quinta-feira, novembro 29, 2018

O beijo do Pai [poema 197]

Fechei os olhos para guardar o seu beijo
Fechei os olhos para vir a noite
E adormecer naquele enfático beijo
tatuado na minha pele, pelo lado de dentro
Como sombra enrolada no meu coração

Hoje sou o beijo que recolhi.

terça-feira, novembro 27, 2018

Acabar o dia entre quatro paredes

O que fazem os padres quando chegam ao final do dia, a casa, e ficam sozinhos? Foi esta a pergunta curiosa da Sofia que surgiu no imaginário do meu pensamento. Pelos vistos, a Sofia andava a questionar-se, tal como eu, sobre a vocação consagrada, em particular a dos sacerdotes, sobre o que era viverem sós, entre quatro paredes. Como seria? E eu gostava de pintar o filme de outra cor, menos sépia, menos branco e negro, menos cinzento. Gostava de dizer que, ao chegarmos a casa, o mais natural é ajoelhar aos pés do Senhor e agradecer-lhe o dom desse dia, pedir-lhe compreensão pelas nossas faltas, falhas e cansaços. Gostava de lhe dizer que era a oportunidade para nos sentarmos ao seu colo e esperarmos o calor do seu amor. Mas não sei se é essa a realidade. Algumas vezes será. Mas outras, acabamos o dia fechados em quatro paredes, geralmente sozinhos. Mas o pior é que nos fechamos, não apenas nas paredes da casa onde moramos, mas em nós próprios. Ficamos sozinhos, com oportunidade para nos abrirmos ao mestre da vida, para sentirmos que na nossa solidão há uma cadeira à nossa mesa, à beira da nossa cama, que é ocupada por Ele. Mas geralmente ficamos fechados na nossa solidão, voltados sobre nós mesmos. Não há pior solidão que aquela em que nos fechamos sobre nós mesmos. Como uma casa que se encerra convencida que assim evita os assaltos dos ladrões. Faz lembrar um filme que vi em tempos. Um casal fechara-se, barricara-se em casa com medo dos ladrões. O que aquele homem e aquela mulher não sabiam era que o ladrão já lá estava em casa e tinham acabado de se fechar com ele dentro.

sexta-feira, novembro 23, 2018

Os coitados

O território da paróquia tem poucos habitantes. A paróquia tem ainda menos. A maior parte tem debandado em busca de novas oportunidades. As poucas crianças e os jovens aparecem muito pouco. O pouco é sempre o que mais habita aquela terra e aquela paróquia. Mas naquele dia a Igreja estava quase cheia, e na frente destacavam-se dois adolescentes. Um no início da sua adolescência e outro no final dela. O primeiro era um rapaz, e o segundo uma rapariga. Por sinal sua prima. A meio da homilia, que vinha a propósito das vocações e que se adaptava perfeitamente à Semana dos Seminários, pois a missa ocorria nesse período, dirigi-me ao primeiro adolescente. Dirigi-lhe também as minhas palavras. Tu. E apontei para ele, que estranhando a direcção do meu dedo e das minhas palavras, se mexeu no banco. Tu é que podias ir para o Seminário. Tu é que podias ser padre. Na verdade, fui aprendendo com a vida que o convite tu a tu é o mais oportuno. No entanto, a prima agarrou-o com força, e disse. Coitado. Porque fora audível, sorrimos todos. A população em geral. Os que estavam mais ao fundo da Igreja e os que estavam mais junto do altar. O rapaz. Ela própria. E eu. 
E foi assim que percebi que os padres são tidos, afinal, como coitados. Fazemos parte daquele grupo de pessoas que é olhado com pena. Como se o destino tivesse destruído os seus sonhos. Tivesse destruído a possibilidade da felicidade.

terça-feira, novembro 20, 2018

A oração é estar com Deus

A oração é simplesmente estar com Deus. Foi esse o convite que Jesus fez aos seus apóstolos. Vinde e vede. Mas nós teimamos em fazer da nossa oração um desabafo das nossas coisas, dos nossos problemas e insatisfações, quando Deus já conhece tudo isso. Teimamos em pedir coisas e em querer que Deus se manifeste de forma incontundente, quando Ele quer apenas estar connosco e que estejamos com Ele como dois amigos que se amam e se encontram. Teimamos em falar de nós, como se ele fosse um desconhecido e nós uma relíquia a conhecer. 
Às vezes penso que Deus se deve esgotar com as nossas orações tão cansativas, tão chatas, tão angustiadas, tão pedinchonas. O que vale é que nos tem um amor para além de qualquer oração. O que vale é que deve ter uma paciência infinita, e até nessas nossas formas de oração ele deve descobrir que é um modo de estarmos com ele. Que assim seja.

sábado, novembro 17, 2018

como no tempo dos fariseus

A história que vou contar ocorreu por ocasião de uma confissão. Não vou desvendar qualquer segredo de confissão. Não poderia nem quero. O que recordo ocorreu assim que a senhora se sentou ao meu lado, e ainda antes das orações iniciais da confissão. A senhora sorria e olhava-me com um ar que me pareceu de superioridade e soberba cristã. Tentei não julgar. Como agora tento. Mas não posso deixar de referir que me fez recordar os fariseus do tempo de Jesus que se consideravam puros, perfeitos, melhores que os outros. A senhora disse, assim, tal e qual. Eu não sei que pecados tenho, senhor padre, e repetia. Eu não sei que pecados tenho. Desfiando um sem número de virtudes, prosseguiu dizendo que a minha vida é assim e assado, eu faço isto e aquilo na igreja. Perdoem-me se fiz mal, mas respondi-lhe à letra, dizendo que assim também não sabia que absolvição lhe poderia dar. Afinal também eu não sabia que pecados Deus lhe poderia perdoar. Ou até sabia. As coisas compuseram-se depois, com a confissão, apesar de me ter parecido que a senhora me virou as costas contrariada. 
Neste momento bato no meu peito, porque não sou, de maneira alguma, dono deste tipo de juízos. Mas é que esta senhora só me lembrava os famosos fariseus do tempo de Jesus!

quarta-feira, novembro 14, 2018

o ninho do coração [poema 196]

Percorri o seu o rosto com a mão, como um caminho
Com os dedos atravessei cada face enrugada, à procura
Ao acaricia-lo, a pele entrava por mim adentro, sem corpo
Sulcos gastos pelo relógio do tempo, não foram em vão
Regressei com as mãos, depois do voo, ao meu ninho

Foi assim até lhe chegar ao coração

segunda-feira, novembro 12, 2018

A limpeza da Igreja

A mãe ia sair de casa, apressada, quando o filho mais velho, que já anda na universidade, lhe perguntou, intrigado, onde ia àquela hora. Seriam umas duas horas da tarde de Sábado. É que ainda, por cima, já era costume vê-la sair porta fora nos sábados anteriores. Pelo menos uns três ou quatro. A mãe respondeu que ia, mais umas amigas, limpar a Igreja. O filho, mais intrigado, perguntou-lhe porque ia fazer isso, se ele, quando ia à Igreja a encontrava sempre limpa. Para que era necessário ela ir limpá-la se ela estava sempre limpa. E a mãe respondeu que estava limpa exactamente porque havia senhoras, na comunidade cristã, que, tal como ela, todas as semanas se juntavam para limpar a Igreja

sexta-feira, novembro 09, 2018

Um coração igual ao de Deus

Creio que o mais bonito de Deus é o seu coração, e é esse coração que nós devemos dar a conhecer aos outros. Não há nada mais bonito que o Seu coração. Mas, como posso transmitir o que está no coração de Deus se eu não conhecer esse coração? E como posso conhecer um coração que ama se eu não amar?
Estas duas perguntas misturaram-se com mais uma série de perguntas que me fiz, ou me surgiram, no meu último retiro, esse espaço privilegiado de intimidade com Deus que ainda hoje recordo. Foi num daqueles momentos especiais em que estava embrenhado em mim mesmo e em Deus, a pensar estas coisas do amor de Deus, como era fantástico sentir esse amor, percebê-lo, viver na certeza de tão grande amor. Assim, vindo do nada, ou de algo que me pareceu nada, mas pode ter sido verdadeiramente um tudo, surgiu em mim uma vontade enorme de amar. Parecia uma tolice. Mais uma das minhas tolices. Não estava sequer ali ninguém a meu lado para amar! Estava sozinho, diante do sacrário. Mas foi isso mesmo que senti. Uma vontade enorme de amar os outros. 
Naquele preciso momento me foi dado perceber, por experiência própria, que quanto mais nos enchermos de amor, mais vontade temos para amar. Quanto mais nos sentirmos em comunhão com Deus, mais vontade sentimos para entrar em comunhão com os irmãos. Que o amor de Deus aumenta o amor dos irmãos. Que quando sentimos em nós o amor de Deus, sentimos também esse apetite maravilhoso de amar mais quem está ao nosso redor.

terça-feira, novembro 06, 2018

Pagar para ter a doutrina

Este ano o grupo de catequistas, juntamente comigo, decidiu convidar os pais daqueles que vão frequentar a catequese na paróquia, a darem um contributo para ajudar os custos com a Catequese. Nem sequer é obrigatório. Os pais foram convidados sem carácter de obrigatoriedade. Mas os zunzuns da paróquia, as vozes críticas da mesma, decidiram interpretar este convite como “agora é obrigatório pagar para ter a doutrina”. Foi assim que alguém se referiu ao assunto, em tom jocoso, quando estávamos à mesa de um restaurante, no meio de uma refeição. Reparem que até o termo “doutrina” fala do que as pessoas entendem que é a catequese, uma doutrina que se dá a conhecer. Respondi, saturado com os comentários que tenho ouvido a propósito, que nada era obrigatório na minha comunidade cristã. Nem contribuir economicamente, porque era uma questão de generosidade e partilha, nem a Catequese, nem o que quer que seja. O senhor indagou-me dos donativos, indicando que a paróquia devia viver dos donativos. Eu perguntei-lhe quais eram os donativos que ele tinha efectuado, e calou-se. Depois insistiu com o habitual tema de que a Igreja é rica e que o Vaticano devia auxiliar as paróquias, ou então que umas ajudassem as outras, referindo explicitamente o Santuário de Fátima. Tem alguma razão, neste ponto, este senhor. O que ele não sabia era que o Santuário de Fátima já tinha auxiliado a nossa paróquia e que o natural/ideal era que cada comunidade cristã tivesse a capacidade de  subsistir por si mesmo. Esclareci-o de que as contas da paróquia eram públicas e apresentadas anualmente com transparência, e que a gestão corrente dos últimos dois anos, devido aos custos normais e àquelas coisas que não se valorizam a não ser quando se precisa delas, tinha um saldo negativo. Acham que isso interessou ao senhor? Nada. A conversa continuou no mesmo tom, por um lado de quem acha que a paróquia não necessita de contributos de ninguém para nada, e por outro de quem está saturado desta forma de entendimento, que nada tem a ver com uma comunidade verdadeiramente cristã

sexta-feira, novembro 02, 2018

Ir ao cemitério

Passara por mim, apressada, com um ramo de flores nas mãos. Ía para o cemitério. Ainda não tinha tido tempo de limpar a campa do seu pai. Mas hoje tem de ser. Hoje é dia de ir ao cemitério. Hoje é dia de romagem para visitar as campas dos nossos. A conversa durou muito pouco. Trocados os bons dias, pouco mais trocámos que palavras relacionadas com o frenesim do dia de hoje, a ida ao cemitério da parte da tarde, depois da missa, e os adornos das campas. Costas já voltadas, ainda se virou para me dizer. Que necessidade temos de ir hoje ao cemitério?! Não sei se era uma pergunta se era uma afirmação. Se era uma pergunta, também não deu tempo para responder. De igual modo não sei se ela ia ao cemitério por hábito, por tradição, pelo facto de todos ou quase todos lá irem, se por não parecer mal, se por devoção, se por fé, ou sei lá. Não conheço suficientemente o seu coração. 
Antes da minha mãe falecer, eu estava convencido que havia um excessivo culto aos mortos e tornava-se mais visível nesta ocasião. Por estas datas dos santos, dos finados ou fiéis defuntos. Continuo a achar que há um excessivo culto aos mortos, inclusive dentro do grupo dos cristãos mais formados. Mas também recordo que, a partir daquela data fatídica de 7 de Outubro de 2001, o meu olhar para estas coisas alterou ligeiramente. A campa da minha mãe passou a ser o seu santuário, aquelo espaço físico que me religa a ela ou ao que ela é para mim, mesmo depois de ter falecido. Por isso de vez em quando dou lá um salto, dou um beijo na foto que se vai gastando com o tempo, e ofereço-lhe a minha oração. Creio que é isso que fazemos quando vamos visitar uma campa no cemitério. Não vamos visitar propriamente os “nossos” porque os nossos já não estão ali. Ali foram depositados apenas seus corpos. O dia de hoje é, na minha opinião, um dia de homenagearmos quem tanto continuamos a amar e que nos precedem no céu. É um dia de acção de graças pelos dons das suas vidas. É um dia para lhes ofertarmos a nossa oração, que é a melhor prenda que se pode dar a alguém que se ama assim. É um dia para pensarmos na vida como esse tão grande dom que Deus nos dá e que não tem fim, mesmo diante da morte.

quinta-feira, novembro 01, 2018

Morrer é passar da morte para a vida

Gostaria de lhe falar do meu medo diante da morte. Foi assim que se dirigiu a mim, meio desconfiado, meio temeroso, meio receoso de estar a dizer a maior palermice do mundo. Às vezes custa-me dormir, porque começo a pensar nestas coisas. O coração acelera e a angústia vem. Começo a chorar. Só a ideia de desparecermos, dentro de um caixão e debaixo da terra, assusta. Sou católico. Acho que sou católico. Já nem sei. Também acredito que haja qualquer coisa depois da morte. Mas... Ficou no Mas. Como nós ficamos milhentas vezes no Mas. 
Depois de uma pausa para respirar fundo, perguntou-me como eu lidava com isso. Olha o que ele foi perguntar. No fundo, também eu já fizera a mesma pergunta a mim mesmo. Respondi com sinceridade, porque penso deste modo, embora isso não signifique que não existam dificuldades, dúvidas, receios. Disse-o porque o penso. 
A vida culmina na morte. Morrer é passar da morte para a vida, ou seja, passar da condição mortal para a condição de Vida eterna. Nós olhamos a morte como o findar da vida. Parece-me, no entanto, que é o largar da nossa condição mortal. Na morte, passamos para a Vida.