sábado, fevereiro 29, 2020

sou uma casa [poema 244]

Em mim há uma casa habitada
Um lar que é uma casa onde moras

Gosto da palavra Lugar
E gosto de a gastar
Como me gasto a te habitar

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

amazónias [poema 243]

As florestas sobre a terra
Quando se eliminam não voltam,
por dentro da terra onde não existiram, morreram

As aves não nascem nos céus, mas lhe pertencem
Quando partem, porque não querem
Perdem dos vôos o bilhete
De ida e volta

Os rios são as faces dos caminhos que percorrem
Levam água, trazem vida
Quando param, não são mais rios
São a morte parada, sem volta
Ao interior da terra

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

A sociedade irritada IV

A nossa sociedade gasta-se em opiniões. Aliás, não é ela que se gasta. Somos nós. Gastamo-nos em opiniões e contra-opiniões, mesmo não abalizadas. Só porque sim. Porque eu tenho direito e liberdade. As redes sociais e a globalização da diferença e da indiferença potenciaram o excesso de opiniões e a liberdade de se dizer o que se quer, sobretudo por detrás de um ecrã, porque não nos custa ter de enfrentar os olhos da outra pessoa que magoamos ou que contrariamos. O ecrã é o mundo das opiniões, por excelência. E hoje toda a gente tem uma opinião e se vale dela para existir, para se definir, para manifestar a sua personalidade, para se impor. Porque dificilmente o consegue de outro modo. É uma sociedade sem identidade, sustentada em opiniões mais do que na verdade! 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A sociedade irritada I", "A sociedade irritada II" e "A sociedade irritada III"

sábado, fevereiro 22, 2020

Acreditas na Vida Eterna?

Na última sondagem, que indagava sobre os post preferidos de 2019, constatou-se que, supostamente, os melhores textos foram:
1. Rezar na verdade da dor

Pode rever os resultados no seguinte quadro, e pode rever os melhores textos dos anos anteriores, aqui.


Hoje, e quase a entrar na Quaresma, o período litúrgico em que nos preparamos para a grande festa da Páscoa, propomos uma nova pergunta que vem a propósito, não só deste período em si, mas por toda a envolvência em que nos encontramos na nossa sociedade portuguesa: "Acreditas na Vida Eterna?"

quinta-feira, fevereiro 20, 2020

eu thanatos e eu, padre

Como acompanhar pastoralmente uma pessoa que peça a eutanásia? Como conciliar o princípio da misericórdia com a necessidade de afirmação da doutrina? Fez as perguntas porque, como disse, conhecia casos de pessoas no estrangeiro que pediram a eutanásia e quiseram receber a Santa Unção. E rematou assim: Como procederias numa situação destas? E a esta questão ou conjunto de perguntas que me foram feitas há dias, poderia acrescentar outras tantas, da minha lavra. O que fazer se te pedissem um funeral religioso, com missa incluída, depois do defunto ter sido eutanasiado? Que dizer a um crente que é favorável à eutanásia e que participa activamente na comunidade cristã e/ou tem responsabilidades na mesma? 
Quando as primeiras perguntas me foram dirigidas, não imaginei o que teria de remoer, desculpem o termo, sobre o assunto. Na altura esbocei uma resposta breve e pouco reflectida. Não era uma resposta sem sentido, mas precisava, pelos vistos, ser mais sentida. Tenho-a carregado nos ombros, junto com as outras perguntas que, entretanto, diante da hipotética legalização da eutanásia, me foram inquietando na minha missão e vocação sacerdotal. Perguntas que me obrigaram, pelo menos, a não fazer de conta que não é necessário pensar em possibilidades que não pensava. 
A moral e ética cristã leva a opor-nos a qualquer afronta à vida humana, como dom de Deus, onde se inclui a eutanásia, a distanásia ou o suicídio assistido, porque o afã de dispor das nossas vidas, de certo modo, nos afasta de Deus, o único dono da vida. Mas isso não significa que este mesmo Deus não nos tenha dado a liberdade de sermos donos das nossas opções e de usarmos o livre arbítrio. O mesmo Deus infinitamente misericordioso. 
Tenho pensado muito nisto. Não concordo, de todo, com a eutanásia, distanásia e suicídio assistido. Sou de opinião que o sofrimento faz parte da nossa condição humana e tem muito sentido nas nossas vidas. Não quero assumir responsabilidades diante da morte assistida. Não sou favorável a criteriologias que separam as pessoas em categorias. Não quero fazer parte de uma sociedade da cultura de morte e do descartável, uma sociedade irresponsável e que vive de modas ou de opiniões. Mas também lembrei a minha reação natural perante casos de suicídio, onde sempre evitei julgamentos e acreditei na misericórdia de Deus. Lembrei as dores de quem sofre e precisa de mim, como padre, como amigo e como pessoa. O assunto é deveras difícil, inquietante e fracturante. Quem tenta ser sério a pensar nele, fica incomodado. 
Partilhei com um colega sacerdote as dúvidas e dificuldades nestes meus raciocínios e reflexões, e ele reagiu dizendo-me que continuaria a agir como se não estivesse no direito de julgar ninguém. Depois de o escutar e barafustar um pouco com ele, porque a sua resposta fora demasiado rápida e me parecera irrefectida, ele insistiu repetindo, quase sílaba a sílaba o que acabara de dizer. E, embora me custasse inicialmente, ajudou-me a amadurecer a reflexão. Pois do mesmo modo que nunca julguei nem quis julgar alguém que se suicida, também não devo julgar quem quer que seja pelas suas opções erradas. A mim cabe-me, pertence-me, é minha missão, ajudar as pessoas a fazer as melhores opções. Ajudá-las a pensar para além delas e do seu sofrimento. Fazer os possíveis para dar mais formação aos nossos cristãos, em particular os meus paroquianos. Mas depois, se calhar, devo deixar que Deus faça o seu trabalho. Porque não me pertence julgar. Pertence-me amar! Mesmo que, amando dessa maneira, o meu coração sofra por dentro. Amar é mais importante do que o meu sofrer!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta é para ti, Diana, parte VIII, preparada"

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Eu thanatos II

Uma amiga, para validar a sua opinião acerca do assunto, mostrou-me uma espécie de carta de um doente com Arthogripose Congénita Dupla, em que este alegava ter direito de pedir a eutanásia e direito a escolher o que fazer com a sua vida. 
Ora, como disse à minha amiga, também eu me comovo com o sofrimento e desespero das pessoas. Mas não me demito de as ajudar a vencer esse sofrimento e desespero. Não obstante isso, ao seu alcance permanece sempre o direito de escolher entre viver ou acabar com a sua vida, através do suicídio, embora, como é natural, eu não concorde com ele. O que a mim sinceramente me custa é que uma responsabilidade pessoal que constitui a tal possibilidade de escolha, se torne uma responsabilidade colectiva, ainda por cima de todo um colectivo que devia fazer tudo para auxiliar as pessoas a viver e não se demitir desse papel com tanta leveza, sem ao menos proporcionar cuidados paliativos, afectivos e solidários! 
Eu também não quero decidir sobre a vida dos outros. Não julgo quem se suicida. Evito julgar o desespero das pessoas. Mas, tanto a eutanásia como o suicídio assistido não podem ser um tratamento médico. Por isso afirmo que a liberdade de escolha dos outros não pode tolher a nossa confiança em médicos que deveriam sempre fazer tudo e o máximo pela defesa da nossa vida. Para isso é que estudaram e para isso fizeram o Juramento de Hipócrates. 
De facto, não é a legalização de uma lei que me vai obrigar a mim ou a quem quer que seja a fazer a opção pela eutanásia. Mas responsabiliza-me, como cidadão, por ela, e eu também tenho a liberdade de não querer essa responsabilidade e que seja respeitado nessa opção!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Especial Diana"

sexta-feira, fevereiro 14, 2020

Eu thanatos

Ontem foi a sepultar uma senhora que viveu os últimos dias a sofrer. Acabara de dar entrada numa unidade de Cuidados Paliativos, a uns bons quilómetros da sua casa, quando faleceu. E antes de fazer a viagem para fazer o funeral, fui visitar o meu pai nos Cuidados Continuados, onde se encontra com leuco-encefalopatia bilateral isquémica, ou seja, irrigando cada vez menos o cérebro. Por sinal, na altura com bastante consciência, ao ponto de chorar compulsivamente quando me viu, coisa que me assustou, por dentro e por fora. Coisa que me levou ao mais fundo de mim em busca dos porquês do sofrimento. E falo destas coisas porque me incomoda a leveza com que se trata de despenalizar a eutanásia ou promover que se possa acabar com o sofrimento acabando com uma vida. Mesmo sabendo que a minha missão de Igreja, como padre ou como leigo, mais do que evitar o decreto dessa lei, é ajudar a entender como incorporar, viver, lidar, aceitar e dar sentido ao sofrimento. 
E a minha homilia, reforçada pela forma como a senhora vivera os últimos dias, pelo que havia sentido na visita ao meu pai e pela viagem que fizera com lágrimas nos olhos, foi sobre o modo como, nós cristãos, encaramos ou devemos encarar o sofrimento. Refiro-me não àqueles cristãos que alguns pseudo-intelectuais gostam de designar como coitados, ignorantes, retrógrados ou submissos religiosos. Mas como aqueles cristãos que, na sua debilidade, sabem ser fortes. 
O sofrimento, afinal, reconhece a nossa condição humana e a nossa necessidade de transcendência. Afasta-nos da autorreferencialidade e autossuficiência. Não, nós não somos autossuficientes. O sofrimento faz-nos pensar para além das nossas capacidades, interesses e bens. É na debilidade que melhor pode sobressair a entre-ajuda, a solidariedade, a caridade. E é o que, provavelmente, melhor nos religa a Deus que também sofreu e morreu na cruz por nosso amor. Nós, os cristãos, sabemos ou devemos saber que o sofrimento tem sentido e aproxima-nos de Deus. Pode parecer que não faz sentido sofrer, mas faz sentido sofrer ou saber sofrer com sentido. 
O sofrimento não é um fatalismo sem saída. Todos nós já passámos por sofrimentos dos quais pensávamos não conseguir sair e nos fizeram pensar que já não valia a pena viver, sem que isso beliscasse a dignidade da nossa vida. O sofrimento, o debilitamento, a perda das capacidades, fazem parte da nossa vida. Como podemos chegar ao ponto de pensar que uma pessoa que perca capacidades, sejam elas físicas, biológicas, psíquicas ou emocionais, já não conta na sociedade e seja tratada como de segunda categoria? Recuso-me a aceitar que haja vidas de primeira e vidas de segunda categoria. Recuso-me a aceitar que se diga que a eutanásia é morrer com dignidade, como alguns argumentam. Não me parece que um soldado enviado para uma batalha e que foge dessa batalha seja mais digno do que aquele que decide enfrentar a batalha. Os grandes heróis não são os que, perante o sofrimento decidem acabar com tudo, mas os que, diante do sofrimento, decidem ser fortes.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Dona da minha vida"

terça-feira, fevereiro 11, 2020

Então já não há extrema-unção?

Esta tarde ligaram-me de um número que não conhecia, com este pedido urgente. Senhor padre, o meu pai quer receber a extrema-unção. Está com alzheimer associado a demência natural. Insiste em falarmos consigo, porque está a morrer e quer receber a extrema-unção. Cada vez que o filho utilizava esta palavra para designar o sacramento da Unção dos Doentes, eu interrompia e dizia: Unção dos doentes. Unção dos doentes ou Santa Unção. Mas podemos ir ter consigo, senhor padre? O meu pai não se cala. Como se fosse apenas para o calar. 
Tinham de fazer uma pequena viagem de carro. Por isso tardaram um pouco. O tempo suficiente para, ao cruzar-me com uma amiga destes amigos, parar para cumprimentar e ouvir. Olhe, senhor padre, já deu a extrema-unção ao senhor tal? O filho anda aflito! Não sabe o que fazer! Unção dos doentes. Insisti. Olhou para mim com olhos de quem pergunta Mas já não há extrema-unção? 
Na verdade, por mais que falemos destas coisas na comunidade cristã, nem sempre estão atentos, ou nem sempre estão. Digamos, portanto, que foi uma oportunidade para explicar o que é este sacramento. O seu porquê. O seu sentido. Que não se pode pensar como um sacramento de mortos. Todos os sacramentos são dos vivos e para os vivos e este é, especificamente, um sacramento para dar força, ânimo e vida. Por isso não se deve esperar, in extremis, pela hora, como se fosse um sacramento dos mortos ou dos que estão quase a morrer, e apenas para que se possam salvar.
Ainda o meu latinório ia a meio, quando ela, com pressa, perguntou: Então já não há extrema-unção?

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Vivemos para morrer."

sábado, fevereiro 08, 2020

coração calado [poema 242]

Cala-se o coração, porque envelhece,
E perde as suas palavras em muitas dores
Que vão com lágrimas pelo caminho eterno
Pelas várzeas, como procissão de andores

Cala-se porque perde a voz que não tinha
Os poemas que declamava no abraçar de olhos
Porque os donos da maldade, em falsa mansidão,
Compram e vendem corações entre os escolhos.

E cala-se o coração, porque é coração.
Porque a sua história é viver a sentir
nas entranhas, como oração

quarta-feira, fevereiro 05, 2020

A fuga do silêncio

Temos medo do silêncio. Na nossa sociedade ruidosa temos medo de fazer silêncio. Por isso, mesmo quando não se fala ou não se tem com quem falar, como é o caso de andar de metro, comboio, autocarro, ou simplesmente a pé, ali vai toda a gente com auscultadores nos ouvidos a passar música. Temos medo do silêncio exterior e interior, que nos faça dar conta de nós próprios e daquilo que somos na verdade: um pequenino corpo da criação de Deus. Temos medo do silêncio e por isso não conseguimos escutar o outro. Se não conseguimos escutar o outro, como conseguiremos escutar Deus? Temos medo do silêncio e não fazemos silêncio para ouvir Deus. Por isso a oração que fazemos é mais a falar que a escutar. Falamos mais que ouvimos. Por isso não damos conta de que Ele fala. Por isso nos queixamos que Ele não nos fala. Por isso fugimos do silêncio e achamos que Deus está em silêncio.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A vida"