terça-feira, setembro 30, 2014

Morri [poema 24]

Está fora de questão voltar ao meu corpo
Foi-me dado e retirado para longe de mim
Soltou-se daquilo que eu sou mais.
Enquanto foi, fez-me ser quem sou
Mas agora sou eu que não quero desfrutar do corpo
Está fora de questão concentrar-me nesse efémero
Hoje renasço e quero ser renascido
Não há ventura maior que renascer

sábado, setembro 27, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [6]

Vamos já na sexta sondagem relacionada com as características ou virtudes que gostaríamos de ver mais nos sacerdotes de hoje. Temos agora disponíveis mais seis opções possíveis.
Recordo que as cinco características mais votadas nas outras sondagens foram "autenticos", "acolhedores", "simples", “pastores” e “evangelizadores”, sendo que este último apenas teve mais 1% que a segunda opção, “humildes, e alcançou apenas uns 26%. Deixamos os resultados da última sondagem e colocamos online a sexta edição desta "saga".
 

quarta-feira, setembro 24, 2014

O burro do Alfredo

O burro do Alfredo é o vizinho mais próximo do cemitério. É ele que, do seu posto de trabalho, vela cada campa. É um burro sossegado, mas atento. Não se dá por ele a não ser nos funerais ou nos finados. Chegados ao cemitério, findo o canto fúnebre, o burro do Alfredo continua a salmodia na sua língua materna. É difícil manter a compostura e guardar a seriedade. O seu dono é o primeiro a desfazer-se em prantos de gargalhada contida. Já o avisei para que guarde o animal a sete chaves quando há funeral, mas o Alfredo esquece-se. É que ninguém consegue ficar-lhe indiferente numa cerimónia que exige tanto recato. Foi quando o Alfredo me contou que em tempos o padre que eu substituíra, para dar início ao ritual das exéquias e efectuar a despedida do defunto no cemitério, dado que os presentes faziam barulho inapropriado, pediu, alto e bom som, que se fizesse silêncio a fim de ele prosseguir a oração com a devida dignidade. As pessoas aceitaram o pedido e calaram-se. Nisto, o burro do Alfredo, quase em tom de gozo com o padre, abre as goelas e esboça um zurro do nunca visto. Sorriram as pessoas e conformou-se o padre, dizendo. Bem, a este não posso eu mandar calar.

quinta-feira, setembro 18, 2014

Ser como as crianças

Um dia perguntaram a Jesus quem é que entrava no Reino dos Céus, e Jesus respondeu, chamando a Si uma criança, que quem não fosse como as crianças não entraria no Reino dos Céus. Ontem também me formularam a mesma pergunta e eu fiz minhas as palavras de Jesus. O senhor que a formulara era emigrante e gabava-se de fazer essa pergunta a quantos padres encontrasse para depois poder dizer que já sabia, mas que continuava sem saber, e que ainda ninguém o satisfizera com a resposta. Pois que era por ser como as crianças? Por ter uma simplicidade que agrada a Deus? Por ser ingénuo ao ponto de não ter consciência das suas opções e escolhas? Por ser dependente de outrem para viver? Por ter uma relação de pequeno para maior com esse Deus que se diz amor? Porque é que Jesus se lembrara de usar uma criança para responder a uma coisa tão importante?
Confesso que tudo isto já me viera à ideia nas minhas meditações, e muitas dessas questões também já as fizera. Por isso a resposta dei-lha sem demorar os habituais minutos ou segundos de indecisão. As crianças não vivem preocupadas senão em ser felizes. Não complicam a vida. Vivem-na na procura do que as faz feliz. Não se preocupam com o dia de amanhã, com o pão, com a roupa que hão-de vestir, com o que quer que seja. E mesmo relativizando a idade e maturidade que possuem, a verdade é que são um exemplo daquilo que é a busca do reino de Deus, isto é, a preocupação apenas com aquilo que é essencial, isto é, a busca da felicidade autêntica. O homem olhou-me como quem até gostou da resposta. Mas ainda assim. Um dia ainda temos de conversar melhor.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Dias da cor da noite [poema 23]

Há dias assim
Da cor da noite
Dias que parecem noites
Dias que não são dias
Daqueles que vão mas não voltam
São dias que vão e voltam
Como a noite chega ao final do dia

São os dias em que me faltas
Ou estou órfão de Ti

quinta-feira, setembro 11, 2014

Uma confissão marcante

Era padre faz pouco tempo. Sabia-me dono do saber e do mundo. Achava-me capaz das melhores proezas, das mais sensatas virtudes sacerdotais. Além disso, estava no centro das espiritualidades sacerdotais em Portugal. Fátima. Tinha aprendido a oração da absolvição. Sabia-a de cor. Estava apto para ser sinal do perdão misericordioso do Senhor.
A senhora que se abeirou para se confessar tinha uma idade própria de quem já passou por muito, mas ainda há-de passar por muito mais. Não me olhou nunca nos olhos. Sofrera e sofria. Sofria e não queria sofrer mais. Achara-se usada e não queria mais. E como o perdão de Deus é tão próximo, tão íntimo, tão à maneira de Deus, agarrei na mão da senhora para lhe mostrar que Deus a agarrava também. Mas o inóspito aconteceu num repente que me marcou para sempre. Ela retirou a mão das minhas, afastou o corpo ligeiramente. Esperou a absolvição de forma nervosa, tímida, assustada. Eu assustado também, jurei a mim mesmo que, durante a confissão, não voltaria a agarrar na mão de desconhecidos. Hoje faço o possível para me colocar no lugar da pessoa que se está a confessar. Apenas escutá-la naquilo que é e sente. Não é fácil. Mas tem de ser. É que naquela confissão marcante aprendi que ainda estava muito longe de saber como Deus agia nas pessoas. Porque cada pessoa é uma pessoa. E Deus age sempre diferente de pessoa para pessoa.

sábado, setembro 06, 2014

Conversas com uma senhora muito religiosa

Conversa pouco fiada entre duas pessoas adultas. Um padre e uma senhora. Senhor padre, eu sou uma pessoa muito religiosa, diz ela. O padre pensa nas freiras em quem se costuma pensar quando se fala em religiosas, mas não deixa o seu pensamento sair para fora. Aproveita o ocaso da situação para explicar Olhe que é melhor dizer que somos pessoa de fé do que dizermos que somos religiosos. Ser religioso é viver de religiosidades. Ter fé é viver Deus. A senhora acenou que compreendera e emendou. Sou uma pessoa com uma fé tremenda. Sabe, padre, eu já fui cinco vezes a Fátima. Não vou muitas vezes à missa, mas Nossa Senhora de Fátima ajuda-me sempre que preciso. O padre teve outro pensamento errático. A senhora pensa na Senhora quando precisa, mas tem muita fé. A fé dos que têm fé quando precisam. O tal padre deve ter feito uma cara estranha porque a senhora insistiu que tinha uma fé enorme em Nossa Senhora. O padre perguntou se não tinha fé em Deus e a senhora falou que claro, mas ia poucas vezes à missa. O padre concluiu que para a senhora a fé estava em cinco vezes que foi a Fátima e não nas cinco vezes que fora à missa. O padre perguntou-lhe quanto gostava de Deus, ela disse que muito, mas que gostava mais de Nossa Senhora. O padre achou que o Senhor Deus não se deve importar com isso, porque Ele também gosta muito da Sua mãe. O padre e a senhora falaram muito mais e acho que a senhora no final estava mais esclarecida. Na realidade, ela era mais uma pessoa religiosa que uma pessoa de fé. Mas não vem mal ao mundo. Acho que Deus sabe esperar.

terça-feira, setembro 02, 2014

A burrita da Virgínia

A Virgínia tem idade suficiente para olhar a vida a agradecer tudo a Deus. O marido já faleceu há anos. Não tiveram filhos. Tiveram enteados e pessoas que adoptaram para auxiliar. Não daqueles verdadeiros adoptados do papel e assinaturas. Mas os adoptados que precisavam apenas de alguém por perto. A virgínia é uma pessoa culta, mas isso não lhe tira a solidão, e acha-se uma pessoa sozinha, meio abandonada. Porém, no meio disto tudo, tem um ar de graça. Tem uma forma de ser divertida. Há dias disse-me que pedia muitas vezes uma coisa a Deus. Para satisfazer a minha curiosidade, contou-me o pedido que fazia insistentemente a Deus. Pedia-lhe que a deixasse ser a burrita do presépio. O pedido e o segredo eram sérios, mas os dois rimos a bom rir. E continuou. Ó senhor padre, a burrita ainda carregou com a Nossa Senhora e com o Menino. Eu nem para isso sirvo. De facto, o pedido era mais sério do que parecia à partida. Mas para compor o momento, achei-me no dever de concordar com ela dizendo que se ela pedia para ser a burrita, eu poderia ou deveria pedir para ser a vaquita. Não, não era pelos cornos. Rimos. Era mais pela graça de ali estar ao lado da mãe e do Menino, e eu nem sempre conseguia estar com eles. A rir nos quedámos os dois, mas o assunto era sério.