sábado, março 31, 2018

Amontoado de cruzes

Ontem, quando vinha da cerimónia da tarde, a tarde de sexta-feira santa, tropecei num pequeno pedaço de madeira em forma de cruz. Deve ter sido alguma criança da catequese ou algum dos que fazem parte da encenação da via-sacra que o deixaram cair. Na verdade, apesar de quase ter caído, não foi bem um tropeção. Foi mais um pontapé. Sim, sem querer dei-lhe um pontapé que atirou aquele pedaço de madeira para longe. Olhei-o como se fosse uma pedra preciosa e recolhi-o no bolso. Depois levei-o comigo, para casa, afim de poder perguntar a quem pertencia. Mas ao subir as dezenas de escadas para o local onde moro, o bolso pesava-me. Pensei que eram as chaves, mas depois de as meter na ranhura da fechadura, o peso continuava o mesmo. Só podia ser a cruz que encontrara na rua, que atirara para longe e que recolhera de novo. Chegado ao meu quarto, pousei-a em cima da cama. Vou dormir sobre ela. É que nesta Quaresma e nesta Semana Santa tenho encontrado cruzes por todo o lado, de vários feitios, pesos, medidas, e materiais. Tenho-as amontado na cama. Vou adormecer para acordar com elas, e amanhã vou celebrar o Senhor que está vivo para me carregar estas cruzes. 

Uma Santa Páscoa, com os olhos na Ressurreição, para todos

sábado, março 24, 2018

rever Confessionário Dum Padre em 2016

Como informámos, propomos agora que se faça uma selecção dos textos/prosa publicado em 2016. Recordamos que é uma forma de revermos textos, pensarmos de novo, e ajudarmos este autor do blogue a verificar caminhos. O que se pede é que, para já, indiquem os textos que consideram como os melhores, os mais tocantes ou interessantes. Indiquem nos comentários o título ou títulos dos vossos preferidos. Posteriormente, colocaremos os melhores a votação. Como nas outras ocasiões, tenciono posteriormente colocar os melhores à votação. 
Agradeço, desde já, a colaboração. 

Nota que os poemas não entram nesta sondagem.
Quem quiser dar uma espreitadela aos "best post" de 2012, 2013, 2014 e 2017 clique AQUI

Janeiro

Fevereiro

Deus resolve-nos a vida

A pequena Sónia e a sua mãe doente, em Fátima

Os ruídos e silêncios da missa


Março

Falou-lhe na comunhão espiritual

Sair da ideologia do sistema


Abril

Tanto e tão pouco

As partilhas da D. Amélia

Não estar agarrado ao meu sacerdócio


Maio

Uma conversa de acolhimento e imposições

O senhor padre está aqui para servir


Junho

A justiça de Deus


Julho

Baptismos ajeitados

Pobres de rua

Não quero as tuas cruzes


Agosto

O padre tem de saber perdoar

Atentados ou sublimados


Setembro

José, de personagem secundária a modelo principal

Padres habituados a ser clericais

cancro da mãe à porta

Padres que não sabem que caminham


Outubro

Os filhos que às vezes são esquecidos

Nós e vós


Novembro

Perder o que se não tem

Padre com fé

Como serão os funerais quando não houver padres?


Dezembro

A Igreja que se tinha de afastar do mundo

Encostadas ao meu peito

sábado, março 17, 2018

Sabemos pouco da vida

Sabemos muito pouco da vida. O destino precede-nos como a sombra que caminha à nossa frente. O mundo domina-nos. Não somos nem o seu dono nem o patrão que lhe paga o salário. Somos o seu empregado. Dizemos que nos entregamos nas mãos de Deus, mas não lhe conhecemos o tamanho, a cor, as rugas, os calos e o calor que delas imana. Dizemo-lo porque a vida nos ultrapassa e não sabemos como a dominar. Vamos vivendo como se não morrêssemos. Como se estar aqui fosse habitar uma selva onde se sobrevive a pensar na hora em que somos apanhados numa armadilha. 
E alguém é capaz de perguntar se também os padres não sabem da vida quando têm uma ligação especial ao outro lado da vida. Não sei se têm ou não uma ligação especial com esse lado. Se têm explicações da fé para a vida. Apenas posso falar por mim. O que me parece é que pouco perguntamos da vida e pouco sabemos dela. Vivemos. Uns de forma mais consciente ou consistente, e outros vão andando sem saber porquê. Pessoalmente gostava de entrar nas entranhas mais profundas de Deus para perceber esse porquê. Para entender o que não entendo da vida. Também eu me entrego nas suas mãos. Mas preferia entregar-me ao seu coração.

quarta-feira, março 14, 2018

Plantar pessoas [poema 179]

Pensa o mundo como chão
Caído entre as várzeas do caminho
Planta aí teu corpo, o teu ser
Adormece pela manhã que já acordou
E nasce no meio do giestal
Deixa que a estrada te percorra
Encarnada, a sangrar por ti
É tudo muito estranho visto daqui

Amanha é tempo de plantar pessoas

terça-feira, março 13, 2018

salmos [poema 178]

Entrei aos solavancos pelo meio das palavras
Mais por dentro delas que entre elas, não sei
Mais como quem navega sem pousar na água
E não como quem nada como peixe debaixo dela,

É dessa água que falo e que fala e que bebo
Porque dá vida e me tira a vida porque me afoga

Entrei nuns versos que são salmos
Numa língua que não conheço mas sei,
Entrei numa Palavra que é alguém
Que quero conhecer e não sei se sei

Vou continuar a entrar como se amanhã não fosse
Mais do que a hora em que estou contigo em ti

segunda-feira, março 12, 2018

uma casa entre outras [poema 177]

Gosto da casa entre as ruínas
Da casa, sem paredes, entre o silvado
Ou matas queimadas,
De uma casa com escadas
sem beirado
Em granito antigo ou madeira gasta
Envolta por janelas abertas, desmontadas

Casa que o tempo leva,
carrega e traz
Para a frente e para trás

Gosto de ser casa que se constrói
Entre aquilo que não se sabe, e até dói
Mas que é casa que não mora
sozinha

É esta casa que sou eu
e é minha

domingo, março 11, 2018

Ahav e Hatikvah [poema 176]

Vou em breve ter ao mar
Vou-te ver, tens de esperar.

Buscar-te-ei, minha fada
Pelas ondas do chorar,
Numa lágrima salgada,
Por detrás do seu luar

Irei como se não existisse
Mais lágrima onde atracar

sábado, março 10, 2018

ela [poema 175]

Cadeia sem ferros, sem força
Que não seja a de sangue a jorrar
Passa por ti e alguém pergunta quem é?
Ela é quem me sou, a mãe.

a minha homenagem atrasada à mulher da minha vida

terça-feira, março 06, 2018

sangrar contigo [poema 174]

O peito sangra-me nas mãos,
Com força o aperto, para dessangrar
É um peito erguido, reconheço
Uma ferida aberta para não sarar
Uma dor que não sei se mereço
Uma forma de sofrer ou de rezar

E ali vai o sangue, vai caindo
Pelo meu peito se faz caminho
Sei que vai para não morrer
Sei que procura o seu ninho
É sangue que busca, para não viver
sozinho

Este meu sangue é vida sem o parecer,
Mais do que paixão ou mais do que sofrer
É a maior intimidade do meu ser e querer

Sangrarei contigo, não pararei de sangrar
Para viver