segunda-feira, abril 30, 2018

As coisas que Deus se lembra de fazer

Ela tinha ido dar um passeio para o sul da diocese, uma zona muito bonita, uma aldeia típica e cheia de história. E pelos vistos, também ela veio de lá com uma história para contar. Fez-lhe bem o passeio, como me disse, mas o que lhe ocorreu ao final da tarde, tal como mo descreveu, fez-lhe ainda melhor. Quando ia subir uma rua empedrada cruzou com um senhor de idade avançada que descia a mesma rua. O senhor transportava algumas laranjas e limões numa das mãos e uma vara ou cajado na outra. Parou diante dela, a uma distância que não era intimidante e que permitia ser acolhedora o suficiente, olhou-a com ternura e perguntou se queria uma laranja, que eram muito boas e faziam parte da colecção do seu quintal. Mesmo admirada, ela respondeu afirmativamente e estendeu a mão para pegar numa qualquer, quando ele lhe pediu para esperar, escolheu a melhor laranja e o melhor limão que tinha na mão e foi o que colocou na sua mão estendida. Ela fez então um ar de espanto. Não imagino como deve ter sido, mas quando me contou a história, os olhos estavam arregalados e a boca bem aberta, ainda que tapada pela mão. É mais ou menos o que fazemos para manifestar que não cabemos na nossa admiração. Nunca se tinham visto. Não se conheciam. Não era normal. Não é algo que se veja todos os dias e mais numa sociedade consumista e interesseira como a nossa. E dera-lhe o melhor para ela. Para ela. E repetia para ela fechando os olhos para esconder a lagrimita que surgia sem querer. Mas para mim o mais bonito da nossa conversa foi quando ela, que ainda por cima tem uma auto estima que precisa ser mais cuidada, me disse, ipsis verbis, Deus é fantástico.

quinta-feira, abril 26, 2018

Os coelhinhos da catequese

Num dia destes, qual não é o meu espanto quando, à saída do centro pastoral, umas crianças dos primeiros anos de catequese traziam em suas mãos uns desenhos, bonitos por sinal, com uns coelhinhos de Páscoa. Em tons de brincadeira, perguntei se os tinham feito na escola e responderam prontamente que os haviam elaborado na catequese com a catequista. 
É verdade que, segundo dizem, o coelho sempre foi visto como símbolo da fertilidade, os judeus assumiram-no como um símbolo e a cultura popular foi-o adoptando como um símbolo da ressurreição. Li em tempos que eles deveriam ter sido, de tão madrugadores, as primeiras testemunhas do maior milagre da história. De modo similar, fala-se dos ovos da Páscoa como símbolo de algo que parece não ter vida, mas que origina vida, e assim se pode considerar símbolo de Cristo que rompe a pedra do sepulcro. Contudo, nenhum destes argumentos me convencem. Não será antes a expressão de um comércio que usa e abusa do tempo pascal, tal como o Pai Natal é apanágio do mesmo interesse por alturas do Natal? 
Ainda não conversei como deve ser com a catequista. Já lhe disse da minha admiração. Não creio sequer que ela tenha mandado fazer o desenho sem boa intenção. Talvez ela tenho uma muito boa justificação para a sua opção. Também não a julgo, porque a continuo a considerar muito boa catequista. Mas estas coisas metem-se comigo, porque me parece que a Ressurreição de Cristo está muito para além de qualquer um destes potenciais símbolos.

terça-feira, abril 24, 2018

ai esta passarada [poema 182]

Ouve-se a passarada
Que voa como carneirada
Que voa consoante o tempo
Não quer nada de nada
Mudando como muda o vento
Voando, e ao mesmo tempo parada

sexta-feira, abril 20, 2018

Há padres e padres

A senhora, que é minha paroquiana, falou-me com amizade sobre o que presenciara nessa tarde. Hoje estava numa mesa de café quando ouvi falar mal de si, de alguém que não gosta de si porque não o deixou fazer o Crisma. O senhor que falava mal de si disse que teve de recorrer a um colega seu aqui do lado que não lhe pediu nada nem fez nenhuma exigência. Foi só aparecer no dia e já está. Por esse motivo o outro padre é que era bom e o senhor não prestava. 
Com curiosidade e alguma mágoa, perguntei que fizera a senhora ao ouvir estas coisas. Respondeu que se levantou, manifestando o seu desagrado, porque pensava exactamente o contrário, ou seja, que o outro padre é que não era bom, porque pouco mais lhe interessava do que agradar e ficar bem visto com os seus sins, sem preocupação por uma real evangelização ou formação de fé. Sorri como quem não sabe mais que fazer. Ficámos assim, eu sorrindo e ela olhando para mim com algum dó. 
Quando cheguei a casa, voltei a pensar no assunto, que afinal é recorrente. Fiquei a pensar se a senhora amiga que me confidenciara a situação, deveria responder ao dito senhor ou não, expressar a sua opinião ou não, defender seu pároco ou não. Há ocasiões em que o silêncio diz mais que as palavras ou as discussões. Mas também há outras em que uma palavra que clarifique diz mais que o silêncio. 

segunda-feira, abril 16, 2018

A vida da Virgínia

Eu bem peço a Deus que me leve, mas não há maneira. A Virgínia tem mais de oitenta anos. Nem sei bem a sua idade. Encara a vida com alegria. Mas acha que já cá não anda a fazer nada. Anda de moleta e de braço dado à empregada. Vai fazendo a sopinha e pouco mais. Lá vai rezando, diz-me, mas distrai-se a toda a hora. Às vezes também adormece e quando acorda tem de voltar ao início porque já não sabe em que parte da oração ia. Diz-me que mistura as orações com as panelas e não devia. Por isso pede constantemente a Deus que a leve, mas não há maneira. O que a Virgínia não sabe é que, mesmo sem dar conta, ela entrega a sua vida, com a mesma constância, a Deus. Faz do seu dia uma oração quase constante. Simples. Sem jeito. Esta última palavra é da sua autoria. Diz que não tem jeito. Por isso não sabe o que anda cá a fazer. Gosta muito de rezar, mas não reza como devia, diz. E eu fico imaginando o rosto de Deus a sorrir com a Virgínia!

terça-feira, abril 10, 2018

E se os padres fizessem greve?

Li há tempos que um pároco em Itália afixara um cartaz na porta da Igreja a dizer algo mais ou menos do tipo "A missa foi suspensa por falta de fiéis. Padre tal estará disponível quando for chamado". A informação foi publicada num jornal e alvo de muita conversa, sobretudo nas redes sociais. 
Pessoalmente não me parece que a sua opção tenha sido a mais indicada. Um padre, à partida e como servo de Deus, deveria também ter a disponibilidade de coração para qualquer necessidade do foro da fé, mesmo quando à sua frente está um número reduzido de fiéis. No entanto, com a carência de sacerdotes, com as notícias que nos vão dando conta da sua debandada, das depressões ou similares na vida de tantos sacerdotes, o assunto merece a atenção de todos aqueles que se interessam pela Igreja.
A paróquia é, desde tempos imemoráveis, o território por excelência da acção de um sacerdote a que se chama pároco. Mas o número de padres tem diminuído e o mesmo não ocorre com o número de paróquias, ainda que muitas delas tenham perdido parte dos requisitos básicos de uma comunidade paroquial. O mais comum é a diminuição drástica de paroquianos. Nunca me aconteceu colocar-me diante do altar sem fiéis para celebrar a missa. Mas já celebrei bastas vezes para menos que uma dezena de pessoas. Contudo, os bispos teimam em dividir os padres pelas paróquias como se fossem fatias de um bolo, as comunidades costumam tratar-se como consumidoras e os padres aqueles que estão do outro lado do balcão. Temos esquecido que é mais importante a transmissão da fé que a divisão de territórios por párocos. Estes têm cada vez mais a seu cargo lugares para cuidar, lugares para realizar sacramentos a correr, Igrejas a cair por dentro e por fora, sem tempo para a real missão que assumiram na sua ordenação. Na verdade, e embora possa ser apenas minha opinião, um padre não se ordena para ser pároco, mas para ser padre. A sua missão não se confina a um território. A sua missão é anunciar a Boa Nova. 
Qualquer dia é bem possível que também os padres comecem a fazer greve para exigir que a vocação que abraçaram volte a ser a vocação sacerdotal.

sexta-feira, abril 06, 2018

mais viver [poema 181]

Soube que tenho pés desde que minha mãe mos deu
Aprendi a usá-los para andar, com o peso do que sou
Desde esse momento em que o mundo nasceu
Uso cada mão para escalar fora de mim. Cresço para o céu,
sem lhe saber a cor. O porquê da dor.
Menos ainda como estou. Para onde vou e quando vou
partir

Tenho pés e mãos. Tenho muitas outras mãos
Tenho muito mais do que sei. Ou alguma vez sonhei
Tenho a certeza de sentir. Além da vida que se tem
Existe uma outra vida mais além, isso eu sei
bem

quarta-feira, abril 04, 2018

sondagem "best post" 2016

Depois de ler as vossas opiniões, e adicionar-lhe a minha opinião, vamos colocar à votação os textos/prosa que parecem os melhores 10 do ano 2016, para, através da sondagem afixada, podermos apurar os melhores três. Se quiseres lê-los de novo, como é habitual, tens o link respectivo abaixo da sondagem. Também podes justificar as tuas opções. 
Apresentamos ainda os resultados da sondagem que apurou os melhores textos de 2017 com a vossa ajuda.