sexta-feira, novembro 29, 2019

meu tu [poema 237]

Devias morar onde mora
o meu eu

Nessa hora sem ponteiros
Nesse mar que não desaparece
Nesse espaço sem medida
Nessa montanha que cresce
Nesse mais íntimo da vida
Que não sou eu senão
Tu
ou Tu e eu

terça-feira, novembro 26, 2019

O padre que mora na catequese

A senhora professora de moral é amiga do senhor prior. São amigos de longa data. De andanças das catequeses e das pastorais juvenis. Até se tratam por tu. E a senhora professora, enquanto preparava o acolhimento na sala do primeiro ano, precisou de falar com o pároco onde está a dar aulas para combinar algo com ele, o tal amigo. Na dita sala já se encontrava um dos pequenitos alunos que, achando estranha a conversa, perguntou à professora. Estás a falar com quem? Ela respondeu com a mesma simplicidade. Com o senhor padre. Insistiu o pequeno. Aquele que dá a missa? Sim, aquele que celebra a missa. Mas, como o pequeno, de vez em quando vai a outras paróquias, continuo o interrogatório. O que mora na catequese? 
Olha o que nos rimos com o petiz. Porque as pessoas moram onde são vistas, certo? Apetece fazer ou desenhar um lol.

domingo, novembro 24, 2019

A sociedade irritada II

Na sociedade em que vivemos está na moda o insulto. Mesmo não sendo anónimo, quase sempre no anonimato. Quase sempre virtual. Quase sempre fora do real. Mas que dói como realidade. Nunca ou quase nunca cara a cara. Os insultos na cara são punhos erguidos. Mas também são saco de boxe. É a sociedade das redes sociais que são pouco sociais. Uma socialização de irritados com a vida. Que para ali vão debitar as amarguras de uma vida atrás da realidade, num écran que fabrica opinadores de serviço. Sociedade virtual. Quer-me parecer que vivemos numa sociedade mal resolvida e constantemente irritada.

quinta-feira, novembro 21, 2019

O morto que não queria nada com Deus

A história passou-se com um senhor que nunca quisera nada com Deus, que nunca fora visto na missa, que dificilmente se abeirava do padre ou da Igreja. Não se dizia ateu, porque não sabia bem o significado dessa palavra. Contudo, dizia, à boca cheia, que não acreditava em Deus nem nessas coisas dos padres.
Um dia, porém, o padre foi informado que o referido senhor se encontrava nas últimas. Foi informado só por acaso, isto é, caso o padre quisesse lá passar. Embora sabendo que não ia adiantar muito. E o meu amigo padre foi. Recorda-se bem que começava a fazer escuro e que, quando chegou a casa, já o corpo do senhor estava coberto por lençóis, e ainda que havia gente a andar de um lado para o outro a fazer preparativos não sei bem de quê. Estava dado como morto. Mas o padre não resistiu em se abeirar dele e levantar o lençol para lhe ver o rosto. E quando o fez, deu-lhe a impressão de que teria havido um ínfimo pestanejar. Por isso, e sabendo que o ouvido era das últimas coisas que se perdia, começou a falar-lhe do perdão de Deus, da absolvição, da Unção dos Enfermos. O corpo, de facto, ainda não estava frio quando este meu amigo o ungiu com o óleo dos enfermos. Nisto, contou, aconteceu o inusitado. O homem pegou-lhe na mão, e disse, em bom som, Obrigado. E depois suspirou e faleceu.
E contava-me o colega que, para ele, tinha sido uma evidência de que a salvação não exclui ninguém.

terça-feira, novembro 19, 2019

luzes sem luz [poema 236]

Sinto, cada dia mais, a necessidade de apagar as luzes
Ou fechar os olhos dentro delas, apoucar-me
Vestir os mais pequenos tamanhos de roupa
Apanhada no estendal que houver mais escondido
No meio da selva que os dias abrem à luz

No meio das milhares de luzes
Meio acesas, por fora,
Meio apagadas, por dentro.
Sinto, cada dia mais, a necessidade de não ser
Senão um pontinho de luz
a crescer

domingo, novembro 17, 2019

Vinha-se confessar ou parecido

Vinha, despachada, enquanto me preparava para confessar, a pedido de um colega, numa paróquia vizinha. Era uma jovem risonha, sem dúvida. Vinha-se confessar, mas não sabia o que estava a fazer e, segundo me disse, não se recordava de se ter confessado nunca. Mas ria-se. E ria-se. Não sei se de incómodo, se de azia, se de nervosismo, se de graça. A graça que tinha tudo aquilo. Porque, tenho a certeza, se lhe falasse da graça de Deus, ela ia continuar a rir. Não sabe esse termo. Usa-o só por piada. E conhece uma senhora velhota que tem esse nome ou parecido. Não sabia, como era de esperar, o que era um exame de consciência ou um acto de contrição. Não sabia o que era sequer o pecado. Ela não tinha. Foi o que disse. Nem sabia bem o que era isso. Foi o que disse. Mas nunca ouviste falar de pecados? Perguntei. Que eu me lembre, não. Respondeu. Não desisti dela. Não desisti da confissão. Fizémos o que foi possível. Embora desconfiado, creio que a graça sacramental ou a graça de Deus é maior que todas estas coisas. Mas quando lhe perguntei porque estava ali, respondeu que estava ali, sem saber muito bem porquê, mas tinham-lhe dito que, para se crismar, tinha de se confessar.

sexta-feira, novembro 15, 2019

meu peso de amor [poema 235]

O peso do teu amor é uma cruz
Toma-se-lhe o tamanho pela dor
Cresce como uma nascente que não seca
No coração

Não tem lábios o teu amor
Tem paladar, tem muita dor
No coração

O teu amor tem o peso que é uma cruz
inteira, um coração

quarta-feira, novembro 13, 2019

A sociedade irritada I

Na sociedade em que vivemos o que conta são as opiniões. Cada um se vale da sua opinião. Cada um tem a sua opinião. E é um dos direitos mais reclamados dos tempos pós-modernos, mesmo que signifique uma ruptura com a dignidade do outro. Mesmo que a nossa opinião implique maltratar o outro, mais que maltratar a opinião do outro. Mesmo que a nossa opinião não seja a verdade. Ela torna-se uma verdade. Não há uma verdade universal. Porque a verdade, hoje, é a nossa opinião. E há opiniões como botões de camisa. Mesmo que a camisa seja da mesma pessoa!

domingo, novembro 10, 2019

O padrinho do noivo

Era o padrinho do noivo. Era a pessoa que se encontrava mais perto do noivo na hora da comunhão que distribuí nas duas espécies, a espécie do pão e a espécie do vinho. Eh lá, não mames tudo, disse, que é como dizer ‘não bebas tudo’. Não me recordo se também disse para deixar para os outros. Talvez tivesse dito. É comum a observação. Mas distraí-me nas palavras. Era o padrinho do noivo. Típico padrinho que é apenas um amigo dos copos. Serve bem como testemunha, é certo. Os padrinhos de casamento são apenas testemunhas do casamento. Assinam como testemunhas. Não têm, portanto, senão que testemunhar que o acto aconteceu. Não precisam requisitos especiais. Mas dizer isso no meio da cerimónia de casamento, em voz audível o suficiente para que alguns se deixassem rir, e enquanto o noivo comunga o Sangue do Senhor, é o mesmo que banalizar toda a cerimónia ou transformá-la num acto de aparência e de adorno de festa. Por mais engraçado que tenha sido. Por mais cool que tenha sido. É transformar a comunhão do Senhor, na espécie do vinho, em mais um copo numa noite de copos. É transformar a Última Ceia numa Tainada à boa maneira do norte.

sexta-feira, novembro 08, 2019

Um cisma de poder

Há dias ouvi dizer que Francisco, o nosso papa, não temia um cisma. Muitos, sobretudo uma determinada comunicação social, acharam que estava aí um cisma na calha e que o papa já andava preocupado com ele. 
De modo algum um cisma, como divisão que é, pode ser algo bom. Mas também das coisas más, às vezes, é possível retirar coisas boas. Como diz o ditado ‘há males que vêm por bem’. É que, por detrás das disputas teológicas dos cismas que a história conta, sempre se esconderam questões de poder. Creio plausível afirmar que a maior parte das divisões no seio da Igreja se deveram a questões de poder. As questões religiosas eram apenas pretextos. 
Quem sabe se aquele grupo que tem atacado o Papa Francisco e que, embora faça muito ruído e seja poderoso economicamente, é bem mais pequeno do que o que parece, depois destas disputas de poder, não faz com que a Igreja no geral, sobretudo a Igreja Povo de Deus como um todo, valorize ainda mais esta forma de ser Igreja menos autorreferencial e eclesiocêntrica, típicas da neo-cristandade!

quarta-feira, novembro 06, 2019

Amor [poema 234]

O amor não se diz.
Pode apenas dizer-se
Para se saber.
Mas ele não se diz
Não se sabe dizer.

É algo que se vive
Sem se saber
Como dizer

segunda-feira, novembro 04, 2019

Ser santo é caminhar na santidade

A propósito do dia de todos os santos e do halloween, um jovem disse-me que gostava mais do halloween porque, ao menos, divertia-se. Com o dia de todos os santos, nem sabia o que fazia. Aliás, o que era ser santo? Como se torna uma pessoa santa? Dizia-me que as estátuas dos santos nas igrejas eram, para ele, apenas arte sacra. Na verdade, o João, chamemos-lhe assim, não fazia parte do grupo dos que, em vésperas do feriado de Todos os Santos, andara pelas ruas a fazer estragos, vestido de bruxa ou de monstro. Apenas se questionava sobre as coisas. Também tinha pouca fé. Sei lá. Tinha assim uma curiosidade por Deus e pelo sacro. Entendia que a vida deveria ter algo mais por detrás. Mas não sabia de que se tratava. Contudo, havia coisas na Igreja que o afastavam. E uma delas era esta coisa da santidade. Porque não lhe parecia coisa para ele. Era mais para anjos e certinhos. 
O João tem razão. Nós, os que temos alguma responsabilidade na Igreja, apresentamos quase tudo de uma forma muito dogmática. Uma forma que não é fácil de entender nem de levar à vida. Depois, fazemos da santidade algo de extraordinário, fruto de uma condição superior ou um heroísmo. Mesmo sem querer, damos exemplos de santos como se fossem eleitos, sem fragilidades e defeitos. Damos exemplos de vidas de santos como se fossem vidas perfeitas. Assim é impossível perceber que a santidade seja a forma de se ser verdadeiramente cristão. Confundimos e levamos outros a confundir a santidade com a perfeição. Um santo é apenas aquele que procura a felicidade em Deus, que busca o sentido da vida no Bem Maior, que procura configurar-se, tanto quanto possível, a Cristo e ao seu Evangelho. Um santo é um buscador constante de Deus. Um santo é apenas aquele que caminha na santidade.