domingo, maio 05, 2019

O avental [poema 214]

O avental da minha mãe nasceu noutra geração
Passou da idade, do tempo, de mão em mão
Vezes sem conta foi retalhado e arranjado
Por sua mãe e nossa mãe, a aquela que aí vem

O avental foi alfaiate, foi parteiro, foi faxineiro,
Foi enfermeiro, hospedou-me a mim, fui o romeiro
Trouxe-o, regalo do tempo da minha mãe

3 comentários:

Anónimo disse...

Do pé para a mão, passando pelo coração». Foi assim que ele se expressou quando lhe perguntei se queria um pedaço de pão. Havia-o rasgado na convicção antecipada daquele querer. Afinal olhara para mim expectante e estendera aquela mão pequenina na minha direcção como quem pede. Supus. Supus adivinhar um sim que se veio a traduzir num não. Quando o interroguei com o olhar duas azeitoninhas pretas e muito reluzentes sorriram, um dedo espetou-se na direcção do saco que trazia ao ombro. Uma moeda, inquiri? Não senhora, um guardanapo, por favor. Só depois o pão. Não queria, mas fez-me pensar nas exigências da fome. Pensei-o depois de matar a minha.

Anónimo disse...

A palavra que nos habita ainda pode surpreender. Ouvi-o noutro dia em casa de uma amiga de que sempre fui próximo, mas que os afazeres mútuos acabaram por afastar do convívio diário. Quando me vi dei-me a prensar naquela frase, talvez por ter irrompido pela janela sem querer. Quem a proferiu estava do lado de lá, andava por outra estrada e muito provavelmente nunca irá cruzar o meu caminho. Só lhe identifico a voz. No entanto avizinhou-se-me a ideia ínsita naquelas pouquíssimas palavras, talvez pela forma desprendida e quase banal como foi proferida. Um estremecimento percorreu-me, abalou-me e de repente apercebi-me que é a banalidade que carrega a maior das verdades, aquela que nos chega pela boca dos que se afastam e com quem nos cruzamos num ponto. Ou que agarramos nos silêncios e nos gestos. A generosidade dos estranhos também pode deixar marca, às vezes mais profunda, por que deles nada se espera. O que seguiu, cruzou-se comigo num ponto. Todos os dias alguém que não conheço cruza-se comigo num ponto. O locutor de televisão, o transeunte, a criança que esboça um sorriso ou que me ignora. Vejo-me a agarrar todos estes pontos e a preenche-los com linhas, a entretecê-los, a colori-los e a desfazer tudo o que antes fiz, de modo a que permaneçam apenas os pontos. Quando tudo e todos são pontos, todos se cruzam, afastam e aproximam numa igualdade sem par ou sem a falta dele. Agarro na figura geométrica que construí e mais uma vez oiço ecoar uma pergunta milenar: Quem é o meu próximo…? Então, facilito e atalho, virando a interrogação inicial de pernas para-o-ar: Quem não é o meu próximo…? E a reposta fecha-se em mim, encolhe-se mirra, até formar um único pontinho minúsculo, que não é um ponto final, é um ponto, pequenino, pequenino, mais pequenino ainda, que contém diversos pontos e sinais, apesar de ele ser apenas um. Apenas um de muitos ou um com muitos. Todo. Sim, aquele ponto, é o próximo.
Um dia destes, igual a todos os outros dias, nem mais quente nem mais frio, a uma qualquer hora, disponho-o. Sei que não irá crescer. Irá revelar apenas o que é, o que são. Uma multidão de minúsculos pontos. Uma humanidade de pontos. Próximos. Únicos. Um único ponto.

Ailime disse...

Boa tarde Sr. Padre,
De um tema tão simples, nasceu um poema belíssimo.
Ailime