que passa, sem querer, deixa de ser importante esse passar. Hoje, nas vésperas de um novo ano civil, não me apetece senão desfrutar que estou vivo. Estou aqui em casa a trabalhar como faria em qualquer outro dia ou altura do ano. Amanhã farei o mesmo. Amanhã será dia de missas como habitualmente em cada Domingo ou dia de feriado. Imagino que amanhã não haja muitas diferenças com o dia de hoje. Apenas muda um número nos quatro números que indicam os anos. 2015. E é a idade que ensina que a vida não se pode concentrar numa data ou numa passagem de ano. Aliás, cuido que a partir de determinadas idades, deixamos de olhar o futuro para olhar o passado. Não estou ainda nessa etapa. Estou talvez na intermédia, que olha para o futuro e para o passado ao mesmo tempo, como se o presente ditasse o que foi o passado e marcasse o futuro. E é por este motivo que me apetece escrever ainda antes de sair para ir ter com uns amigos de peito. A família vai juntar-se a grande distância de mim. Já foi muito bom o Natal com ela. Os que a vão substituir são bons substitutos. São os substitutos que Deus me deu ou dá. Cá está o que eu estou a pensar. No que Deus nos dá. No que Deus nos deu em 2014. No que esperamos ter da Sua parte em 2015. Não quero olhar muito atrás no tempo. Mas reconheço quase ao segundo a presença desse Deus que teima em amar-nos apesar das nossas teimosias. Olho para o amanhã e sinto que Ele vai lá estar como sempre numa presença discreta, mas significativa, actuante e transformadora. Meu Senhor, meu Deus e meu Tudo, eu sei que operas em mim, operas em cada um de nós. Eu sei que nos concedes dons para além do nosso merecimento e da nossa bondade. Nunca desistas de nós. Nunca desistas de mim, mesmo quando não for aquilo que esperas que seja. É isso que desejo para mim e estendo a todos os que amo directa ou indirectamente, a todos os que precisam de Ti através de mim, onde quer que seja.

quarta-feira, dezembro 24, 2014

botão de vida [poema 38]

Caem botões de neve lá fora, sem frio.
Caem juntos, e não vêm sozinhos, do céu.

Trazem com eles um botão de rosa, a prosa.
mais branquinho ainda, que coisa tão linda.
As cores fazem festa à sua volta, à porta.
A vida cresce à sua frente, uma semente.

Tudo se torna vida,
Branca ou colorida.

Ouve-se a canção de Nascimento,
que grita: Este é o grande momento.

De uma forma muito simples, neste Natal de 2014  desejo a todos que Deus aconteça!

terça-feira, dezembro 16, 2014

Como classificarias a Igreja?

Um dia destes, ou melhor, uma noite destas, num encontro interessante com jovens, e no meio de uma pequena brincadeira, pedi aos presentes que de zero a dez tentassem classificar ou avaliar a Igreja dos nossos dias. Alguns tiveram a coragem de falar a sua pontuação. Outros calaram-se. Apeteceu-me insistir com aquela de Levante o dedo quem se situa entre os zero e os cinco, os seis e os sete, e assim por diante. Lá foram levantando os braços aos poucos, e pouco acima do meio da tabela.
Às tantas, uma das jovens, irreverente e atrevida, mas com sincera vontade, levantou outra vez o braço para me fazer a mesma pergunta. E o senhor padre, como a classificaria? Recordo que respondi prontamente Dez. Dez na escala de dez. Inquieta, perguntou porquê. Respondi que porque a Igreja era de Cristo. Ele é a cabeça da qual nós somos o corpo. Por isso só poderia atribuir-lhe um dez. E será sempre dez, mesmo quando não se goste de algo na Igreja, seja estrutural seja humanamente falando, seja como seja. É como um orçamento de Estado, lembrei. Uma coisa é aprovar o orçamento no geral, e outra nas especialidades.

sábado, dezembro 13, 2014

Vou aqui a Belém [poema 37]

Trabalho na máquina do tempo
Da vida faço um segundo, moribundo,
Vou daqui a Belém, num momento.

Procuro em vão, onde estão?
Nas casas dos homens não.

Tropeço nas estrelas, desisto ou não?
Eis quando senão, surge, nasce
No lugar daqueles que habitam
em palhas e não são, mais que amigos
do homem que, então
O deixa ali, deitado, coitado
Como se não fosse deste mundo
Que num segundo, moribundo,
Me traz de volta na máquina do tempo.
Venho de lá num momento.

E não volto, porque aqui tenho Belém
O Menino Jesus e Sua Mãe

sexta-feira, dezembro 12, 2014

novo dia novo [poema 36]

Dá-me um dia novo
Que a manhã seja o dia todo
Que o entardecer seja novo início
Que o paraíso seja um mero
Que a eternidade seja um eterno hoje
Que a esperança seja sempre ontem
Que a alegria seja tudo em ser
Que o conjunto não seja justapor
Que o Nós seja a habitação
Que eu precise que nada mais precise

Dá-me um dia novo
Um dia que comece e acabe em Ti
Um dia que comece e nunca acabe

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Maria e o Faça-se em mim

Há ruídos lá fora. Ouça carros a passar e vozes misturadas. Mas não as consigo definir. Parecem apenas melodias da realidade. Eu estou aqui dentro com Maria. Sim, com Maria na passagem que diz “Faça-se em mim a Tua vontade”. Parei nela. Estacionei ali. Por isso estou em silêncio, mas não sem palavras. Não sei como Maria teve essa coragem! Não é apenas um desejo. O desejo de que Deus faça alguma coisa. É abertura. Abertura total para que Deus entre e me preencha todo. Não é vontade de que algo aconteça, com o risco do acontecer que é efémero. Agora acontece e depois deixou de ser no mesmo instante em que deixou de acontecer. É a disponibilidade para que seja, para que Deus seja em mim. Maria tinha essa disponibilidade, que não era apenas para ser instrumento. Era disponibilidade de vida. A minha vida é Tua, como eu quero que a Tua esteja em mim. Por isso este Sim é a fé. Por isso a fé nos faz felizes porque se trata de amor. Por isso quero ser padre. Por isso o silêncio em mim faz mais do que o ruído lá fora.

sexta-feira, dezembro 05, 2014

O baptizado social da Sara

À saída da igreja estavam dois palhaços, ou melhor, duas pessoas vestidas de palhaços, com um boquet de balões cheios de hélio, um de cada lado da porta. Dentro estavam cerca de sessenta manequins, ou melhor, pessoas bem vestidas e aperaltadas, num entra e sai, num fala e comenta, num cumprimenta e sorri. Tratava-se afinal do baptizado social da Sara. Tinham escolhido o Sábado à tarde para que os convidados regressassem a suas casas sem sobressaltos. De facto, depois das três horas da manhã, com algumas bebidas bebidas, o regresso pode ter sobressaltos. A festa foi muito linda. Foi mesmo. E não quero ajuizar. Retirem as frases em que falo de palhaços e manequins. Fixem-se apenas no sacramento. Sim, para o baptizado que os levara a tamanha celebração com palhaços, balões, comes e bebes até altas horas, animação musical pimba para dançar e arranjar mais apetite para voltar a comer e beber. Fixem-se no sacramento. O baptizado social da Sara faz parte dos sacramentos que hoje a sociedade, através da Igreja, oferece a pessoas bem intencionadas mas com uma ideia errada acerca da fé e dos sacramentos. Que vêem a fé como uma cultura e os sacramentos como um acto social.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

O advento é um tempo de “espera”

Aqui para os meus lados diz-se que se vai fazer uma espera quando, às escondidas ou às escuras, se vai preparar o assalto a alguém. Faz-se-lhe uma espera para lhe dar uma coça ou para lhe sacar alguma coisa. Não sei que possamos sacar ou sovar no advento. Mas sei que o advento é um tempo de espera.
Ó padre, não era melhor dizermos esperança e evitávamos assim essas confusões de que está a falar? perguntou a Maria João no meio da reunião de catequistas. Ó Maria João, a esperança pode ficar-se naquela de ansiar algo, de esperar ou confiar que aconteça algo, mas não no agora que tem a certeza do acontecer e que começa já a acontecer. A espera é um já acontecer agora. A esperança pode deixar-nos confortáveis e passivos esperando. A espera exige de nós uma acção já e contínua. Ui, padre, está cá com umas filosofias! Explique-se melhor.
Para entenderdes melhor, permiti que vos fale do que se espera. De uma forma muito superficial, todos os anos dizemos que esperamos o nascimento do menino Deus. Dizemos que esperamos o Natal, e na verdade os muitos adventos de cada ano, às vezes, não são mais do que um esperar o Natal. Devia antes ser a espera de um Deus que teima em vir ao nosso encontro, ao encontro da nossa intimidade. É mais que esperar um Natal. É esperar que Deus aconteça no meu interior. Por isso não é uma espera fácil. É uma espera dura e dolorosa. Porque Ele não vem para nos facilitar a vida. Vem para a felicitar. Para lhe dar sentido pleno. E por isso exige, e por isso dói. E por isso faz-nos fazer a acção de esperar para que vá acontecendo e para que seja já. E por isso exige que me desacomode. Que não espere acomodado, passivo. Advento aliás é a resposta litúrgica (espero não dizer uma asneira litúrgica, que eu não sou propriamente liturgista, mas digo-o na mesma) para um tempo inteiro que se quer que seja uma vida inteira. A espera que recordamos no advento é uma espera de toda a vida. Como uma noiva espera seu noivo para a festa e se banha, maquilha, prepara as palavras e os olhares, perfuma-se, torna a maquilhar-se, veste o melhor vestido, prepara uma surpresa, penteia-se e torna a compor o cabelo, sorri, anda de um lado ao outro amando já, mesmo sem que o noivo tenha chegado e esteja ainda à porta…

domingo, novembro 30, 2014

Eu desejo que em 2015, os padres sejam mais...

Desde o dia 6 de Junho que esteve online uma série de sondagens relacionada com as características ou virtudes que gostaríamos de ver mais nos sacerdotes de hoje. Fizémos um total de 7 sondagens, com resultados muito interessantes. Recordo que, como se costuma dizer, "valem o que valem", isto é, valem apenas como apontamento, pois as sondagens têm determinadas fragilidades que não se conseguem propriamente contornar. Porém, as principais escolhas, de alguma forma, são bastante sintomáticas:  "autenticos", "acolhedores", "simples", “pastores”, “evangelizadores”, "íntegros" e na última "homens de fé". A mim pessoalmente ofereceu-me muito material para reflectir. Gostava muito que agora, neste post, deixassem a vossa análise a estes resultados.
Ainda publicamos os resultados da última sondagem. Entretanto deixem-me usar pela última vez esta saga para aquilo que chamo uma segunda parte e que reune as opções mais votadas, junto com aquelas 3 que obtiveram melhores segundo lugares (com critérios de próximidade e de dispersão ou não de votos), num total de 10 opções, e façam agora a vossa escolha final. Para mim as 7 sondagens anteriores chegavam. Mas, até ao final do ano, e quase como um desejo para 2015, vamos ainda reflectir um pouco mais.
 

quinta-feira, novembro 27, 2014

asas [poema 35]

E voar nas asas do céu
Abrir as celas uma a uma
Soltar os pássaros que há em mim
Gritar aos anjos da guarda, sou eu,
Não me afastem do céu
Pois quero as asas de Deus

terça-feira, novembro 25, 2014

Que faço aqui?

Que faço aqui? Faço esta pergunta imensas vezes. Tantas quantas não entendo que faço aqui. Ou o que me queres, Senhor, aqui? Ou o que esperas de mim aqui? Ou o que me pedes aqui? E quando vou de aqui para ali, a pergunta vem atrás como uma sombra ou uma perseguição doentia. Sei que pretendes alguma coisa. Sei até aquilo da salvação. Sei que sabendo-o Tu, eu não precisava saber. Sei que queres que eu esteja aqui. Ou penso que queres. Sei pequenas coisas que penso que faço aqui. Mas nunca sei deveras que faço aqui. E quando penso que há tanta gente que pensa que os padres, que escolheram ser padres, devem saber tudo o que Deus quer deles, como se tivessem uma ligação telefónica ao céu, como se não fossem como os restantes humanos criados e com perguntas, dou por mim a perguntar de novo Que faço aqui? E depois chego a pensar que no dia em que deixar de perguntar que faço aqui, nesse dia já não faço nada aqui.

segunda-feira, novembro 24, 2014

Destina [poema 34]

De antanho não sei que faço aqui
Tu que sabes tudo sabes
E não me destinas sem que eu saiba

sexta-feira, novembro 21, 2014

cansaço [poema 33]

O cansaço tomou conta do meu querer
Removeu-me de mim e aquietou-se em silêncio
Paulo fala de palavras que o vento forte leva
Porventura a um céu mais brilhante que o meu
Fala de fracos e de fortes, forças da força de Deus
A penumbra vem deitar-se a meu lado para não ficar só
São só palavras, digo eu, e amanhã há-de amanhecer
Vem dormir comigo, ainda cabes neste leito meu
Este cansaço é por Ti, fá-lo Teu, neste sono
E amanhã sonharei que amanheceu

terça-feira, novembro 18, 2014

Uma história de encontrar

Dois viajantes no tempo encontraram-se num tempo que, digamos, se chamava intermédio. O que vinha do sul tinha uma tez morena, barba escorreita, olhos da cor do mar. O que vinha do norte possuía uns traços típicos de homem rude do campo. Ambos levavam um bastão na mão direita. Ambos eram peregrinos. Ambos faziam da vida um caminho e possuíam muitas semelhanças. O que os distinguia deveras era o deus que professavam. O do sul acreditava num deus muito parecido com o deus Sol dos antigos. Dava-lhe um nome estranho e dizia que era o dono das energias e das forças da vida. O que viajava do norte acreditava no deus a que chamava Deus dos cristãos. Eram homens de boas intenções. Saudaram-se com simpatia e desejaram uma boa viagem um ao outro. A conversa não durou muito, pois não eram propriamente proselitistas. Falaram dos seus deuses. Um dizia que o meu é que salva, e o outro repetia que o dele é que salvava. Sim, que a salvação era no final do caminho e ambos eram caminhantes. E por ali morreram as palavras, pois não havia mais nada a dizer. O que contava era a salvação. Isso é que define um deus. Cada um seguiu o seu caminho, pelas estradas que escolheram.
Passados uns anos os dois viajantes encontraram-se de novo, num tempo que seria ou que eu chamaria de céu. Feitos os cumprimentos habituais, abraço para aqui e para ali, o que viajara desde o sul agarrou o seu irmão do norte e disse Afinal foste salvo. Este sorriu e concordou que sim, que o seu Deus o tinha salvo. Então o do sul encolheu os ombros e disse que também tinha sido salvo. Depois sorriu e acrescentou Foi o teu Deus que me salvou.
 
Esta história não existiu senão no meu coração, mas tive vontade em a partilhar.

sexta-feira, novembro 14, 2014

A estrada de cimento [poema 32]

Do outro lado da rua
Está quem não está neste.
Os dois lados da rua
estão divididos, ao meio
sem meio,
por uma estrada de cimento.

A mesma estrada
que une as duas ruas.

terça-feira, novembro 11, 2014

Seminaristas às dezenas

O Juan é padre. Provem da América Latina, de um país que não sei se é muito grande, mas deve ser. Dizia-me que no ano em que entrou para o curso de Teologia no Seminário da sua diocese eram quase cem candidatos. Mais ou menos os mesmos que entraram este ano. Aliás, são ainda mais os que gostariam de entrar, mas não entraram na triagem. Dizia-me que as paróquias, embora grandes, têm vários sacerdotes. Vão muitos aprofundar os mistérios de Deus nos estudos porque são muitos. São da América Latina, embora este acontecer não seja assim tão recorrente. O Juan perguntava-me do meu país. Na minha diocese, respondi, sobram os dedos de uma mão para contar os seminaristas que estão em teologia. O Juan perguntou-me então se Portugal ainda tinha cristãos na missa. Respondi que tem gente na missa. Gente. Gente que vamos supor que tem fé. Há países da Europa com menos gente na missa. E menos fé. Mas ser padre hoje em Portugal é só para um pequenino número de jovens a quem Deus não foi indiferente. O Deus que não é só Deus de alguns sacramentos, das festas e dos funerais.
Alguma coisa tem de mudar na Europa dos cristãos. Talvez olhar para fora seja o primeiro passo.
 
Nesta semana dos Seminários deste ano 2014, queria pedir ao Senhor da Messe que abra os olhos aos trabalhadores da Messe para que vejam para além deles.

sábado, novembro 08, 2014

comprometidos apenas pelo filho

Lia o jornal do dia, num bar da minha terra, no intervalo dos goles de café matinal, quando um jovem se aproximou cumprimentando-me e indicando que talvez já não me lembrasse dele. De facto a cara tinha algo de familiar, mas a minha memória é muito pequenina. Com cara de envergonhado, disse-lhe que tinha uma ideia, mas que era só isso, uma ideia. Lá me respondeu que era um antigo acólito da paróquia, um daqueles que estivera na minha Missa Solene, aquela que chamamos de primeira. Lembrei-me dele de facto. Tinha traços dessa meninice. Conversa puxa conversa. Onde está agora? Estou em tal sítio. E tu que fazes? Estudas? Não, já estou a trabalhar ali naquela empresa. É pá, como o tempo passa e a gente cresce ou se torna velho. Riamos disso. Eu do crescimento dele e ele, supostamente, da minha velhice. Olhe que até já tenho um filho. Isso é que é bonito, dizia eu, quando me ocorreu, desconfiado, perguntar-lhe se casara. Respondeu que não. Insisti sem complexos nem repreensões, que não gosto dessas coisas mas também não tenho que achar-me dono das certezas. É pá, e então não pensas nunca fazê-lo, isto é, casar-te? Oh, não sei, logo se vê. E foi o Logo se vê que me arrastou para uma série de pensamentos. Esta coisa das uniões de facto está a tornar-se tão banal e tão natural ou comum, que até dói. E o problema não está nelas em si. As pessoas juntam-se porque é menos comprometedor juntarem-se que casarem. Hoje é muito difícil as pessoas comprometerem-se seja com o que for. Neste caso em concreto, eles esquecem que até já têm um compromisso comum, o próprio filho.

quinta-feira, novembro 06, 2014

Encontra-me [poema 31]

Encontra-me, meu amigo
Afasta aquilo que nos afasta
Encontra-te onde estou, comigo
Não demores, que desgasta

Encontra-me, estou preso
Não sei como encontrar-me
Neste meu estar indefeso
Me quedo por não estares

quarta-feira, novembro 05, 2014

noivado [poema 30]

Outrora era a festa das uvas
Do repasto e da farinha de trigo
Um dia Ele visitou-me e disse:
Hoje quero fazer festa em ti

segunda-feira, novembro 03, 2014

Ponto de Luz [poema 29}

Um ponto de luz,
Pequenino ponto de luz,
Guia mais que tudo
O que não é luz,
Por maior que seja.

O Ponto de luz,
Por mais pequenino que seja,
Faz que eu veja
O caminho

sexta-feira, outubro 31, 2014

Gostei de ver o Coimbra

Avistei-o do altar. Destacava-se pela altura acima da média e pela tez morena. Estava no terceiro ou quarto banco. Intrigou-me a postura, o entoar dos cânticos com o coro, a forma de se ajoelhar e de estar atento às leituras. Como Deus não me dotou de larga visão, desenhei-lhe apenas estes gestos e atitudes que também se destacavam dos outros participantes na Eucaristia. Só quando a visão e a proximidade me permitiram desenhar mais que isso, descobri que era o Coimbra, o Coimbra que se ordenara no mesmo dia que eu e que, após ter abandonado o sacerdócio com uma filha no colo e uma esposa no abraço, já não via há anos. Viera porque era missa de sétimo dia de uma pessoa que lhe era querida. No final veio à sacristia dar-me um abraço. Gostei tanto de ver o Coimbra! Gostei sobretudo de perceber que se mantém o mesmo. Que se afastou do sacerdócio, mas não de Deus e da Igreja. Que a sua fé genuína continua lá. Lá onde Deus e homem se encontram, no coração do Coimbra.
Apetecia-me dizer Afinal um dia padre, padre todos os dias. Mas prefiro dizer que gostei muito de ver assim o Coimbra.

terça-feira, outubro 28, 2014

ponto [poema 28]

Na rua da minha cidade
Existe um ponto
onde ninguém ainda passou
Não tem estrada,
Não tem escada,
Não tem nada

É só um ponto
Mais nada

sábado, outubro 25, 2014

Não há caminhos certos

Não há caminhos certos. O único certo, a única certeza é que se chega lá se fizermos caminho. Deus tem estas coisas, a que não devia chamar coisa, de deixar que Lhe cheguem por diferentes caminhos, mesmo os mais inóspitos. Os mais desapreciados.
A Catarina chegou a Ele na morte do avô. O Pedro chegou a Ele quando descobriu que não tinha grande valor. A Dina chegou a Ele no meio da doença. O António chegou a Ele no meio de uma confissão que depois se tornou oração. O Lucas chegou a Ele porque estava zangado com Ele. O paradoxo é que às vezes quanto mais nos afastamos Dele, mais próximo Lhe ficamos. Deus tem esta coisa de esperar que cada um faça o seu caminho.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [7]

Com esta nova sondagem, a sétima desta saga, encerramos a primeira parte deste pequeno exercício de reflexão sobre as características ou virtudes que gostaríamos de ver mais nos sacerdotes de hoje. Como o número 7 é simbolicamente apontado como o número da perfeição, lançamos hoje, pela sétima vez, mais seis opções possíveis.
Recordamos ainda as anteriores opções mais votadas: "autenticos", "acolhedores", "simples", “pastores”, “evangelizadores” e "íntegros", sendo que esta última apenas se distanciou 1% da segunda, com 33%, "coerentes".
Deixamos os resultados da última sondagem.

terça-feira, outubro 21, 2014

Sou Pão [poema 27]

Sou Pão que se oferece
Para que tu vivas.

Sou Pão que se despedaça
Para que tu construas.

Sou Pão que se parte
Para que tu unas.

Sou Pão, e posso
porém, deixar de sê-lo,
Porque não quero
Senão que tu sejas

sábado, outubro 18, 2014

Os pecados que são sempre os mesmos

Queria confessar-se. Porém, envergonhada, disse-me que trazia os mesmos pecados de sempre. Afinal são sempre os mesmos, padre. Isso, além de a irritar, cansava-a. Por isso nem sabia se devia confessar-se. Ou se era digna de usar a confissão para confessar pecados que eram sempre os mesmos. É que a confissão exige arrependimento, e arrependimento exige o desejo de mudar. Pelos vistos, ela não mudava.
Sentara-se a meu lado, resignada sem querer resignar-se. Ajude-me, senhor padre. O pedido era sincero. Muito sincero. Diga-me lá, disse eu, se nunca, mas nunca mesmo, conseguiu evitar algumas ocasiões desses pecados. Isso sim, senhor padre. Imagine então que de dez vezes que era para cometer os tais pecados que são sempre os mesmos, conseguiu evitar cometê-los duas vezes. O mesmo é dizer que só os cometeu oito vezes. Ora nós também devemos valorizar as vezes que fomos capazes de não cometer os tais pecados que são sempre os mesmos. Foram só duas vezes. Mas foram duas e não foram uma ou nenhuma. Assim, na verdade, crescemos e o perdão de Deus é mais agradável em nós. Deus sabe que foram oito, mas podiam ser dez. Ele sabe que foi fraca oito vezes, mas que também foi forte duas.
Porque nos havemos de amarrar aos pecados que cometemos e não às ocasiões em que fomos mais fortes que eles! Nunca tinha pensado nisto e assim, disse-me. Já aprendi uma coisa nova hoje. E melhor que isso, no final levantou-se mais feliz da cadeira das confissões e dos pecados.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Ficar [poema 26]

Fica.
Fica sem mais palavras que o ficar.

Desnuda-te.
Desnuda-te sem mais roupas que o teu ser.

Esquece.
Esquece o que trazes no teu silêncio

Deixa-Me falar,
Tão só escuta.
Deixarás de ser apenas tu:
serás Eu em ti

segunda-feira, outubro 13, 2014

Deus pouco omnipotente

Ontem, numa mesa de um restaurante, assisti a uma cena que não sei muito bem descrever. Aquilo lembrava um tribunal onde era permitido comer, rir, falar alto, gesticular com os talheres e os punhos em riste. A conversa era audível em todo o restaurante. Pelo menos pareceu-me. Eram quase todos advogados de acusação. Falavam do suposto Deus dos católicos que era uma treta, uma história bem ou mal inventada por um grupinho de gajos de vestido preto até aos pés com interesses económicos. O que me custou mais a engolir não foi “os gajos de preto”. Foi a forma como falavam de Deus. Eu comia um carapau grelhado e a espinha ia-se-me entalando na garganta, o que fez nascer em mim um desejo secreto que já tive outras tantas vezes. Deus havia de intervir. Deus havia de se mostrar a esta gente. Mostrar o seu poder. Mostrar a sua omnipotência para que todos acreditassem. Mas Ele ainda teima em fazer as Suas grandes obras no meio de tanta simplicidade, pequenez e outras vezes até fragilidade. Valha-nos Deus. Porque não dá uma ensaboadela ou uma ensinadela a esta gentinha que usa estes temas para comer um almoço opíparo e divertir-se à custa de assuntos sérios! Já me ocorreu que Deus podia perfeitamente enviar um missilzinho à cabeça de alguns para lhes organizar os miolos. Bem, estou a exagerar, como é óbvio. Não era preciso um míssil. Bastavam uns pozinhos miraculosos. Quer-me parecer que Ele já deve ter usado este remédio e que também não funcionou.
Este Deus não é como os poderosos da terra. Ele, que tudo pode, age com um poder tão pequenino, tão à maneira dos mais pequeninos.
E é assim o Deus da minha fragilidade, da minha pequenez, da minha simplicidade. E se assim não fosse, era apenas o Deus que admiro. O Deus que me faria acreditar. Mas não seria o Deus que amo. Ainda bem que Deus é tão assim.

sexta-feira, outubro 10, 2014

um do outro [poema 25]

Pergunto assim:
Que faço aqui
Diante de Ti?

Respondo enfim:
Que fazes aí
Diante de mim?

terça-feira, outubro 07, 2014

mais mãe

Onde estás? Sei onde estavas há treze anos, mas onde estás agora, passado tanto tempo e que para mim parece pouco? Na minha cabeça? No meu coração? No meu que fazer? Na minha saudade? Na minha lágrima?
Onde está o teu sorriso que revia no meu? Onde estão as tuas mãos que teciam como a melhor tecedeira do meu reino? Onde estão as tuas palavras sábias para o meu caminho incerto? Onde estão as tuas orações que eram por mim e por tudo o que nem sei? Onde está o teu amor que eu sentia tão mas tão enorme e tão mas tão próximo? Onde está a mãe que faz falta a qualquer filho?
Sei onde estavas há treze anos, mas o tempo passa e aquilo que sabia há treze anos não sei como sabê-lo hoje. As perguntas que faço mais não são que desejos. Ou presenças. Talvez sejam presenças daquilo que tenho de ti em mim. Mas não deixam de ser perguntas de quem te queria ter mais presente. Embora no céu, embora minha ainda mãe, eu quisera ter-te mais minha, mais hoje, mais mãe.

quinta-feira, outubro 02, 2014

nulidade do matrimónio

Tenho um amigo que andou quase dez anos a tentar anular um casamento que deveras nunca lhe existiu. Eu disse de propósito a palavra “anular” porque era assim que ele pensava antes de se dar conta que “anular” era dizer que queria acabar com algo que existira. Afinal não existira. Por isso passou a pedir a “nulidade” do seu casamento. A sua vida tinha sido um embuste. Entretanto, descobrira a fé e Deus. Queria começar tudo de novo. Queria participar com todas as letras nos sacramentos, mormente no que o fazia ser parte de uma comunidade concreta e viva, a Eucaristia. Não podia. Durante anos, em tribunais eclesiásticos, juntou forças com desânimos, vontades com paciências. Pedia a nulidade do matrimónio. Era um sacramento que nunca fora. Um casamento que nunca fora. Tem filhos desse tempo. Não se arrepende. Da vida nunca nos devemos arrepender. Mas queria a verdade. Sobretudo a verdade da fé. A Verdade que descobrira em Deus. A verdade que lhe era vedada por uma lei que até fazia o seu sentido. Sim, ele sabia que fazia sentido. Só não sabia que o sentido de uma lei estava acima da vida e da fé. Hoje, num autêntico casamento, é feliz e aproveita o tempo e a voz que possui para dizer que agora não só tem um casamento autêntico como tem uma fé preenchida. Conheço mais casos de gente que a meio do seu percurso de vida e de fé se acharam, muitas vezes sem culpa medida, com um Deus que lhes é próximo mas que lhes pede uma certa distância. Sinceramente, como padre, como pastor, como pároco, como amigo, como crente, eu acho que devemos dizer sempre que o melhor caminho para fazer o caminho é aquele que não tem buracos na estrada, que tem um asfalto de topo, que não tem portagens. Mas quem percebe de carros sabe que nem sempre o carro está como novo. E quem percebe de condução sabe que nem sempre o condutor está em condições. Há cansaços, há sonos, há adrenalinas, há distrações. E assim os caminhos para chegar ao outro lado nem sempre são os que vêm no GPS. Como fazer? Fazemos um stop forçado na estrada para impedir que se chegue ao destino, ou ajudamos a pessoa que se enganou no caminho a voltar ao caminho?

terça-feira, setembro 30, 2014

Morri [poema 24]

Está fora de questão voltar ao meu corpo
Foi-me dado e retirado para longe de mim
Soltou-se daquilo que eu sou mais.
Enquanto foi, fez-me ser quem sou
Mas agora sou eu que não quero desfrutar do corpo
Está fora de questão concentrar-me nesse efémero
Hoje renasço e quero ser renascido
Não há ventura maior que renascer

sábado, setembro 27, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [6]

Vamos já na sexta sondagem relacionada com as características ou virtudes que gostaríamos de ver mais nos sacerdotes de hoje. Temos agora disponíveis mais seis opções possíveis.
Recordo que as cinco características mais votadas nas outras sondagens foram "autenticos", "acolhedores", "simples", “pastores” e “evangelizadores”, sendo que este último apenas teve mais 1% que a segunda opção, “humildes, e alcançou apenas uns 26%. Deixamos os resultados da última sondagem e colocamos online a sexta edição desta "saga".
 

quarta-feira, setembro 24, 2014

O burro do Alfredo

O burro do Alfredo é o vizinho mais próximo do cemitério. É ele que, do seu posto de trabalho, vela cada campa. É um burro sossegado, mas atento. Não se dá por ele a não ser nos funerais ou nos finados. Chegados ao cemitério, findo o canto fúnebre, o burro do Alfredo continua a salmodia na sua língua materna. É difícil manter a compostura e guardar a seriedade. O seu dono é o primeiro a desfazer-se em prantos de gargalhada contida. Já o avisei para que guarde o animal a sete chaves quando há funeral, mas o Alfredo esquece-se. É que ninguém consegue ficar-lhe indiferente numa cerimónia que exige tanto recato. Foi quando o Alfredo me contou que em tempos o padre que eu substituíra, para dar início ao ritual das exéquias e efectuar a despedida do defunto no cemitério, dado que os presentes faziam barulho inapropriado, pediu, alto e bom som, que se fizesse silêncio a fim de ele prosseguir a oração com a devida dignidade. As pessoas aceitaram o pedido e calaram-se. Nisto, o burro do Alfredo, quase em tom de gozo com o padre, abre as goelas e esboça um zurro do nunca visto. Sorriram as pessoas e conformou-se o padre, dizendo. Bem, a este não posso eu mandar calar.

quinta-feira, setembro 18, 2014

Ser como as crianças

Um dia perguntaram a Jesus quem é que entrava no Reino dos Céus, e Jesus respondeu, chamando a Si uma criança, que quem não fosse como as crianças não entraria no Reino dos Céus. Ontem também me formularam a mesma pergunta e eu fiz minhas as palavras de Jesus. O senhor que a formulara era emigrante e gabava-se de fazer essa pergunta a quantos padres encontrasse para depois poder dizer que já sabia, mas que continuava sem saber, e que ainda ninguém o satisfizera com a resposta. Pois que era por ser como as crianças? Por ter uma simplicidade que agrada a Deus? Por ser ingénuo ao ponto de não ter consciência das suas opções e escolhas? Por ser dependente de outrem para viver? Por ter uma relação de pequeno para maior com esse Deus que se diz amor? Porque é que Jesus se lembrara de usar uma criança para responder a uma coisa tão importante?
Confesso que tudo isto já me viera à ideia nas minhas meditações, e muitas dessas questões também já as fizera. Por isso a resposta dei-lha sem demorar os habituais minutos ou segundos de indecisão. As crianças não vivem preocupadas senão em ser felizes. Não complicam a vida. Vivem-na na procura do que as faz feliz. Não se preocupam com o dia de amanhã, com o pão, com a roupa que hão-de vestir, com o que quer que seja. E mesmo relativizando a idade e maturidade que possuem, a verdade é que são um exemplo daquilo que é a busca do reino de Deus, isto é, a preocupação apenas com aquilo que é essencial, isto é, a busca da felicidade autêntica. O homem olhou-me como quem até gostou da resposta. Mas ainda assim. Um dia ainda temos de conversar melhor.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Dias da cor da noite [poema 23]

Há dias assim
Da cor da noite
Dias que parecem noites
Dias que não são dias
Daqueles que vão mas não voltam
São dias que vão e voltam
Como a noite chega ao final do dia

São os dias em que me faltas
Ou estou órfão de Ti

quinta-feira, setembro 11, 2014

Uma confissão marcante

Era padre faz pouco tempo. Sabia-me dono do saber e do mundo. Achava-me capaz das melhores proezas, das mais sensatas virtudes sacerdotais. Além disso, estava no centro das espiritualidades sacerdotais em Portugal. Fátima. Tinha aprendido a oração da absolvição. Sabia-a de cor. Estava apto para ser sinal do perdão misericordioso do Senhor.
A senhora que se abeirou para se confessar tinha uma idade própria de quem já passou por muito, mas ainda há-de passar por muito mais. Não me olhou nunca nos olhos. Sofrera e sofria. Sofria e não queria sofrer mais. Achara-se usada e não queria mais. E como o perdão de Deus é tão próximo, tão íntimo, tão à maneira de Deus, agarrei na mão da senhora para lhe mostrar que Deus a agarrava também. Mas o inóspito aconteceu num repente que me marcou para sempre. Ela retirou a mão das minhas, afastou o corpo ligeiramente. Esperou a absolvição de forma nervosa, tímida, assustada. Eu assustado também, jurei a mim mesmo que, durante a confissão, não voltaria a agarrar na mão de desconhecidos. Hoje faço o possível para me colocar no lugar da pessoa que se está a confessar. Apenas escutá-la naquilo que é e sente. Não é fácil. Mas tem de ser. É que naquela confissão marcante aprendi que ainda estava muito longe de saber como Deus agia nas pessoas. Porque cada pessoa é uma pessoa. E Deus age sempre diferente de pessoa para pessoa.

sábado, setembro 06, 2014

Conversas com uma senhora muito religiosa

Conversa pouco fiada entre duas pessoas adultas. Um padre e uma senhora. Senhor padre, eu sou uma pessoa muito religiosa, diz ela. O padre pensa nas freiras em quem se costuma pensar quando se fala em religiosas, mas não deixa o seu pensamento sair para fora. Aproveita o ocaso da situação para explicar Olhe que é melhor dizer que somos pessoa de fé do que dizermos que somos religiosos. Ser religioso é viver de religiosidades. Ter fé é viver Deus. A senhora acenou que compreendera e emendou. Sou uma pessoa com uma fé tremenda. Sabe, padre, eu já fui cinco vezes a Fátima. Não vou muitas vezes à missa, mas Nossa Senhora de Fátima ajuda-me sempre que preciso. O padre teve outro pensamento errático. A senhora pensa na Senhora quando precisa, mas tem muita fé. A fé dos que têm fé quando precisam. O tal padre deve ter feito uma cara estranha porque a senhora insistiu que tinha uma fé enorme em Nossa Senhora. O padre perguntou se não tinha fé em Deus e a senhora falou que claro, mas ia poucas vezes à missa. O padre concluiu que para a senhora a fé estava em cinco vezes que foi a Fátima e não nas cinco vezes que fora à missa. O padre perguntou-lhe quanto gostava de Deus, ela disse que muito, mas que gostava mais de Nossa Senhora. O padre achou que o Senhor Deus não se deve importar com isso, porque Ele também gosta muito da Sua mãe. O padre e a senhora falaram muito mais e acho que a senhora no final estava mais esclarecida. Na realidade, ela era mais uma pessoa religiosa que uma pessoa de fé. Mas não vem mal ao mundo. Acho que Deus sabe esperar.

terça-feira, setembro 02, 2014

A burrita da Virgínia

A Virgínia tem idade suficiente para olhar a vida a agradecer tudo a Deus. O marido já faleceu há anos. Não tiveram filhos. Tiveram enteados e pessoas que adoptaram para auxiliar. Não daqueles verdadeiros adoptados do papel e assinaturas. Mas os adoptados que precisavam apenas de alguém por perto. A virgínia é uma pessoa culta, mas isso não lhe tira a solidão, e acha-se uma pessoa sozinha, meio abandonada. Porém, no meio disto tudo, tem um ar de graça. Tem uma forma de ser divertida. Há dias disse-me que pedia muitas vezes uma coisa a Deus. Para satisfazer a minha curiosidade, contou-me o pedido que fazia insistentemente a Deus. Pedia-lhe que a deixasse ser a burrita do presépio. O pedido e o segredo eram sérios, mas os dois rimos a bom rir. E continuou. Ó senhor padre, a burrita ainda carregou com a Nossa Senhora e com o Menino. Eu nem para isso sirvo. De facto, o pedido era mais sério do que parecia à partida. Mas para compor o momento, achei-me no dever de concordar com ela dizendo que se ela pedia para ser a burrita, eu poderia ou deveria pedir para ser a vaquita. Não, não era pelos cornos. Rimos. Era mais pela graça de ali estar ao lado da mãe e do Menino, e eu nem sempre conseguia estar com eles. A rir nos quedámos os dois, mas o assunto era sério.

sábado, agosto 30, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [5]

Vamos já na quinta sondagem relacionada com as características ou virtudes que gostaríamos de ver mais nos sacerdotes de hoje. Temos agora disponíveis mais seis opções possíveis. Recordo que este tipo de sondagens que têm aparecido aos poucos neste espaço têm como objectivo deixar algumas ideias aos sacerdotes sobre o que devem privilegiar na sua vida e vocação. Recordo que as quatro características mais votadas nas outras sondagens foram "autenticos", "acolhedores", "simples" e “pastores”, sendo que este último apenas teve mais 6% que a segunda opção, “disponíveis” e ficou pelos 37%. Deixamos os resultados da última sondagem e colocamos online a quinta edição desta "saga".
 

quinta-feira, agosto 28, 2014

nascer [poema 22]

Cinco crianças de mãos dadas
Brincam no alvor da praia.
À sua volta as areias não param
Nada as olha, são livres.
Não pensam se há olhares sobre elas.
São puras, genuinidade do ser.
Hoje queria ser a sexta criança,
Ser livre na imensidão dos olhares
Que se cruzam com as vidas
Emaranhadas nos lençóis de água.
Voltar ao Teu ventre,
Nascer dentro de Ti,
De mãos dadas com os que nascem
No âmago de Ti.

sábado, agosto 23, 2014

A Laura e os desanimados da vida de hoje

Faz parte do grupo de desanimados da vida de hoje. Cuido que hoje o desânimo faz mais parte da vida das pessoas do que no tempo em que as contrariedades não eram mais que obstáculos da vida. Cuido que hoje as contrariedades da vida se transformam excessivamente em formas de viver sem vontade. A Laura é boa senhora, boa mãe, boa funcionária, boa cristã. Mas ultimamente entrou pela porta larga deste grupo, passou a fazer parte dele. Anda cansada de não ser fácil o emprego, a relação com os seus e com os que não são seus, e com mais uma série de coisas que nem soube enumerar. Ó Laura, quando estamos bem connosco, o problema pode ser grave, mas será sempre pequeno. Quando não estamos bem, o problema pode até ser pequeno, que será sempre grave. Por isso, Laura, antes de te debruçares sobre os teus problemas, debruça-te sobre ti. Encontra-te e encontrarás todas as respostas. Procura estar bem por dentro e tudo será mais fácil por fora. Na verdade os problemas têm sempre duas formas de se encararem. Ou com desânimo. Ou com ânimo. Em ambos os casos os problemas são o mesmo. Mas são vistos e sentidos de forma diferente, assim como têm peso diferente na nossa vida. Um, de tão pesado, deita-nos por terra. O outro tem o peso que tem, mas lança-nos em frente.

terça-feira, agosto 19, 2014

mar cheio [poema 21]

Mão cheia de nada
Entrelaçados os dedos de vontade.
Tiberíades fica longe,
O vento é forte,
E vence a mão que teima
Em agarrar o mar,
A mão cheia de nada
Que deixa o mar fugir
Por entre os dedos
Entrelaçados de vontade
Agarra-te ao mastro, vá
Não vás cair ao mar
Que queres agarrar…

domingo, agosto 17, 2014

Uma mãe que quer baptizar seu filho

Ligou para o telemóvel. Já fui à sua procura, senhor padre, três vezes e não o encontrei. Escusado será dizer que não me procurou nas horas em que devia e que a maioria dos paroquianos sabe que estou à disposição. Algumas dessas horas até se confundiram com as horas das eucaristias da paróquia. Sorri na mesma sem maldade. Depois disse que queria baptizar a filha. Certo, e perguntei-lhe em que dia estava a pensar. Queria no dia tal que é um Sábado. Informei que os baptizados eram durante a Eucaristia, de preferência a dominical, porque no baptismo se entrava na Comunidade Cristã e eu fazia questão de levar isto a sério. É também assim que aconselham as normas. Ela disse que não havia mal e que podia ser na missa de Sábado. E aquela mãe não sabia, apesar de eu estar aqui há mais de dois anos, que, para poder dar alguma assistência nas muitas outras paróquias que tenho, aqui não há missa ao Sábado. Claro que esta forma de não saber as coisas pode dizer muito do tipo de católica que ela é. Tudo ficou esclarecido. Tanto quanto possível. Mas passada que foi uma hora voltou a ligar. Pelo menos foi correcta. Há quem não chegue a tanto. Olhe, senhor padre, é só para dizer que, como não dá para ser no Sábado, nós vamos fazer o baptizado na paróquia tal, que é a dos meus pais. Pediu-me desculpa e desligou. Aceitei, como é óbvio. Não é meu feitio complicar estas coisas. Mas agora que passou outra hora, de repente parei para pensar e senti assim como que uma nostalgia. Aquela mãe tem todo o direito de fazer as suas escolhas e destas serem respeitadas. Esforço-me até ao tutano para não julgar. E continuo a esforçar-me. Se calhar ainda não é suficiente. Não tem mal a decisão daquela mãe. Está no seu direito. Mas sendo uma cristã que não sabe das coisas básicas da comunidade em que está inserida, saberá das mais profundas?

terça-feira, agosto 12, 2014

Oração dos fieis super especial

Numa das minhas mais pequenas comunidades, daquelas que quase não precisam do sino para se avisar que o padre chegou, pois as casas são contíguas à Igreja, o insólito que já não é assim tão insólito, aconteceu. Estava a minha pessoa a verbalizar a homilia quando o telemóvel do António tocou. Este, que se encontrava numa das pontas de um dos bancos, retirou o dito som do bolso e, sem o desligar, atravessou o banco de uma ponta à outra, atrapalhado e atropelando os que lá estavam sentados, esquecendo-se que teria sido mais fácil sair pela ponta do banco onde se encontrava. As cabeças da comunidade voltaram-se para ele e não tardaram em ser abanadas para a direita e para a esquerda. Ainda o António não se encontrava na rua e já se ouvia o habitual Estou, sim, Estou. Interrompi a homilia o suficiente para que o António não fosse interrompido. O à vontade numa comunidade cristã familiar dá para estas coisas, assim como para outras que vieram a seguir. Até final da homilia, mantive-me o mais possível contido. Mas já na Oração dos Fieis, estando o António no seu lugar do banco, não resisti a fazer a seguinte petição. Nós te pedimos, Senhor, por aqueles que não sabem ou se esquecem de desligar o telemóvel antes de entrar na missa, e por aqueles que saem a correr da Igreja para o atender e ainda antes de saírem já o estão a atender. Oremos irmãos. E a pequena comunidade em coro, a sorrir, devolveu um Ouvi-nos, Senhor. O António virou-se para o lado correspondente à sua ponta do banco e recusou-se a dizer, como os outros, Ouvi-nos, Senhor. Ainda agora estou a ver a cara do António e a imaginar a cara do Senhor.

sábado, agosto 09, 2014

gostar de Jesus como se gosta do Micas

O Luizito sentou-se e ao seu lado permaneceu um lugar vago que eu ocupei. Ficámos os dois lado a lado a olhar na mesma direcção, A mãe mandara-o confessar-se, disse-me, e antes que lhe déssemos início, fomos entabulando conversa. Então, como estás, Luís? Não sei bem a idade dele, mas tem aquela idade que se trata por criança. E como a maior parte das crianças, o Luís desfiou um novelo de palavras sem pontas. Ouvi sem pestanejar, pois que as crianças gostam que os nossos olhos as ouçam, e às tantas resolvi perguntar-lhe, como quem não quer a coisa, se ele gostava de Jesus. Prontamente me respondeu que sim. Continuei com alguma matreirice. Quem é o teu melhor amigo, o teu melhor amigo na escola? Parou meio segundo para pensar, e contou-me que era o Micas. Então, diz-me cá, tu gostas de Jesus tanto quanto gostas do teu melhor amigo Micas? Com a sinceridade própria da sua idade, olhou para mim, baixou os olhos depois, e com voz embargada, disse-me que não. Não o recriminei. Foi honesto e genuíno o Luizito, como o são quase sempre as crianças. Levantei-lhe o rosto para me ouvir bem, e ensinei-lhe que para se ter fé autêntica, palavras que já devia ter ouvido à catequista, era preciso gostar de Jesus como gostava do Micas. Acho que entendeu. Melhor que um adulto entenderia.
Na verdade, para termos fé precisamos gostar de Jesus tanto quanto gostamos do nosso melhor amigo.

quarta-feira, agosto 06, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [4]

A "saga" das últimas sondagens ainda não terminou. Hoje são lançadas mais seis opções possíveis para escolhermos as carecterísticas que gostaríamos de rever ainda mais nos sacerdotes. Recordo que este tipo de sondagens que têm aparecido aos poucos neste espaço têm como objectivo deixar algumas ideias aos sacerdotes sobre o que devem privilegiar na sua vida e vocação. Recordo que as três características mais votadas nas outras sondagens foram "autenticos", "acolhedores" e "simples", sendo que este último atingiu a larga maioria de 66%. Deixamos os resultados da última sondagem e colocamos online a quarta edição desta "saga".

domingo, agosto 03, 2014

quinta-feira, julho 31, 2014

Os Ses do caminho

Às vezes dou comigo a morrer e pergunto-me que deixo ou que levo comigo. Parece-me pouco. E questiono-me de Ti e de mim, Senhor. E se Tu não existisses! E se eu fosse apenas isto porque sim e não por Ti! E se vivesse dentro de outra vida! E se tivesse construído um lar habitado por uma mulher e filhos! E se fosse mais novo e de novo me fosse dada a oportunidade de escolher outra estrada! Há dias fui entregar os meus fracassos na confissão. Saí de lá mais leve e mais eu. Mas os Ses permaneceram intrinsecamente no âmago de mim. Mesmo sem o peso dos fracassos, o peso das perguntas estão cá. E sei que o tempo não volta atrás e o que não dissermos ou não fizermos hoje, deixa de existir ou não existirá nunca. Hoje vou fazer esta estrada ao volante. Nunca saberei se é este o melhor caminho. Mas sei que a algum lado chegarei.

domingo, julho 27, 2014

Talitakum [poema 19]

Pousadas Tuas mãos
Em meu corpo inerte
Vazío como se não tivesse amanhã.
Lágrimas com vida
Percorrem-me, são quentes
As lágrimas e as mãos
Que sinto pousadas em mim.
O sol já passou
E a noite queimou em mim.
Resta-me viver nas lágrimas
E nas Tuas mãos.

quinta-feira, julho 24, 2014

sei e não sei [poema 18]

Eu sei

Que o tempo passa
E só damos conta dele quando passou

Eu sei

Que a vida corre
E só damos por ela quando já não corre

Não sei

Se pedir ao tempo
Que me dê outro tempo
Se pedir à vida
Que me dê outra vida

Quando este meu tempo
Quando esta minha vida
Me são pertença, meus

Eu é que não dei conta, não me apercebi,
No tempo e na vida acho que me perdi

Eu sei

Porque estava mais ocupado comigo
Do que com o tempo e com a vida

segunda-feira, julho 21, 2014

Funerais sem mim

Bato no peito para dizer que não devia ser assim. Que a minha forma de encarar os funerais devia ser outra, mais tranquila, mais serena. Que nas vésperas do funeral devia fazer uma visita à capela funerária para estar com a família sofrida. Estar com eles, mesmo que não dissesse muitas palavras. Rezar com eles, mesmo que fossem frases feitas, jaculatórias conhecidas, o terço que é a oração mais fácil quando não se sabe que rezar e se quer estar uns bons minutos a rezar. Mas só de pensar naquelas pessoas com rosto banhado em lágrimas, com roupas de luto, com as outras pessoas a carregarem mais o seu luto com os Meus Sentimentos, dá-me uma vontade de fugir para um canto, escondido no recôndito de uma qualquer capela com sacrário e dizer ao Senhor que afaste de mim este cálice. Bato no peito porque sei como poderia ser bom para aquela gente. Invento desculpas para não ir, quando uma razão apenas existe. Tenho fé clara e autêntica na Ressurreição, mas a dor do que sofre com a perda de alguém é como se me adentrasse pelas entranhas do coração e o fizesse partir em pedaços para lançar ao longe e ao largo. Sou padre e sou pastor. Mas não me peçam para ser capaz. Nunca encaixei muito bem aquela de ir dar os sentimentos, porque os sentimentos não se dão. Vivem-se. E nessa hora de dor a nossa atenção precisa é dos que nos são mais próximos. Precisamos deles como se dependêssemos deles ou da sua atenção. Precisamos daqueles que nos são próximos em sangue ou afectivamente, daqueles que nos sustentam e nos seguram em pé. Os outros, apesar da sua bondade, da sua afabilidade, da sua companhia, acabam por fazer com que o nosso corpo morto ou desfalecido pareça ainda mais pesado. Sei disso porque já morreram pessoas a quem estava ligado de formas extraordinariamente belas, e o que eu queria era que me deixassem ali agarrado aos que me sustinham em pé. São horas que têm de ser. Mas eu não consigo ser bom padre nessas ocasiões. Peçam-me mais tarde que fale com eles. Isso faço. Mas naquela hora só me apetece fugir. Por isso bato no peito para dizer que não devia ser assim.

quinta-feira, julho 17, 2014

Como se põe toda a gente a rezar

Não há palavras como as que são ditas em oração. Não há diálogo mais cheio de amor do que aquele que é feito com Aquele que mais nos ama, Deus. Por isso a força da oração é das maiores forças do mundo, porque é a força do amor presente nas palavras. Assim sendo, um padre deve arranjar o maior número de estratagemas, salvo seja, para colocar os seus paroquianos a rezar. Claro que a oração para ser genuína tem de brotar do nosso coração e ser nossa, mas não custa nada dar-lhe um empurrão.
Ora, na semana passada saí uns dias para descansar e para fazer uma viagem fora de Portugal. No final da missa da paróquia ocorreu-me por toda a minha gente a rezar. Como sabeis, o vosso pároco vai sair uns dias em viagem. Queria pedir encarecida e carinhosamente a vossa oração. Assim, aqueles que querem que eu regresse, que rezem para que eu volte são e salvo. Aqueles que, porventura não desejem que eu regresse, que rezem também para que o Senhor Deus lhes faça o favor almejado. Não vos vou contar nem os que se riram nem as risadas que se ouviram. Vou apenas contar-vos que fiquei convencido que convencera toda a minha gente a rezar. Ou que pelo menos lhes ensinara que se pode rezar para pedir algo bom ou algo muito bom, entendam-me. Vá, verdade verdadinha, há muita gente por aí a rezar para que a vida da vizinha tenha muitos acidentes de percurso. Eu sei. Mas agora quero apenas rir-me. Ainda hoje à tarde me ri quando uma senhora me veio assegurar que rezara por mim e eu não resisti a perguntar-lhe se rezara para que eu regressasse ou para que não regressasse.

segunda-feira, julho 14, 2014

a Hora [poema 17]

Ele adormece para acordar
No mundo esquecido
para não dizer perdido
ou para se levantar!

Já é hora de chegar a Hora

Faz-se vento
Fora e dentro
Nada ficou isento

Veio a noite que é dia
Veio o tempo que é história
Chegou a hora que é a Hora
Bate a hora que é agora
E sempre
O Dia da Vida

in Santo Sepulcro - Jerusalém

sexta-feira, julho 11, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [3]

Na continuação das últimas sondagens, temos agora mais seis opções possíveis para escolhermos as carecterísticas que gostaríamos de rever ainda mais nos sacerdotes. Recordo que este tipo de sondagens que têm aparecido aos poucos neste espaço têm como objectivo deixar algumas ideias aos sacerdotes, a começar por mim, sobre as virtudes, capacidades ou características que devemos desenvolver na nossa vida e missão. Recordo que as duas caratcerísticas mais votadas foram "autenticos" e "acolhedores", sendo que este último atingiu a larga maioria de 63%.
Deixamos os resultados da última sondagem e colocamos online a terceira edição desta "saga".

terça-feira, julho 01, 2014

Para lá de mim [poema 16]

Para lá de mim
Está um lugar
A que chamo estar

Para lá de mim
Está um nascer
A que chamo ser

Para lá de mim
Está Alguém
A quem chamo mãe

Para lá de mim
Estou eu
Num outro Ser
Sem fim

estarei ausente uns dias, para cá de mim!
... e deixo um abraço amigo para estar sempre presente nesse abraço!

sábado, junho 28, 2014

a solidariedade não se faz de cima para baixo

O Carlos que é meu sacristão, vive no limiar da sociedade que quase não tem dinheiro para viver. Faz parte daquele grupo que precisa de quem lhe estenda a mão. Não tem rendimentos nem segurança social. Tem o que a paróquia e os biscates no campo lhe dão. Por isso, sempre que posso ou sempre que o meu coração pede, abro mão dos dinheiros que trago no bolso, entre outras partilhas maiores ou menores. Preocupo-me com ele, como muitos na paróquia se preocupam com ele, e ele sabe. Preocupo-me que não lhe falte nada, até porque lhe tenho uma admiração de santidade. Ninguém precisa saber destes gestos, mas ele sabe.
Há dias fui convidado a almoçar na casa de uns paroquianos que fizeram questão de acrescentar Traga o seu sacristão. Fiquei imensamente feliz por levá-lo comigo. No final da refeição, já não sei a que propósito, o Carlos manifestou o bem que eu lhe fazia. Ouvi e emendei, na frente de quem ouviu. Carlos, por mais que eu lhe faça bem, isso nunca será tanto como aquilo que me tem feito de bem. O que lhe tenho dado é muito pouco comparado com o que ele me tem dado. Ele calou, mas eu aproveitei para pensar. E pensei que a solidariedade não pode ser olhar o outro com pena, como um coitadinho que eu ajudo. Não. Não é ver o outro como um coitadinho. Não é vê-lo de cima. Mas vê-lo de lado, ou melhor, de frente. Com o Carlos isto é até mais fácil do que com os outros pela admiração de fé que lhe tenho. Mas a solidariedade para ser autêntica não pode ser feita de cima para baixo, mas de frente.

terça-feira, junho 24, 2014

a fé das lamparinas

Ainda no mês de Maio, numa das minhas muitas comunidades, ao entrar na Igreja deparei-me com a imagem de Nossa senhora de Fátima num trono bonito rodeado por aquelas lamparinas vermelhas que piscam e piscam até se gastar a pilha. Aquelas lamparinas que costumamos ver nos cemitérios, e que quando as vemos fora deles, não conseguimos afastar a imagem dos cemitérios. Embora as velas de chama e fumo sejam perigosas fora dos horários em que alguém está dentro da igreja e deixem marcas sobretudo nas imagens, a verdade é que não fazem tanto lembrar os mortos. Assim sendo, no final da missa perguntei-lhes o que, porventura lhes faziam lembrar aquelas lamparinas, e foram unânimes em responder que lembravam os cemitérios. Eu concordei e acrescentei que se calhar o melhor era retirá-las de ao pé do trono de Nossa Senhora. Reforço a ideia de que nem sequer usei da força, da persuasão ou dos galões para que retirassem de lá as senhoras lamparinas. Achei que daria melhor a volta à questão fazendo com que fossem eles a retirar as ilações necessárias.
Contaram-me mais tarde que duas senhoras não ficaram nada contentes. Uma delas que costumava ir todos os dias ao terço e à missa quando lá a havia, dissera zangadíssima que os padres só sabiam tirar a fé e que nunca mais tornava ao terço ou à missa. Dito e feito. Não tem aparecido. Eu chamaria a isto a fé das lamparinas ou das velinhas acesas. Mas acho que se calhar devo estar errado. Vale mais termos a nossa fé concentrada numa vela ou numa lamparina, mesmo que lembre os mortos, do que não a ter em lado algum.

sábado, junho 21, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [2]

Na continuidade da última sondagem, temos agora mais seis opções possíveis para escolhermos as carecterísticas que gostaríamos de rever ainda mais nos sacerdotes.
Recordo que este tipo de sondagens que vão aparecer aos poucos neste espaço não têm como objectivo julgar ninguém. Muito pelo contrário, tem como objectivo deixar algumas ideias aos sacerdotes, a começar por mim, sobre as virtudes, capacidades ou características que devemos desenvolver na nossa vida e missão. Por estes motivos se agradece, desde já.
Deixamos os resultados da última sondagem e colocamos online a nova.
 

scolhe a opção que mais preferes
Parte 2: Eu desejava que os padres fossem cada vez mais...

domingo, junho 15, 2014

Deus faz tudo perfeito

Um senhor, daqueles senhores carecas e castiços que gostam de dar um ar de graça, querendo meter-se com o senhor padre, contou-me uma pequena história sobre um bispo que fora fazer a visita pastoral a uma determinada paróquia e no meio do sermão repetira umas dez vezes que Deus fazia tudo perfeito. Ora um senhor corcunda que se encontrava no meio da assembleia, no final da missa resolveu ir dar um dedinho de conversa com o tal do senhor bispo que dizia umas coisas que na cabeça dele não faziam lá grande sentido. Era corcunda, mas não era parvo. Era corcunda, mas também era destemido. Por isso, chegado ao pé do tal senhor bispo, resolveu abordá-lo de chofre. O senhor disse umas quantas vezes que Deus fazia tudo perfeito. Interrompeu as palavras com o dedo na direcção da corcunda, e acrescentou. Acha que isto é perfeito? O senhor bispo, sem meias medidas, respondeu prontamente. Olhe que dos corcundas que eu já vi, o senhor é o mais perfeito.
O senhor careca e castiço metera-se comigo. Mas não soube que se metera também com os meus pensamentos. De facto não será uma corcunda que dita a nossa perfeição ou imperfeição. Como a perfeição é algo bastante relativo. A perfeição para a qual Deus nos cria foge muitas vezes ao homem ou ao seu conceito de perfeição. Além de que se nos permite ter algo que identifiquemos como uma deficiência, nos costuma conceder a força ou a capacidade de vivermos com ela ou de vivermos usando-a para alcançarmos a perfeição. Mais ainda, muitas das nossas chamadas imperfeições não são senão fruto das nossas opções em liberdade, a mesma liberdade que nos foi concedida por Deus. Mais ainda, aquilo que a nós nos parece imperfeição, a outro pode parecer uma forma de perfeição ou uma imperfeição que não chega aos calcanhares da sua. Mais ainda, aquilo que para muitos é um mundo imperfeito, para outros não é mais que o mundo perfeito, que foi assim feito com imperfeições para ser perfeito.
Gosto muito de pensar, e por isso o repito, que a perfeição com que Deus cria tudo vai muito para além do conceito de perfeição para o homem. Por isso é que nos faz olhar para além das nossas fragilidades. Por isso é que as Suas grandes obras foram e têm sido feitas no meio de tantas fragilidades.
Feitas as contas, o tal do senhor bispo tinha toda a razão quando disse que Deus faz tudo perfeito.

quinta-feira, junho 12, 2014

não precisa título [poema 15]

Um dia vi-te por entre a folhagem das folhas, despida,
Como a noite regelada, com uma nesga de calor que era luz,
Uma tabuleta a dizer É por aqui a estrada gasta da vida,
O rumo que outrora os santos mártires levaram por ti.
Lá estavas tu, senhora dona Esperança, a falar escondida:

A vida eterna reluz
Logo a seguir à cruz

sexta-feira, junho 06, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [1]

A ultima sondagem proposta surgiu na sequência do acontecimento pascal com o objectivo de pensarmos a nossa morte e a forma como lidamos ou pensamos nela. Os resultados foram muito interessantes, e não farei considerações deles. Farei antes o desejo de que aos poucos cada um de nós vá procurando lidar com este assunto com a naturalidade, a tranquilidade e a esperança necessárias. Pelo menos isso!
 
Hoje surge nova sondagem, ou melhor, uma sequência de sondagens (daí a classificação "parte 1") para apurarmos um pouco que tipo de padres desejávamos ter nas nossas vidas e nas nossas caminhadas de fé. Não. Não é uma obcessão com o assunto. É apenas mais uma vontade de descobrir e abrir caminhos. A questão é colocada da seguinte forma:
Escolhe a opção que mais preferes
Parte 1: Eu desejava que os padres fossem cada vez mais...

terça-feira, junho 03, 2014

Fuga de Deus [poema 14]

Apetece-me fugir de Ti
Mas estás em todo o lado

Apetece-me fechar os olhos para Te não ver
Mas estás para além do olhar

Apetece-me dizer que não existes
Mas sem Ti decerto não existiria eu
Nem os meus apetites

sábado, maio 31, 2014

O peitinho da menina

A menina que ia baptizar estava toda vestidinha de branco com aqueles vestidos maiores que as crianças, cheios de folhos e muito justos no pescoço. Os pais e os padrinhos estavam de fato sem gravata. A ocasião merecia vestimentas à altura que é como quem diz roupas de cerimónia. Eu já me vesti assim em ocasiões como esta. Ali estavam diante de mim e de toda a comunidade, quando chegou aquele momento em que é necessário descobrir o peito da criança para ali ser ungida. Ora, sendo um vestido justo no pescoço, ou se desaperta um ou dois botões, caso os tenha, seja na frente ou atrás, ou então há que levantar os folhos do tecido e encontrar um pedaço de peito para ungir. Muitas vezes arma-se tamanha confusão que nem queiram saber. Eu costumo pedir calma e suficiente serenidade para que o momento seja ajustado ao rito. Mais, costumo ir dando indicações aos pais sobre o que vem a seguir, para que estejam concentrados no sacramento e menos no que fazer durante o sacramento. Faço sinais com os olhos. Sim, às vezes também os pisco. Murmuro palavras e indicações. Aponto discretamente. E assim fiz no baptizado da menina para que lhe descobrissem ou destapassem o peitinho. Falei duas ou três vezes Peitinho. Não me entenderam, e o pai olhava para mim a perguntar. Apontei ao peito da criança. Nada. Apontei para o meu peito e disse Agora é aquele momento do peito. E até que enfim o pai me entendeu. Assim sendo, entregou a criança à mãe, colocou as duas mãos no primeiro botão da sua camisa sem gravata e toca de desapertar uns botões. O padre teve de intervir, não fosse o homem desapertar a camisa toda. Depois clarificou que era o peito da criança que tinha de ser descoberto. E depois nem o padre nem as gargalhadas resistiram mais. Além desse desfecho burlesco, este padre que aqui está a escrever aprendeu uma grande lição. Que tinha de ser mais claro, não fosse algum dia alguma mãe lembrar-se de fazer o mesmo.

quarta-feira, maio 28, 2014

Os Migueis e as Saras das nossas catequeses e paróquias

O Miguel anda no sétimo ano e também anda na catequese. Há dias a catequista convidou o seu grupo a participar na Eucaristia após a catequese. Os miúdos já estavam no corredor quando o Miguel disse Eu não vou. Era o que me faltava. Só se me obrigarem. Eu ia a passar, ouvi e meti conversa, perguntando-lhe porque é que não queria ir à missa, ao que me respondeu. Eu vou, senhor padre, senão a catequista pode marcar-me falta. Sorriu com ar de malandro. Eu também fiz o mesmo sorriso. Anda. E foi, mas foi como foi.
A Sara anda no sexto ano e também anda na catequese. Em conversa confidenciou-me que gostava muito de ir à missa, mas que a mãe não queria e quase não a deixava ir. Ela insistia, pedia, mas a mãe tinha mais que fazer. Fez um olhar triste. Eu também fiz o mesmo olhar, mas mais compreensivo que acusador.
Há muitos Migueis e Saras nas nossas catequeses e nas nossas paróquias. E questiono-me que adianta termos catequeses assim, termos paróquias com cristãos assim. E questiono-me se a catequese serve ou não para levar as pessoas à fé. E questiono-me se devemos andar a alimentar paróquias assim. E questiono-me o que Deus se questionará. E mais não quero questionar, porque senão deixo de ser eu para ser a questão.

segunda-feira, maio 26, 2014

Pai Nosso [poema 13]

Rezo o Pai Nosso
Como posso

Repito o Pai Nosso
Porque às vezes não o ouço

Digo o Pai Nosso
Deixo-o ir, ele vai
Para ser apanhado,
Dito e escutado

Só assim é
Pai Nosso

sexta-feira, maio 23, 2014

Ligou-me do lar

Ligou-me do lar para me dizer que estava no lar. Já lá vai mais de um mês e não gostava de lá estar. Achei piada quando me disse que eram só velhos e velhas, como se ela não se incluísse na designação. Mas a conversa não estava para piadas: A voz embargada da senhora Maria de Fátima não mo permitia. Entre umas palavras mais pronunciadas, surgia uma voz embargada. A filha levara-a para ao pé dela, mas para longe da sua casa e dos seus amigos. Se ao menos tivesse ido para perto do senhor padre, dizia a voz embargada. Já não vou à missa há um mês. Eu frisava-lhe os novos amigos e as pessoas que cuidavam dela. O descanso para a filha, pois que se lhe dava alguma coisa agora tinha quem a socorresse sem demora. Mas ela não gostava. Pertencia às minhas paróquias antigas e já antes ligava bastas vezes insinuando que lhe fazia bem ouvir a minha voz. Era a minha voz e a esperança que lhe infundia e com que lhe respondia. Os lares de terceira idade são o local para onde vão os que já nada têm para dar à sociedade, e quem para lá vai cai nessa realidade. Bem tentei que ela desse a volta ao texto. Que conseguisse descobrir as coisas boas que tinha no novo lar. Mas ela embargava a voz, transparecia o choro e dizia Peça a Deus que me leve. Disse-o duas vezes. O mesmo número de vezes que se me cortou deveras o coração. Prometi que um dia a iria ver. Pedi-lhe que se agarrasse a Deus, que Este não a abandonava. Mas quando desligou o telefone perguntei-me a mim próprio e a Deus porque têm de existir os lares. Porque tinha de ser assim?

terça-feira, maio 20, 2014

chama [poema 12]

As atalaias chamam por Ti.
Eu não sei chamar assim.
Não sei como chamar-Te.

Sabes Tu.
Sabes Teu
nome,
mas não cabes nele.
E eu não sei como chamar-Te

Olho todas as coisas.
Chamo-as,
às coisas,
faço figas
e espero
chamar por Ti.

domingo, maio 18, 2014

O cego de nascença

Vinha o cego de nascença no Evangelho. Vinham os fariseus. E vinha Jesus a dizer que alguns pensavam que viam, mas não viam, e que outros havia que, mesmo sendo cegos, viam. Isto é, o ver não é apenas ter olhos abertos e reparar nas coisas à nossa volta, mas percebê-las e deixar que elas sejam o nosso viver com sentido. Dito de uma forma um pouco mais católica, Jesus atrevera-se a curar um cego de nascença para que, ao ver, este pudesse ver com os olhos de Deus. É o ver com a fé. É o ver o mundo para além do horizonte do nosso olhar.
E nisto, depois de pregar abundantemente sobre o cego que ficou a ver e os fariseus que pensavam que viam, mas não viam, imaginem o que sucedeu. Depois de tanto palavreado e tanta homilia, depois de tanto afirmar que às vezes poderíamos nós, como os fariseus, pensar que víamos, mas ainda não víamos, imaginem que ao voltar para a cátedra (leia-se lugar onde o presidente da cerimónia se senta), arrumei uma cabeçada numa cruz de madeira, próxima do altar, que temos lá colocada desde o início da Quaresma, e que não vi. Ora cá está a confirmação do que acabara de partilhar na homilia. Alguns pensam que vêem, mas afinal não vêem. A minha acólita, aflita, bem me perguntava se eu estava bem. Mas eu não fazia outra coisa senão rir-me perdidamente. Os restantes paroquianos olhavam aflitos para mim. Mas eu sorria para eles e perguntava. Jesus tinha razão ou não tinha?

sábado, maio 10, 2014

Como te amo, Senhor?

Às vezes chego a pensar que me amo a mim através do amor que te tenho. Que te amo na medida em que me satisfaço, em que me sinto bem, em que me trazes o que eu preciso. Isso é amar-te, não na tua medida, mas na minha. Isso é amar-me através de ti. Por isso quando está tudo bem, eu gosto imenso de ti. Quando está tudo mal, eu questiono-me de ti. Outras vezes penso que te amo na forma como faço, como cumpro, como me tranquilizo porque faço e cumpro. Isso é amar-te, não na tua medida, mas na medida do que me deves por eu fazer aquilo que faço. Por eu ser um fiel cumpridor do que me mandas. É amar-te em mim, na medida de eu fazer o que esperas. E ainda outras em que te amo no meu entender, na forma como te compreendo, como te sei. Ainda há dias um colega lembrava que nós, padres, podíamos perfeitamente falar de Deus sem acreditar nele, baseados em toda a teologia e compreensão intelectual que fizemos Dele. Isso é amar-te sem coração, na medida do que sabemos e não na medida do teu amor. Para te amar, tenho de deixar de pensar em mim, no que eu gosto ou sinto, no que eu consigo ou não, no que sei de ti ou não, mas no que me amas e porque quero estar contigo. Sim, porque amar é estar com. Tão só isso. Quero estar contigo, Senhor. E deixa-me tratar-te por tu com letra pequena, porque assim sei que estamos mais juntos, mais próximos, mais em pé de igualdade, mais tu e eu sem qualquer barreira de distância. Pois quero estar contigo, Senhor.

quarta-feira, maio 07, 2014

O Padre José apaixonou-se

Ele tem trinta e poucos anos e ela vinte e muitos. Não se conheceram no acaso da paróquia, mas no ocaso da vida. Por causa de Deus e das Suas coisas, tiveram que trocar palavras. Muitas. Depois trocaram olhares, gestos, cumplicidades. Até se sentirem presos a uma corrente invisível. Uma corrente de três ou quatro metros, com cada um deles nas pontas. A uma distância uma união. Encontrei o padre José no mundo da Internet e foi ele que começou a conversa. Não consigo descrever todas as emoções que vêm crescendo em mim há muito tempo, amigo. Ela é extraordinária. Quando estamos juntos, sinto que me evita. Mas eu não consigo deixar de pensar nela. Gosto de dialogar com ela e de lhe sentir o cheiro. Na igreja procuro-a no meio das outras pessoas. Ainda por cima é minha paroquiana. Não tenho medo nem vergonha do que as pessoas possam dizer, do que possa pensar a sociedade em geral, do que possam sofrer os meus pais e restantes familiares. Mas não sei que fazer, amigo. O que será melhor? Viver como sacerdote com o coração triste, ou viver como um homem que descobriu o que é o amor mas tem de abdicar de toda uma vida que se construiu?
Eu não soube responder. É tão complicado responder a um colega sobre estas assuntos que são nossos, de todos os padres, e que não nos podemos distanciar deles. E depois andamos nós a pregar que o principal mandamento de Deus é o Amor. Mas queremos castrar-nos uns aos outros na forma mais íntima de amar. E precisamos de padres que saibam amar. E precisamos de padres autênticos. E precisamos de padres porque cada vez somos menos. Por isso não lhe respondi como devia. Fiz o mais fácil nestas ocasiões. Disse-lhe que ia rezar por ele. Apetecia-me dizer que ele devia procurar a felicidade fosse como fosse. Que devia ter consciência que as paixões passam e só fica o amor. E que o amor a Deus não é apenas uma paixão. E que tudo passa se assim permitirmos que aconteça. Mas como era tanta coisa e tanta coisa paradoxal, acabei por dizer apenas. Vou rezar por ti, amigo.

quinta-feira, maio 01, 2014

A Maria do Céu

A Maria do Céu tem um nome bonito. É Maria e é do Céu. Tem um problema na coluna ou nas costas, que lhe tem afectado o cérebro e a cabeça, como explicou com duas lágrimas. É uma mulher sofrida. Esta doença está na moda, senhor padre. Como se as doenças também fizessem moda. Como se as doenças se vestissem de acordo com gostos ou estilistas. Elas vêm sem avisar e sem épocas, sem pedidos e sem gostos. Olhe que a gente não consegue estar sentada, deitada ou de pé. A única posição possível é a do sofrimento. A filha vai pelo mesmo caminho. Valha-me ao menos o meu nome, disse, e que este sofrimento nos traga a alegria do e no Céu. Seja o que Deus quiser, mas que me queira como o meu nome diz, Maria do Céu. Tenho um nome bonito, não tenho, senhor padre? Tem, de facto, um nome bonito e eu não disse mais nada porque ela já tinha dito o que eu teria para dizer.

domingo, abril 27, 2014

O padre que morava sozinho

Este padre já faleceu. Já lá vão uns dez anos e faleceu com mais de setenta. Mas contaram-me esta história que me apeteceu contar também. Era um padre simples de uma paróquia simples. Morava, como quase todos os padres, sozinho. Morava numa casa com três quartos, mas apenas ocupava um. Era um bom padre e não tinha dificuldade aparente em morar sozinho. Levava essa forma de viver como a forma normal de viver de um padre. Como a forma de viver com Deus. Segundo me contaram, não o encarava com desgosto, tristeza ou solidão. Ia partilhando a vida com aqueles que faziam parte da sua simples paróquia. Era uma paróquia simples, mas tinha uma catequese com muitas crianças e adolescentes. Um deles era um acólito assíduo. Tinha feito a primeira comunhão havia pouco tempo e entusiasmara-se no serviço de ajuda à Missa. Numa dessas ocasiões, o padre achou oportuno lançar-lhe a proposta de ser padre. Olha lá, já alguma vez pensaste em ser padre? A resposta não se fez esperar e, na simplicidade de quem não media as palavras, ele respondeu que não. Nem pensar. Que não queria ficar sozinho como o senhor padre. Nem pensar. Não queria viver a vida sozinho. Contaram-me que o padre ficara sem palavras. Imagino que ficara com imensos pensamentos. Os mesmos de quem me contou a história. O padre morava sozinho e provavelmente foi assim que morreu. Sozinho.
Quero fazer votos de que na nossa vida de padres, embora morando sozinhos, nunca nos sintamos sós.

quarta-feira, abril 23, 2014

Como costumas reagir à ideia da tua morte?

A última sondagem proposta surgiu após uma mudança no aspecto do blogue, com novo banner, novas cores e nova música. Agradeço imenso aos votantes e aos comentadores que já antes me haviam ajudado a procurar e a tomar opções mais interessantes no aspecto gráfico deste espaço. Fica de seguida a votação.

Hoje, a propósito deste período que vivemos da Páscoa, tendo presente a paixão e morte de Jesus, lanço uma questão intrigante e pessoal: Como costumas reagir à ideia da tua morte?
Agradeço que justifiquem as escolhas nos comentários.

sexta-feira, abril 18, 2014

Entrego-Te

Hoje entrego-Te, Senhor, os que me pesam. Entrego-Te as cruzes que carrego sem vontade. Entrego-Te a Odília que está com tanto cancro. A Maria que foi abandonada pelo marido. A Maria que está entrevada no andarilho. O José que sofre no matrimónio. O meu pai que está vivo. A minha família que tu sabes. Os jovens que cruzam comigo e não cruzam contigo e eu queria. Os pais dos meninos da catequese que não vão à missa. Os bancos vazios de tantas eucaristias a que presido. Os ventos que levam histórias que não são verdadeiras. Os padres que andam atarefados. Os colegas que eu queria compreender. O meu bispo que eu queria que fosse mais pastor. O cansaço do que tenho de fazer e não me apetece. Os sacramentos devolutos que não quero. A paróquia que parece não querer sê-lo. O conselho económico que quer deixar de o ser. Aquelas vinte e quatro pessoas que exigem que o meu dia seja de vinte e cinco horas, ou seja, todo para elas. O António que devia fazer o que lhe pedi e não fez. Aqueles com quem me apetecia tomar café. Aquelas pessoas que me apetecia amar sem medida. Aquela senhora divorciada. Aquela que não tem pão à mesa e mo revelou. Aqueles que não lembro agora. Aqueles que precisam. Aqueles que não sei lembrar.
Entrego-Te todo este peso que é enorme. Entrego-Te todo este peso para que seja dos dois. Para que, de partilhado, me seja mais leve. Diante da Tua cruz, nesta hora tão grande, os pesos dos que me pesam tornaram-se mais leves. Eu sabia que entregando-Tos, eles seriam mais leves. Obrigado, Senhor, por transformares estas minhas cruzes na Tua Cruz. Obrigado, Senhor, por transformares esta minha vida pesada naquela que é a Tua Vida.
 
Boa Páscoa, amigo
Ele quer ressuscitar em ti

quinta-feira, abril 17, 2014

acontece [poema 10]

Cresce a noite
Desce o tempo
Cai o corpo
Vence o vento.

Acaba o dia
Vai a história
Faz-se escuro
Na memória.

Bate a Hora
Ele adormece
Depois acorda
E acontece…

segunda-feira, abril 14, 2014

versão altamente inédita da paixão e morte de Jesus

NOTA: não aconselhável a leitores com problemas cardíacos!

A Eucaristia de Domingo de Ramos tem um Evangelho que não passa despercebido. Além de se ler a paixão e morte de Jesus, o tamanho do texto é bem acima da média. São umas boas oito ou dez páginas, aliviadas pela forma dialogada de três leitores. Por melhores que estes sejam e por mais bem preparados que se encontrem, é comum haver gafes pelo meio. Umas melhores que outras. Umas que não trocam o sentido das palavras ou das frases, e outras que as alteram completamente. Umas inusitadas e outras altamente hilariantes. E foi assim numa das minhas paróquias. A leitora até leu bastante bem. Mas para o fim já se mostrava cansada. Assim na cena final da paixão do Senhor, numa versão altamente inédita, temos o Centurião e os que com ele guardavam Jesus, isto é, os soldados, em vez de ficarem “aterrados”, ficarem enterrados. Tal seria o pavor. Mas nisto, vem o final apoteótico. E vemos Jesus na cruz que, clamando outra vez com voz forte, espirrou. Nesta versão Jesus não “expirou”. Espirrou. Não é uma versão má de todo. Espirrar é melhor que expirar. Devia estar constipado o nosso Jesus. Da próxima vez, antes de ir lá para a cruz, que tome os remédios.

sábado, abril 12, 2014

O Domingo de Ramos

A Francisca é catequista dos mais pequeninos, aqueles que hoje chegam à catequese sem saber uma oração, por mais pequena que seja. Nem o anjinho da guarda, que recordo com tanta saudade. Veio-me contar, a propósito destas coisas dos pais que enviam os filhos à catequese, pese embora o princípio da boa vontade e da boa intenção, mas que não poem os pés na Igreja a não ser quando a festa da catequese acontece. Sabe o que me perguntou há dias uma mãe! Ah e tal, ó catequista, não é agora um dia destes aquela coisa dos ramos? Olhe, é agora antes da Páscoa ou depois? É que eu estava a pensar ir. Temos de ir benzer os ramos, não é? Dizia satisfeita do seu interesse em benzer os ramos, como se estivesse a mostrar o maior interesse nos interesses da catequista. A Francisca contava-me que ficara de cara à banda e não soubera responder mais que um É já no próximo Domingo.
Cá está a prova de que os pais precisam mais catequese que os filhos. E mesmo com interesses ainda enganados, vale a pena agarrá-los por estas coisas que a nós, o comum dos cristãos que vão à missa, nos possam parecer coisas de outro mundo. Afinal o outro mundo é também o mundo onde vivemos. Claro que fiquei triste pela constatação. Mas não quero perder a esperança nestes pais. Pior que não saber quando é o Domingo de Ramos ou para que existe uma cerimónia de bênção dos ramos, é estar convencido profundamente que não se podem comer verduras nesse dia, porque depois pode acontecer alguma coisa de mal na vida das pessoas. Pior que não saber, é estar sabedor de coisas, a meu ver, tão desajustadas. Acho eu. Que às vezes já não sei que achar.

terça-feira, abril 08, 2014

As marotas da homilia

Estava a minha pessoa no meio de uma homilia. Foi num dia daqueles em que me apeteceu ir por ali fora pela coxia dentro. A Palavra de Deus desse dia dava ganas de não ficar parado. E para explicar como ser discípulos de Cristo, de acordo com o Evangelho do dia, a minha pessoa pegava nas imagens do Sal e da Luz, tal como Jesus pegara há muitos anos. Às páginas tantas, entre muitas outras alusões, referi que a luz servia para nós fazermos tudo, pois que sem luz, a apalpar, era mais difícil, e às vezes impossível. Olha o verbo que eu fui utilizar. Apalpar. Umas devotas, que estavam para os lados do coro, deixaram escapar uns sorrisinhos sonoros. Na verdade, até já estamos habituados ou andamos a habituar-nos a um ambiente descontraído ou bem disposto na nossa comunidade. Mas aquela tinha sido demais. Eu tivera um pensamento semelhante na hora em que elaborara a homilia. Talvez o mesmo que estais agora a ter. Deixara-o para trás, porque me parecera inoportuno ou desajustado. Porém, depois das minhas amigas terem deixado escapar os sorrisos, não resisti, fiz uma pausa profunda, respirei com a mesma profundidade, e chamei-as de marotas. Ora o que eu fui fazer. Logo os sorrisos se alastraram pela Igreja toda, e eu próprio caí no mesmo riso desgarrado. Ainda hoje sorrio quando me lembro, e fico a pensar como a marotice entra em todo o lado. Não que isso seja mau ou grave. Eu diria que era desajustado. Mas pelo menos serviu para nos rirmos a bom rir. Espero que o Senhor Deus se tenha rido também. E se não se riu connosco, que se tenha rido de nós

sexta-feira, abril 04, 2014

Os meninos da Primeira Comunhão que não voltaram à missa

Já passou quase um ano desde a última Primeira Comunhão aqui da paróquia. Os meninos que a fizeram estavam no terceiro ano da catequese e passaram para o quarto, ano em que é sugerido que se faça a festa da Palavra. Uma festa que realça não só mais uma etapa de catequese, mas uma integração da Palavra de Deus, isto é, da Sagrada Escritura, na vida destas crianças. Até aqui não há novidade maior. Os pais, na reunião que tive com eles para preparar esta festa e para lhes prestar conhecimentos básicos da Bíblia, saíram contentes da reunião e desejosos que os seus filhos se confessassem. Até aqui tudo bem e não há novidade grande. Assim fizemos no Sábado antes da festa. Os meninos, como manda a regra do entusiasmo, perfilaram para se confessar. Mas qual não é o meu espanto quando descubro que alguns deles, talvez uns quatro ou cinco, não tinham voltado à Eucaristia desde a sua festa da Primeira Comunhão. Dito de outra forma mais óbvia ainda. Desde aquele dia em que comungaram pela primeira vez, não o tinham tornado a fazer. Culpa dos pais. Culpa dos catequistas. Culpa do pároco. Culpa da Igreja. Culpa da vida. Culpa de quem? Não há culpa que resista a um dado adquirido. A festa da Primeira comunhão é muitas vezes a festa da única comunhão. Negue-se o facto e estamos a esconder a cabeça na areia. Não se negue e teremos de repensar a catequese que tem servido, não para alimentar ou amadurecer na fé, mas para cumprir um ritual apenas social e festivo. Soube de colegas que têm obrigado as crianças, através de passaportes carimbados, ou coisas do género, a participar na Eucaristia. Sei de um colega que decidiu não fazer esta festa da Primeira Comunhão no ano passado porque nem as crianças nem seus pais iam à missa. Não sei se resulta ou se resultou. Não sei se deva ou se não. Eu não gosto que a fé seja exigida ou negociada. Assim como não gosto que a comunhão seja proibida. Sei o que não gosto e sei o que gostaria. Mas neste entretanto, não sei o que fazer. Alguém saberá?

terça-feira, abril 01, 2014

sábado, março 29, 2014

Nós não ressuscitamos

Por entre as colheres de sopa e os garfos das batatas cozidas, a conversa gerava-se à volta de tudo um pouco. À mesa do restaurante a comida entra-nos misturada com muito assunto à mistura. Para isso nos sentamos acompanhados. Às páginas tantas, veio à baila o livro de um colega com o título “Ressuscitarão os mortos?”. E disse Já li e aconselho vivamente, como se o advérbio acrescentasse à acção alguma coisa mais. Não recordo porque acrescentei Vivamente, mas agora que estou a escrever parece que faz uma conjugação interessante com o título do livro.
Ora uma jovem esposa que se encontrava em diagonal comigo, para fazer parte da conversa, anuiu com um Claro que sim, claro que ressuscitamos. E porque ninguém dizia mais nada, insistiu. Há alguma dúvida?! Chegou a usar o nome de Deus para validar as palavras. Pelo amor de Deus, fico com pena que alguém possa duvidar, pois que seria de nós se não ressuscitássemos?! A jovem esposa tinha uma fé genuína, mas o padre, que era eu, acenou que não. Ela parou de abrir a boca para comer e abriu-a para se admirar. No meio do meu acenar, fiz uma afirmação que fez parar talheres, pratos, copos, olhos e bocas das outras três pessoas que almoçavam connosco. Nós não ressuscitamos. E repeti. Nós não ressuscitamos. Depois de ter engolido em seco, a jovem esposa pôs os olhos nos outros e a pergunta em mim. Então, mas nós não ressuscitamos?
Com um ar o mais sério que possais imaginar, poisei o meu talher, mudei o tom de voz, aquele tom de voz mais cavernoso, e respondi. Não, minha amiga. Nós não ressuscitamos. Quem ressuscita são os mortos. A jovem estava tão desarmada, que não conseguia ainda chegar à compreensão e mantinha a posição de estátua que não come, não pensa nem sente. Por isso acrescentei. Olha lá, porque cargas de água é que nós, que estamos vivos, precisamos de ressuscitar? Só os mortos é que ressuscitam. Vou-vos dizer, este padre nunca mais toma juízo.

quarta-feira, março 26, 2014

Os contactos do vaticano

Ele há cada uma! Imaginem que há uns dias atrás um indivíduo, que se apresentou como Mestre de uma Ordem, me veio pedir por email os contactos do Vaticano, porque tinha umas necessidades que não me soube explicar, mas que eram grandes. Imagino que do tamanho do Vaticano. Não me explicou as necessidades, mas pareceram-me estranhas, mesmo sem as explicar. Tentei ser delicado informando que não tinha esses contactos. Ele respondeu que poderia parecer-me esquisito, mas que falava a verdade e que sabia de fonte segura que eu teria esse tipo de contactos. Mais gostaria, se possível, que lhos desse ou que, se porventura eu não lhos pudesse dar por qualquer motivo secreto, que lho dissesse. Acreditem que eu quis acreditar. Acreditem que fiz esforço por lhe responder com caridade. Acreditem que não quis imiscuir-me nas necessidades do senhor. Acreditem que não quis julgar a pessoa em causa. Porém, tive de dizer-lhe que essa sua fonte segura era muito insegura, pois de facto não tinha nem tenho esse tipo de contactos. Nem sinto necessidade de os ter. Para que haveria de um simples padre precisar de contactos do Vaticano? Sugeri-lhe que procurasse no site do Vaticano e que podia ser que lá encontrasse o que desejava. De resto não lhe podia ser mais útil. Ainda hoje acho que o mais estranho no meio desta estranheza toda está na segurança com que assegurava que eu tinha os ditos contactos. Só faltava ter-me pedido o contacto de telemóvel do Papa, ou até de Deus. Olha que ele há cada uma! Alguém por acaso sabe os contactos do Vaticano?

sexta-feira, março 21, 2014

minha barca de papel [poema 8]

Vais na barca, não vais?

Eu vou nessa barca aos ais.
Vão outros tantos a mais,
Muitos como eu, iguais
Nunca mais chegamos ao cais.

Fico na dúvida se vais
Ocupado com os meus ais
Caminhas, não sei se vens ou sais
Cansado dos meus ais
Como tantos iguais,
Muitos, muitos mais.
Sei ao menos que não cais.
Mas vais na barca, não vais?

Eu vou para onde vais.

Hoje, Dia Mundial da Poesia, tinha de deixar aqui umas palavras...

quinta-feira, março 20, 2014

Feliz dia do pai

Estava aqui sentado, com a janela fechada e uma temperatura primaveril, quando senti entrar-me pelas costas, ou pela espinha dentro, um arrepio de frio. Olhei na direcção da janela para verificar se estava mal fechada. Não estava. Eu é que deixara o peso dos pensamentos crescer na cadeira onde estava sentado, e arrefecera entretanto.
Hoje levei o meu pai a jantar. Depois dos meus serviços fiz uma série de quilómetros para o levar a jantar, que hoje é dia do pai. Está entradote o meu pai. Está muito capaz. Mas está entradote na idade e na vida. Hoje estava doente com uma grande constipação que se notava na voz. Queria dizer-lhe tudo o que um filho deve dizer a um pai, e disse algumas coisas. Despedimo-nos com um Eu Amo-te muito, pai, e ele respondeu que também me amava muito. Mas as minhas palavras pareceram-me poucas face ao que lhe devo. Deve-se tanto a um pai! E quando se vê a vida a passar, perguntamo-nos que será da nossa vida quando a vida nos levar os nossos pais? Já sei o que é perder uma mãe. Mas ainda não sei o que é ficar completamente sozinho no mundo sem aqueles que nos deram a vida, a oportunidade de ser, e nos criaram para sermos. Ficar assim, a olhar para palavras que gostaríamos de dizer e confidências que gostaríamos de fazer. Ficar assim, a olhar o mundo de forma despernada. Ficar assim, cortados todos os cordões umbilicais, a pensar que a vida fica sem ter a quem se agarrar da forma mais gratuita que possa existir. Ficar assim a pensar que a vida passa depressa e a nossa não pára para descansar. Ficar assim, com uma sensação de que já não temos mais ninguém que nos ame como nos amam os pais.
Fiz os quilómetros de volta a casa, onde moro na paróquia, num passo desacelerado, esquecido no rosto cansado do meu pai. Não me imagino sem as comidas que me faz, a custo, quando vou lá a casa. Não me imagino sem as preocupações que ele me dá, garantindo que a minha vida de filho faz sentido. Não me imagino sem as suas orações. Não me imagino sem os seus ensinamentos preocupados. Não me imagino não ter a quem ligar todos os dias. Não me imagino chegar a casa para a minha folga e entrar nela sozinho, para ficar nela ainda mais sozinho.
Um pai não tem definição, porque um pai não se explica. Ama-se. Um pai é aquele ser que nos faz ser o que somos. E depois é aquele que, na velhice, nos ajuda a ser como devemos ser.
Dá-me vontade de abrir a janela para entrar todo o frio do mundo a fim de sentir que estamos vivos, eu e o meu pai. Mas não abro. Antes me ocorre outro pensamento que me enterra e arrefece ainda mais na cadeira. E quem um dia cuidará de mim, quem se preocupará com a minha vida envelhecida, quem falará de mim assim com palavras como estas, e me dirá Eu amo-te muito, pai?

terça-feira, março 18, 2014

A solidariedade cristã

A mãe apanhou-a a tirar dois iogurtes do frigorífico. Era a pequenita que fazia o pequeno-almoço para a escola e o metia na mochila. A mãe andava a estranhar, porque os iogurtes desapareciam num instante. Nunca perguntou. Nunca procurou. Nunca se questionou. Mas há dias viu a sua pequenita ir discretamente ao frigorífico buscar dois iogurtes. Como o hábito antigo era levar apenas um, a mãe perguntou-lhe o motivo pelo qual levava dois e ainda por cima de forma sorrateira, para que ninguém desse conta. Primeiro, a pequenita corou. Depois, como se estivesse a fazer uma confissão, explicou que havia uma colega dela que não tinha nada para comer. Disse o nome da colega, o que agora não interessa para o caso, e pediu desculpa à mãe. Claro que a mãe ficou sem palavras e ela própria ajudou a filha a colocar os dois iogurtes na mochila acompanhados de um longo beijo na testa corada da pequenita. Não tem mal, filha. Podias ser tu a precisar de comer, e eu também ficaria feliz se alguém te levasse um iogurte para comeres.
A história, que me foi contada como verídica pelo pai, em quem confio, prendeu-me e rendeu-me à imagem daquela criança, pequenita, corada, com dois iogurtes na mão, qual Robin dos Bosques, para dar à amiga. Não acho que tirar aos ricos para dar aos pobres seja uma atitude muito cristã. Não deixaria de ser um tirar aos outros. A atitude mais cristã é a de tirar do nosso bolso para por no bolso dos outros, sobretudo dos que mais precisam. É a solidariedade cristã, que tão pouco se vê. Nós gostamos mais daquela solidariedade com a qual apontamos o dedo aos ricos para que eles partilhem com os pobres, sossegando assim a nossa consciência porque, afinal, nós temos a teoria certa. Só não damos conta é que o mais importante não é a teoria, mas a atitude certa. E esta é rara. A não ser naqueles que, como esta criança, teimam em ser livres e simples. A não ser como aqueles que vêm a beleza do mundo nos outros, porque o mundo não sou só eu, mas eu e os outros. A não ser naqueles que vivem a fé a pensar nos outros.