segunda-feira, novembro 25, 2024

eu grito [poema 396]

grito para dentro e o eco faz-se na cabeça, percorre a espinha 
e aloja-se no coração. Grito, berro, grito berros que são gritos 

são um grito com milhares de palavras sem percepção, com o sentido 
da tua direcção, 

e as palavras deixam de ser palavras no caminho, porque são

são infinitas, são desditas, são minhas e são palavras sem letras, 
porque são do coração 

quinta-feira, novembro 21, 2024

Não tive tempo de me despedir

Waving Goodbye Sunset Images – Browse 787 Stock Photos, Vectors, and Video  | Adobe Stock
O pai estivera com ele na mesa de jantar na noite anterior. De manhã ligaram-lhe para dizer que o pai partira. Não teve tempo para esperar a partida. Não teve tempo para o ver partir. O pai sempre lhe dissera que gostaria de morrer de repente e sem dor, e Deus ouvira o seu pedido. Mas o filho não tivera tempo para dizer adeus ao pai. E isto desesperava-o. Não tive tempo de me despedir, padre. Não tive. E repetia. Não tive. Mas teve. E tive de o recordar que teve. O senhor teve cinquenta e dois anos, tantos quanto a idade que tem, para se despedir dele. Os dias começam e acabam todos os dias. Cada dia é mais um dia para mostrarmos uns aos outros como nos amamos. Cada dia é um dia de amor e despedida. 
Já lá vão uns três anos desde que tivemos este diálogo. Eu nem me recordava. Mas há dias fez questão de mo recordar, porque, dizia ele, não sabe as vezes que eu tenho dito as mesmas palavras a outras pessoas tal como o senhor padre mas disse a mim! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"
 

sábado, novembro 16, 2024

ficamos “bem mas bem”

O tempo pára quando me ligam do lar. A única coisa que acelera é o coração. Quando na outra segunda-feira me ligaram para me dizer que algo de errado se passava com ele, que não conseguia deglutir, a esperança era de que a chamada fosse apenas para dizer que iam resolver tudo rapidamente e que era só para ter conhecimento da situação. Mas não foi. Teve de ser levado ao hospital, onde lhe detectaram uma infecção respiratória. Pelos vistos, uns dias antes, tivera uma queda sem explicação. Pelos menos ninguém ma deu. Confio em Deus, consciente – porque a gente vai sabendo destas coisas – que uma queda nestas idades é uma queda sem fim e que uma infecção respiratória é igualmente uma queda sem fim. Foi também isso que o médico, por outras palavras, informou. O meu pai é forte. Desde que, com os seus sete anos, ia ajudar o meu avô na pedreira, se fez um homem forte e resistente. É o que está a fazer valer neste momento. Respira com dificuldade. A saturação do oxigénio está sempre a querer baixar. Nem os litros do oxigénio chegam para tudo. As secreções acumuladas não deixam. A febre vai e vem. A morfina ajuda a dor. Mas ele é forte e resistente. Foi assim que Deus e a vida o fizeram. Logo no dia em que o médico falou o que é difícil ouvir, que os quatro filhos nos deslocámos para dizer tudo o que tínhamos para dizer. E dissemos a despedida, com as palavras emocionadas, mas verdadeiras, de quem tem tanto a agradecer a um pai como o nosso. Pai, amamos-te muito e gostaríamos de te ter eternamente connosco. Mas a eternidade não é aqui, e quando quiseres partir, que saibas que nós ficamos “bem mas bem”, expressão tão tua essa do “bem mas bem”. Dizem que os trânsitos destas horas são difíceis. Mas como pai e filhos acreditamos na ressurreição e no Amor infinito de Deus, as palavras saíram com mais facilidade. Eu estou tranquilo. Tenho imensa fé na ressurreição e por isso não estou assustado. Já o entreguei a Deus e faça-se segundo a sua vontade. Estou mesmo tranquilo. A verdadeira Esperança não engana. Isso não significa que não tenha o coração bastante apertado e que a espera não me canse. Aproveito para estar com uma mão agarrada à dele e com a outra a passar-lhe no rosto. Amo-o muito, e não me canso de lho repetir. Um dia de cada vez. Uma hora de cada vez. E a vida continua. Porque a vida vive-se tal como é.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O tempo do meu pai"

terça-feira, novembro 12, 2024

A camisa de cabeção

Comprei a minha primeira camisa com cabeção no ano passado. Estava em Roma, ia cumprimentar o Papa e fez-me algum sentido a compra. Pelo menos, foi o que me disseram que devia fazer e eu anuí. Em Roma é raro entrar-se num meio de transporte onde não haja mais que um cabeção. É comum, normal e banal encontrar homens vestidos com cabeção ao pescoço. Curiosamente, ainda não voltei a vestir essa camisa. Não me ficava mal. Porém, sempre que penso em vesti-la, fico com a sensação estranha de que não define bem quem sou. Sei que a instituição hierárquica sugere que os ministros ordenados se vistam com discrição e, sempre que possível, com vestes clericais. Respeito quem o faz. Nem gosto nem deixo de gostar. Talvez acrescente algo ao meu ministério, mas não sei muito bem o quê. O que sei é que é uma tradição que remonta à Idade Média, quando os colarinhos, consoante a sua forma e cor, rendilhados e costurados, permitiam aos membros do clero, da nobreza e dos homens de ciência distinguirem-se do povo comum. Como havia necessidade de se distinguirem dos demais cristãos comuns, assim nasceram os colarinhos brancos, os clerigman, os cabeções. Um dia destes hei-de ganhar coragem e voltar a vestir a minha camisa de cabeção. Ao menos para me distinguir. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O colarinho branco"

sexta-feira, novembro 08, 2024

Outra celebração litúrgica pouco sinodal

No dia 4 de novembro, uma semana depois de concluída a segunda assembleia do sínodo sobre a sinodalidade, houve, em Roma, uma celebração de sufrágio pelos cardeais falecidos este ano que passou. Para concelebrar com o Papa, somente foi dada autorização aos cardeais, arcebispos e bispos. Não sei se é a opção mais acertada, mas também não tenho autoridade para a contestar. Não obstante, o que mais me chamou a atenção é que, na hora da comunhão, foram chamados ao altar uns padres que estavam vestidos de batinas pretas, revestiram-se com uma estola vermelha, sem mais, e foram eles distribuir a comunhão pelos presentes. Não podiam concelebrar, mas depois eles é que tiveram de ir distribuir a comunhão. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Porque é que Deus precisa dos padres?"

segunda-feira, novembro 04, 2024

A celebração litúrgica pouco sinodal

Acabou a segunda assembleia do sínodo sobre a sinodalidade. As expectativas estavam e ainda estão ao rubro. Comentadores, teólogos e jornalistas de âmbito religioso com os holofotes apontados para o seu encerramento e o documento final. Este último vai ser o principal documento tradutor do trabalho de três anos de sínodo, pois o Papa não vai fazer, como tem sido hábito, uma exortação apostólica pós-sinodal. Gostava que o fizesse, mas é um gesto com sabor a sinodalidade. E agora precisavam-se mais gestos. Muitos mais gestos. E mais do que gestos, precisavam-se atitudes, compromissos e práticas. No entanto, depois dos membros da assembleia terem estado misturados na aula Paulo VI, em mesas redondas, durante os trabalhos de reflexão, não se entende o que aconteceu na eucaristia de encerramento em que, mais uma vez, o hierárquico sobressaiu em desfavor do horizontal ou comunional. O Papa num patamar central, como presidente da celebração, rodeado dos cardeais por ordem de importância, seguidos dos arcebispos, depois os bispos, os padres e, por último, os leigos e religiosos não clérigos. Não gostei. Não gostei nada disto. Foi um mau sinal e espero que não seja um presságio. Talvez tenha sido neste mesmo sentido que os membros sinodais sugeriram, no ponto 27, do documento final, o aprofundamento da “ligação entre liturgia e sinodalidade” para “adoptar estilos celebrativos que manifestem o rosto de uma Igreja sinodal”. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma comissão pouco sinodal"

sábado, outubro 26, 2024

as romagens que tiram a religião às pessoas

Este colega padre tem a seu encargo dez paróquias. Antes de tomar conta delas, estavam entregues a três outros colegas padres. Prevê-se que vai ser assim num futuro imediato nestas zonas interiores do país. Com a redução de vocações ao sacerdócio ministerial, aumenta o número de paróquias por pároco, o que torna impossível manter alguns hábitos, por melhores que sejam ou tenham sido. 
Em grande parte das paróquias portuguesas, por causa de ser feriado, é costume que as romagens ao cemitério, que se deveriam fazer no dia 2, dia dos Fiéis Defuntos, se façam no dia 1, dia de Todos os Santos. Torna-se um bom aproveitamento do feriado e não perde sentido, porque num dia se recordam duas perspectivas da vida e da fé interessantes e que se podem meditar interligadas. O que acontece é que o colega padre, por mais que quisesse fazer o jeito ou alimentar os hábitos das pessoas, não consegue, humana e fisicamente, celebrar num mesmo dia dez missas seguidas de dez romagens ao cemitério. Ora, ao fazer o favor de anunciar, numa rede social, o calendário das diversas celebrações e romagens desta ocasião aos potenciais interessados, qual não é o seu espanto ao ler num comentário, ipsis verbis e com a acentuação tal e qual como escrevo: estes padres conseguem afastar toda a gente da religião sempre foi dia um este para sermos diferentes é dia 2, porquê? 
Haja paciência! Ainda por cima, na paróquia do queixoso, a celebração foi mesmo programada para o dia dos Fiéis defuntos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Homilia para funerais ou fiéis defuntos"

quarta-feira, outubro 23, 2024

uma Igreja poliedro

Da janela do quarto onde me encontro a aprofundar assuntos de fé, teologia, pastoral e evangelização, vejo o pátio de uma escola, ou melhor, um campo sintético onde os alunos passam os recreios atrás das bolas. De vez em quando o barulho é quase ensurdecedor. Mas acaba por favorecer um momento de pausa e descanso. Um destes dias abeirei-me da janela, que abri, e chamou-me a atenção as muitas bolas de diversos tamanhos que os miúdos perseguiam, animados. O campo tem quatro balizas, mas tudo servia de baliza para marcar golos. Parecia estar a assistir a vários jogos de futebol em simultâneo. Era um corrupio de alegria e companheirismo. Os miúdos misturavam-se e era difícil perceber de que jogo ou equipa faziam parte, pois cruzavam-se bastas vezes, eles e as bolas, sem que isso perturbasse a alegria e o entusiasmo do jogo, ou melhor, dos vários jogos em simultâneo. Aquelas crianças eram a prova de que a fraternidade pode coexistir com a diferença e a confusão, desde que o essencial seja o mais importante. Por mais diferentes e variados que sejam os jogos, programas, planos, dinâmicas ou perspectivas, o essencial, na sua pureza, pode unir. Enquanto admirava a cena, pensava na Igreja que vou imaginado como um poliedro. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pedi uma Igreja diferente"
Foto © Mauro Borghesi/Pixabay

quinta-feira, outubro 17, 2024

o pai do padre

Quando aos dezassete anos informou os pais que ia entrar no Seminário, ao pai só lhe apetecia bater-lhe, e a mãe continuou a esfregar a roupa no tanque, sem retirar os olhos dela. Rapidamente as lágrimas começaram a cair-lhe do rosto, mas quase não se notava porque as lágrimas se juntavam na água do tanque. Ele também não deu conta. Fechou os olhos para não ver. Foi desta maneira que o António disse aos pais, que eram mais ateus que outra coisa, que decidira ser padre. Não era gente má. Mas isso não fazia deles cristãos. Não iam à missa. Não queriam saber dos padres. O irmão mais velho é que se metera na Acção Católica e o mais novo, pelos vistos, sem que se adivinhasse, fora-lhe no encalço. Tão grande era o desplante, que no dia em que o filho fechou as malas e se despediu, o pai lhe disse, em tom de pai, que se cruzasse aquela porta, deixaria de ser seu filho. E o tempo passou. Pouco se falavam e, nas férias, as palavras pouco mais serviam do que para mostrar o desagrado. O filho ainda não era padre e ainda havia tempo de o demover de ideias tão ridículas. Onde já se viu um filho de gente que não é de Igreja se tornar um padre. Antes se tornasse um malandro das ruas. Não o pensava assim, mas verbalizava-o para que o filho pensasse bem no que fazia. E o tempo continuou a passar, como tudo na vida passa. Os anos foram calejando aquela família. Mas nem a ideia do filho nem a do pai desapareciam. Casmurros ambos. Ambos do mesmo sangue. Um mês antes da ordenação sacerdotal, o pai, sem que nem sequer a sua estimada esposa, que o acompanhava nas ideias e nas desideias, soubesse, foi visitar o padre da freguesia. Aquele a quem, pouco depois da primeira conversa do filho sobre a estranha decisão, acabaria por culpar e visitar com um pau na mão, pronto a ser usado se a ocasião fizesse o ladrão. Graças a Deus que o padre não estava só e a companhia o demovera. Agora a visita era por outro motivo. Talvez por ser um coração duro, tardou em abrir-se e a conversa demorou umas boas duas horas. Terminou com a absolvição. Nunca ninguém soube o teor da confissão nem o motivo da conversão. O pai mudou. O pai voltou a ser pai. O pai abraçou o filho na sua ordenação como se fosse a maior alegria que um pai pudesse ter. Perceber que a felicidade é um dom de Deus não é para todos. E o tempo passou. Mas, desta vez, foi apenas um mês. E o pai partiu para o outro pai. Foi de repente e os médicos não puderam fazer nada. O filho ainda hoje gostava de perceber, mas não percebe. Só sabe que os desígnios de Deus não se sabem de verdade. Só se acreditam… e se confiam. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A chorar durante a missa"

terça-feira, outubro 15, 2024

quando ela entrou [poema 395]

a sala ainda tinha o cheiro dos sapatos e da lama. 
a porta da frente estava aberta e a da rua escancarada 
chovia lá fora e, como sempre, cá dentro, a casa 
sempre fora uma rua de gente sem sapatos e pés molhados. 
 
quando ela entrou, vestida de linho e um ramo de flores 
a sala perdeu-se e o soalho despareceu, não havia 
nada onde a gente se pudesse acoitar, era como se fosse 
eternamente de dia e profundamente terra sem chão. 
 
ainda hoje recordo aquele dia, como se fosse além 
do olhar e das horas e dos sonhos e do que mais houvesse 
que não fosse somente a realidade de uma sala com cheiro 
de sapatos e da lama onde os sapatos viviam e não viviam.