quarta-feira, maio 29, 2019

Burnout significa literalmente queimar-se

Li há dias que a análise de uma pesquisa realizada em Pádua a 450 padres, dos quais responderam 319, deu conta de várias tipologias relacionadas com a síndrome de burnout. Havia alguns que respondiam indicando que estava tudo bem. Outros para quem tudo estava mal e precisavam de apoio explícito. Havia ainda os insatisfeitos, os cansados, os que conseguem manter a eficiência, mas com sofrimento à mistura, pois vivem o desconforto da situação, os que se defendem por detrás do cumprimento de uma função, como gestores de serviços religiosos. E dizia que os padres em maior risco de burnout eram os que se situavam entre os 25 e os 29 anos, e depois os que estavam acima dos 70. Entre os padres com vinte anos de ministério crescia o número dos que se dedicavam à burocracia, ao burocrático, cada vez mais gestores do religioso. E as causas para a proximidade com o burnout eram o excessivo peso das expectativas, pessoais e dos outros, a desqualificação ou ausência de uma vida espiritual, os encargos demasiado pesados, o medo dos juízos dos outros, o viverem emocionalmente expostos a situações humanas sempre muito duras, quando não extremas, a pouca solidariedade dos padres entre si, a incapacidade de comunicar com os seus pares, e os superiores muito distantes que não sabiam escutar verdadeiramente. Mais não digo, pois não sei o que dizer.

domingo, maio 26, 2019

Morrer no céu [poema 217]

No céu também se morre
A água deixa de ser água para ser fonte
A terra deixa de ser terra para ser húmus
O fogo deixa de ser fogo para ser paixão
O ar deixa de ser ar para ser eternidade
Tudo deixa de ser para se tornar a ser

Não sabemos, aqui nesta casa de pedra,
Amuralhada com flores sem raízes,
O que o céu esconde, por detrás
das nuvens imaginárias nos nossos sonhos.
Mas sabemos que deixamos de ser cada um
para sermos um ou mais que um num só

Afinal,
e sem final,
No céu também se morre.

quinta-feira, maio 23, 2019

Bem-me-quer-mal-me-quer [poema 216]

Enquanto contava as pétalas e as deitava fora
O tempo passava, o sol amainava, tudo desaparecia
Malmequer bemmequer, um dois e três, outra vez
Ali, no meio do tanque do jardim, estátua de pedra
A sonhar com o amor que perdera no meio da guerra.
Contava pétalas como quem desvela padres-nossos
Com os dedos fechados sobre as contas do rosário
avé-maria, avé-maria, rezava, rezava, um dois três,
outra vez

Talvez o bem me queira mais que o mal me quer

sábado, maio 18, 2019

O Miguel e a guerra

O Miguel anda no primeiro ano da catequese. Segundo informações da catequista, tem uma enorme capacidade de fantasiar, contar e recontar o que vê e ouve. É um miúdo muito atento. Tem um coração sensível, capaz de se emocionar com os problemas dos colegas. E um dia, na catequese, veio à baila um apelo relacionado com as crianças pobres de um país em guerra. A catequista ia descrevendo as situações em que estavam essas crianças, e os miúdos, que a escutavam, começaram também a contar coisas que tinham visto na televisão ou ouvido na rádio. Houve até uma miudita que recordou os colegas como, às vezes, se queixavam porque queriam um telemóvel novo e os pais não davam, e estas crianças não tinham nada senão a guerra. A catequista ficou sem palavras. Mas o Miguel é que lhas tirou todas. As palavras e as letras que compõem as palavras. Nem sabia se rir se chorar, se pensar bem se pensar mal. Na verdade, não soube como o interpretar. Depois de todos saírem da sala da catequese, cabisbaixos e pensativos, o Miguel veio ter com a catequista, pôs-se em bicos de pés, levantou os bracitos, colocou-os em cima dos ombros da catequista e, olhando-a nos olhos, disse. Catequista, não tenhas medo, eu quando for grande mato a guerra.

terça-feira, maio 14, 2019

Aos olhos de Deus somos todos iguais

O senhor não diga que é indigno do amor de Deus. Ele até pode ficar triste. Foi assim que a Maria se dirigiu a mim a propósito de umas coisas que dissera sobre o não ser digno de tanto amor de Deus. Deixem-me referir que gosto muito deste nome, Maria, e tenho vontade de o usar muitas vezes, embora não seja o verdadeiro nome desta minha paroquiana amiga. Eu chamo-a de Maria porque nela se realça o lado materno, protector, interessado, atento, próprio das mães. Pelos vistos, tinha ficado um pouco triste por eu dizer essas coisas. Ela mesmo mo referia. Não diga essas coisas, senhor padre. O senhor tem muita sabedoria. Deus tem de gostar muito de si. Eu sou leiga e o senhor é padre. O senhor está acima de mim. Deus ama-o, de certeza, muito mais que a mim. 
E foram as suas últimas frases que me estremeceram por dentro. Não, Maria, eu não estou acima de ninguém. Posso ter mais formação teológica, mas isso não me habilita senão para aprofundar ainda mais Deus. Aos olhos de Deus somos todos iguais. Deus não me ama mais por eu ser padre. Se Deus me amasse mais por eu ser padre, Ele não amava gratuita, desinteressada e livremente. Seria um elitista. E os elitistas não amam assim. No coração de Deus cada um ocupa, independentemente de quem é ou como é, o lugar mais especial.

sábado, maio 11, 2019

tempus [poema 215]

Ele sentia

Que a vida não voltava
Só ia

Que o presente passava
Era e já não era

Que o futuro esperava
Sentado à espera

De tornar-se passado

terça-feira, maio 07, 2019

cristão, católico, religioso, clérigo, consagrado, leigo, fiel…

Termos como “cristão”, “católico”, “religioso”, “clérigo”, “consagrado”, “leigo”, “fiel” questionam-me. São eles que vêm até mim perguntar da sua existência, e eu careço de resposta para lhes dar. Não os entendo. Ou não entendo completamente o seu porquê e o seu para quê. Designam pessoas no âmbito da fé. Distinguem estados de vida, classes de fé, ou coisa do género. Como distinguem, também distanciam. O termo que entendo melhor na sua definição é “clérigo”. Porque faço parte do grupo. É mais ou menos o sujeito que faz parte da classe eclesiástica. Aquele que alcançou as ordens sacras. O cristão que exerce o sacerdócio. Foi assim que li algures. Mas também o entendo melhor na sua definição que na sua essência. 
Mas não gosto muito destes termos. Ou melhor, da sua utilização, sem mais. Todos eles me parecem palavras que servem a catalogação e gosto pouco da estratificação da fé. Mesmo sabendo que não há nenhum crente igual. Mesmo sabendo que existem funções, dons e carismas diferentes. Faz-me impressão cá dentro e pronto. Católico significa universal ou pessoa que professa o catolicismo. Religioso ou é alguém que tem ou vive intensamente a religião, ou é alguém que se consagrou de forma mais intensa a Deus. Mas acho que os outros também são ou deveriam ser, no mínimo, seres algo religiosos. O consagrado é quele que se consagrou a Deus. Mas não deveríamos todos os que temos fé de nos consagrar a Deus? O fiel é aquele que tem fé e a ela cuida a fidelidade. Digo eu. O leigo é aquele que não tem as ordens sacras, não é padre ou religioso. Mas também designa, ao menos na nossa língua portuguesa, aquele que não tem conhecimento sobre determinado assunto. Que expressa certa ignorância acerca de alguma coisa. Que é desconhecedor. É o termo mais complicado de entender. 
De todos estes termos, o que menor inquietação me causa é o termo “cristão”, porque designa quem segue a Cristo ou ao Cristianismo. Mas os outros parecem-me, de certo modo, o resultado de uma terminologia burocrática e institucional. Tão assim, que a maioria dos cristãos não os entende nem os usa e, quando questionados sobre eles, pouco sabem. 
O que vale é que, diante de Deus, somos quem somos e nada mais. Somos um tu para Deus. Bem personalizado. Pouco categorizado. Amado por quem somos e não pelo que nos designa, mesmo que seja na fé.

domingo, maio 05, 2019

O avental [poema 214]

O avental da minha mãe nasceu noutra geração
Passou da idade, do tempo, de mão em mão
Vezes sem conta foi retalhado e arranjado
Por sua mãe e nossa mãe, a aquela que aí vem

O avental foi alfaiate, foi parteiro, foi faxineiro,
Foi enfermeiro, hospedou-me a mim, fui o romeiro
Trouxe-o, regalo do tempo da minha mãe

quinta-feira, maio 02, 2019

Rezar antes das refeições

Antes de cada refeição é meu costume rezar a pedir a Deus pelos que a proporcionaram e a pedir para que ela retempere as nossas forças. É um hábito que recebi em casa, da mão dos meus pais. Hábito que repito onde quer que esteja, em minha casa, em casa de algum paroquiano, no restaurante. Convido todos, mesmo os que não conheço muito bem ou com quem estou menos à vontade, a acompanhar-me. 
E assim, há dias, na casa de um dos meus paroquianos, numa festa de aniversário de um dos seus filhos mais pequenos, onde estavam mais uns quantos dos seus amiguinhos da mesma idade, formulei o mesmo convite e, antes que me persignasse e desse início à pequena oração, o pequenote que fazia anos disse, um pouco envaidecido, que costumava rezar todos os dias em casa antes de comer. Depois perguntou aos amigos se também rezavam em suas casas antes da comida. Nisto, um dos seus amiguinhos, com a maior das ingenuidades, respondeu que não. Que a sua mãe sabia cozinhar.