domingo, dezembro 31, 2017

passar ou não [poema 166]

O passado
Arde nos olhos e nas entranhas
Remove as águas e seca as fontes

O passado
É a sombra que nos religa
Ao que não quisemos mas foi
Ao que o futuro nos repugna
E repõe.

Desejo a todos os amigos e visitantes um ano cheio da Esperança que brota de Deus!

sexta-feira, dezembro 29, 2017

flores que são pétalas [poema 165]

Contar pétalas, uma a uma, pelo sim pelo não
Escolher as pontas soltas, sem caule
Entre o agora e o agora não

Juntá-las, de novo, para serem flor
Quando já não são mais que pétalas
A secar, pelo sim pelo não
Vou voltar a contar

terça-feira, dezembro 26, 2017

A minha cadeira de rodas

Só me faltou a gargalhada. Foi um sorriso que só eu dei conta. Veio, mais ou menos, na hora em que me pareceu que o mundo estava distante. Que agora era só eu e mais quem me quisesse acompanhar na invisibilidade. Ganhei ânimo ao pensar que vida é muito mais que o que temos de fazer. A vida é estar ou ser. É muito pouco o que fazer. 
Sou padre, é certo. Não tenho a menor dúvida disso. Como também não tenho grandes dúvidas sobre o convite que Deus me fez há tantos anos. O convite que fez a uma pobre criança, meio reguila, meio inconforme. Tantas vezes pensei no porquê de Deus me ter escolhido. Ainda por cima, quando me apercebo das minhas milhentas fragilidades ou vulnerabilidades. 
Estava a ler o livro “Senhor bispo, o pároco fugiu”, uma versão portuguesa do original francês “Monsier, le curé fait sa crise”. As primeiras impressões, sobretudo quando se trata o assunto da canseira administrativa das paróquias, era uma luva em mim. Assentava em cada dedo das minhas mãos. O protagonista, de nome Benjamim, queria refundar o seu sacerdócio, e para isso fugiu de tudo. Creio que fugiu até de si mesmo. Ia lendo e ia pensando que também era um sentimento que vinha a mim muitas vezes. A ideia que formulamos em nós quando decidimos seguir esta vocação anda muito próximo da divinização do sacerdócio. Imaginamo-nos a construir o reino de Deus só com a Palavra de Deus. Ela tem uma força que não cabe em nós, de facto. Mas é na nossa humanidade que ela actua. Não há como fugir disso. Nós padres, é que nos esquecemos, muitas vezes, dessa realidade. A vida não é como imaginamos, mas é um desafio permanente a descobrir como viver.
O padre Benjamim no final do livro foi convidado a ser bispo, apesar de estar sobre uma cadeira de rodas. O que eu me ri das coisas que Deus pode, em verdade, lembrar-se. Ou pelo menos que o autor deste livro colocou na sua vontade. A minha cadeira de rodas é outra. É esta vida sobre a qual me tenho sentado, na esperança de que o mundo gire à minha volta. Mas o mundo não gira. Sou eu que tenho de ir em busca, mesmo em cadeira de rodas. Sou eu que tenho de andar, mesmo que seja dentro de mim, para que cada minuto da minha vida, mesmo a sacerdotal, valha a pena. Por isso me ri tanto, comigo e de mim. Talvez amanhã me levante com o mesmo rosto sombrio de muitos dos meus dias. Mas, pelo menos, agora rio e, como um rio, quero deixar-me levar até ao mar, com um sorriso nos lábios.

sexta-feira, dezembro 22, 2017

Essa noite [poema 164]

Veio na calada e no mais escuro da noite,
Sem notícias ou publicidades, do nada 
Veio na pobreza de uma barraca, sem cidade,
Sem adornos, sem luzes, somente com estrelas

Veio e poucos sabem que veio.
Entrou por uma porta sem entrada, na noite
que eu sou.


Desejo a todos os meus amigos e leitores um Natal repleto, cheio, pleno do Menino Deus!

quarta-feira, dezembro 20, 2017

Ser padre ou ser Igreja?

Há muito que ando com esta pergunta aos tombos. Há já tanto tempo, como desde que comecei a sentir o que era deveras ser padre. Os primeiros anos do sacerdócio são os anos fantásticos dos sonhos, das esperanças, da vontade de oferecer ou vender a salvação por meia tuta de missas, confissões ou outros sacramentos. Muitas actividades para promover o espírito da comunidade cristã. Muitas conversas entusiásticas sobre um Deus que nos ama. Mas depois, com o tempo, vem a sabedoria da vida, a sabedoria de uma vida que se mantém igual, com pequenas nuances ou pequenos degraus. Esse tempo já la vai um pouco perdido pelo tédio ou pela rotina do nosso sacerdócio. Evito ser pessimista. Vejo ou quero ver tudo como oportunidades e desafios. Mas a pergunta vem e vai, bailando como sereia por um mar desconhecido. São muitos anos contados a fazer uma pergunta que é mais uma questão. Ou uma questão que se desenrola em muitas perguntas. Que Igreja quer Deus? Porque Deus fez assim as coisas? Para que enviou realmente o Seu Filho ao mundo? O que Ele pretende de nós? O que fazemos nós com Deus? E com estas vêm muitas outras perguntas similares, parecidas, mais retocadas ou mais embrulhadas. E todas elas se podem resumir neste desejo que trago em perceber como devo ser Igreja e como posso cumprir a vocação para a qual Deus me convidou. Repito a mim mesmo que não estou a ser pessimista e que, no meu mais íntimo, algo sei da resposta que busco. Talvez recluir-me em mim mesmo fosse a maneira para não me desperdiçar em tanta superficialidade. Mas também sei que não é isso que Deus me quer. É na vida que Ele pretende que eu seja padre e seja Igreja. Talvez o que eu queria era uma Igreja mais fácil, mais simples, mais verdadeira, na qual me pudesse sentir sempre como sou. Talvez consiga responder com mais claridade quando um dia for capaz de desprender-me do meu sacerdócio e o encontre verdadeiramente. Ou por outras palavras, talvez quando um dia deixe de querer ser tão padre, eu consiga ser mais discípulo e mais Igreja como imagino que Deus sonhou.

domingo, dezembro 17, 2017

amanhã [poema 163]

Quando não houver papel para escrever
Tecerei poemas com as nuvens, para ser.
Farei esboços de histórias na memória
Dos que fizeram a sua na minha história.

Do céu farei ouvir as minhas canções
Como beijos que cheguem aos corações.

As estrelas serão o meu mundo e o tempo
Onde adormecerei sem nenhum tormento.

Nunca deixarei de amar por um momento

Serei tudo o que te trouxer o vento...

sexta-feira, dezembro 15, 2017

As missas de Natal parte II

Há paróquias que só se enchem para a missa de Natal. Também ocorre o mesmo por ocasião da missa da bênção dos ramos, da missa de Páscoa, da missa da festa da aldeia, da missa quando se vai em romagem ao cemitério. E com menos pompa, também nas missas de funerais. Mas não todas, porque depende do morto a homenagear. 
É uma graça, dirão alguns, termos tanta gente nas nossas Igrejas por estas ocasiões. E é mesmo uma bênção, nem sempre aproveitada, sobretudo para anunciar o Evangelho como ele merece. Que grande oportunidade para chegar ao coração de cada um dos que ainda não se encontraram com Cristo, mas estão ali. Também é de recordar que nessas ocasiões vem muita gente de fora. Familiares e amigos juntam-se, com o motivo da celebração festiva que nos junta numa Igreja ou numa capela lá da aldeia. Tudo são graças de Deus. Suas bênçãos. 
Mas ainda ontem fui celebrar uma missa, a uma paróquia dessas, com 13 pessoas presentes, incluindo eu. Mesmo quando vou a paróquias que deixam a Igreja meio compostinha, pergunto-me sempre pelos outros vinte, trinta, quarenta, cinquenta por cento ou mais que não foram lá compô-la, mas que depois vão engalanados para a missa de Natal, e ai do padre se não tiver possibilidade de lá ir celebrar. Pois que, senão, dizem, o padre é que tira a fé e a religião já não é como dantes. Pudera. Claro que não é como dantes. E embora não pretenda questionar a fé herdada que existia como um modo cultural de viver, não posso deixar de me queixar que não é possível manter esse tipo de religiosidade num tempo em que as pessoas usam a religião como uma feira e o padre como um vendedor ambulante de sacramentos. 
Neste Natal vou ter a coragem de pedir ao Menino Jesus que não ponha mais padres no sapatinho. Talvez quando o número de padres for exíguo e as terrinhas não consigam ter as suas missinhas de Natal, nos detenhamos a buscar o essencial do cristianismo, como um balbuciar de uma criança que vai crescer. Isso mesmo me lembra o Menino Jesus numas palhinhas deitado.

terça-feira, dezembro 12, 2017

O que pensas que é o Natal hoje?

Já lá vão quatro meses desde a última sondagem onde perguntávamos os atributos mais óbvios dos católicos portugueses. Apurou-se, na ocasião, que são sobretudo indiferentes, sem formação, e grande parte deles não é praticante.
A mesma sondagem, concretizada em 2008 (ver aqui) dava conta que eram sobretudo gente sem formação, indiferentes e tradicionalistas. O que terá mudado entretanto?
Deixamos os resultados deste ano em seguida.

Hoje iniciamos nova sondagem a propósito do Natal: O que pensas que é o Natal hoje?

sábado, dezembro 09, 2017

O que é o advento?

A Igreja propõe que, a poucas semanas do Natal, quatro para ser mais concreto, os cristãos se preparem de forma mais especial e intensa para a festa que se aproxima. Chamamos-lhe advento, que vem da palavra latina adventus e que significa vinda. Utilizava-se para falar da chegada solene do imperador ou de alguma personalidade importante. Para os cristãos significa a espera do seu Salvador, Jesus Cristo. Por isso gosto de pensar que toda a nossa vida é um advento. De qualquer modo, cada vez que chegamos a este tempo litúrgico, somos convidados a caminhar de forma especial ao encontro de Cristo. Mas será que todos os cristãos sabem o que é o advento? 
Num encontro de um grupo de meninos dos primeiros anos da catequese daqui da paróquia, a Susana, que é a catequista ao seu leme, ousou perguntar aos seus catequizandos se sabiam o que era o advento. Das duas uma, disse-me ela, ou sabiam o que era ou nunca tinham ouvido falar dele. Então uma das meninas mais atrevidotas, com ar de satisfação e, ao mesmo tempo, de um certo gozo com a sua catequista, respondeu. Ó senhora catequista, então a senhora catequista não sabe que é aquela caixa com janelinhas e que vamos abrindo uma a uma e tem lá dentro um chocolate? E sabe o que é que eu faço com ela? Abro logo todas as janelinhas, e como os chocolates que lá estão escondidinhos, porque vem a avó e dá, mas também a tia e outras pessoas dão um advento. E ria-se perdidamente, porque gostava muito dos adventos. Afinal não havia só um. Havia vários adventos, tantos quantos as pessoas amigas lhe ofereciam. 
É este o advento do nosso tempo, dizia-me a Susana, para concluir. Ou melhor, para deixar tudo em aberto!

terça-feira, dezembro 05, 2017

Missas de Natal

Não sei como fazer para marcar tanta missa no dia de Natal, comentei com uma paroquiana de umas das minhas aldeias, no ensejo de que me aliviasse o peso de não saber que fazer. Como todos os cristãos compreendem que as coisas estão cada vez mais difíceis a este nível, também a Sandra compreende. A primeira coisa que disse foi um longo e pesado Pois. E acrescentou que as coisas estão a ficar complicadas. Mas decidiu dar uma ajudinha e perguntou porque não arranjava um padre.
Primeiro ri-me. Depois respondi que um padre já eu tinha arranjado. Eu mesmo. E por último pedi-lhe que arranjasse ela um. De facto parece que a nossa obrigação de padres, quando não podemos fazer certas celebrações, é a de arranjar padres. Outros padres que nos substituam. Mas poucos casais se preocupam em arranjar filhos padres. 
A Sandra também sorriu porque entendeu. Mas depois foi citando, um a um, nomes de padres que ela pensava que estavam disponíveis, isto é, sem paróquias. Contudo, um a um, todos os nomes que referia são agora párocos. Em verdade, não é fácil encontrar um padre disponível para ajudar outro padre, porque todos, afinal, vão precisando de ajuda. Entre sete, oito e mais paróquias, não há como celebrar missa de Natal em todas. Além de ser humana e praticamente impossível, é esquecer que a verdadeira missão da Igreja está muito para além das missas. Elas são o centro da vida cristã, mas ainda é mais importante a vida cristã. Os padres têm-se gastado a celebrar missas, porque não há padres para celebrar tanta missa. E depois sobra pouco tempo para anunciar a Boa Nova da salvação, essa que Jesus nos trouxe quando nasceu. Além disso, deixem-me dizê-lo. O Natal é muito mais que a missa de Natal.

sábado, dezembro 02, 2017

Os nadas do padre João

O padre João tem, muitas vezes, a vontade de não fazer nada. Tem vontade de fugir para coisas que sejam iguais a nada, desinteressantes, desnecessárias. Tem aquela vontade de fazer o que apetece sem que uma obrigação moral, doutrinal, funcional e até espiritual lhe esteja colada como um cordão umbilical à sua progenitora. Gosto particularmente desta comparação para explicar o estado do Padre João. Sabe-se que a intimidade que o novo ser possui com a mãe lhe advém dessa religação de ser, o cordão umbilical. Mas também se sabe que se não se corta, nunca será o verdadeiro ser para o qual esse cordão serviu. A vontade do padre João fugir é, portanto, a vontade de ser, tal como a mãe natureza, a que eu ouso chamar de Deus, teve o ensejo de vocacionar. Ser verdadeiramente padre.
Não sei muito bem como falar do padre João. As palavras tornam-se tão confusas como a cabeça dele neste preciso momento que, afinal, já se vem arrastando há semanas. O padre João está cansado de ser e de viver à custa do que os outros esperam dele. Quando decidiu dar este rumo à sua vida, prometeu que iria dedicar a sua vida àquilo que Deus esperava dele. E agora sente que está a fazer, não o que Deus espera, mas o que os outros esperam, o que nem sempre, ou quase nunca, coincide. Por isso se vê tentado a não fazer nada, a fugir, a esconder-se para se sentir ele próprio, a desaparecer para poder ser. O padre João está com vontade de não fazer nada. Esse nada que, afinal, é tudo o que ele queria neste momento.