sexta-feira, dezembro 29, 2023

Ser padre é ser boa pessoa

Ria-se muito durante a homilia e, para mim, isso é bom sinal. Um sorriso nos lábios amplifica as palavras, ou fá-las chegar mais perto do coração, o melhor lugar para as guardar. A homilia não ia longa. Contudo, terminou algo abruptamente, quando este meu colega, com quem concelebrava, afirmou que, na sua opinião, ser padre era ser boa pessoa. Que bastava isso. 
Reconheço que, em tempos, também tive a ideia de que ser bom era o fundamental da fé. Mas aprendi, entretanto, que qualquer pessoa pode ser boa, independentemente da sua fé ou da sua condição eclesial. A diferença está no ser bom por Cristo, com Cristo e em Cristo. Além disso, que mal estaríamos se os padres fossem somente boas pessoas. Os padres temos de ser, além de boas pessoas, bons pastores!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como penso que deveria ser um bom guia espiritual"

sábado, dezembro 23, 2023

As montras de Natal

O município de uma cidade perto das minhas comunidades organizou um concurso de montras de Natal. Para seleccionar os vencedores, a organização propôs que os internautas votassem as fotos das referidas montras. Fui espreitar. As montras estavam bastante bonitas. No entanto, das cerca de cinquenta participantes a concurso, apenas cinco tinham o presépio. Cinco apenas. E assim se vai esvaziando o verdadeiro motivo do Natal. 
Este ano vou pedir à Sagrada Família de Nazaré que, em vez de se ir recensear a Belém, venha até à Europa acampar em nossas casas. Não sei se temos melhores condições para o menino nascer. Mas eu vou pedir, ao mesmo tempo, que Ele venha fazer morada em nossos corações. Talvez não se importe!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nasceu numa humilde casa"

Votos de que Ele nasça novamente em nossos corações!

quarta-feira, dezembro 13, 2023

ponteiros [poema 379]

examinemos como se movem os ponteiros 
como dão as horas sem as dar, nunca se sabe o que vem 
porque o tempo é sempre efêmero e eterno, vem e vai 
vai e vem, ciclicamente nos ponteiros, mas passageiro.
sempre passageiro, sempre a ser, sempre a passar, 
sempre a ser, o presente que é passado 
 
examinemos o tempo como se fosse um abraço que está, 
ora não está, estando, mas sempre vem, 
sem saber o que virá

domingo, dezembro 10, 2023

A paróquia consumidora de missas

Chamou-me logo a atenção quando contou que, na paróquia onde estava, se celebravam oito missas dominicais e quatro por dia no resto dos dias da semana. A paróquia localizava-se numa zona periférica de uma grande cidade europeia. O bairro era muito frequentado por um determinado movimento religioso que não interessa referir agora. O colega, que fazia parte de uma pequena comunidade de três sacerdotes, não conseguia justificar a clientela senão pela presença desse movimento. Perguntei-lhe como eram os horários das missas dominicais. Eram às oito, às nove, às dez, às onze, às doze, às treze, às dezoito e às dezanove. Sem que lhe perguntasse, informou que o que mais lhe custava era não haver cânticos e a celebração ter de ser rápida, para dar tempo a saírem uns e entrarem outros. Fez-me lembrar as sessões de cinema. Não me atrevi a perguntar-lhe se havia senhoras das limpezas no intervalo das missas e carrinho de pipocas à entrada. Mas fiquei convencido de que os padres daquela paróquia eram mais funcionários que pastores e de que aquela paróquia era uma consumidora de missas, mas não era comunidade. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Cristãos de funerais que não acreditam"

sexta-feira, dezembro 08, 2023

carne de mulher [poema 378]

a palavra entra no corpo de mulher 
abraça-se entre ela e a eternidade, 
esse braço sem prelúdio e sem findar 
essa mão que é céu que desce à terra 
e a faz germinar, para ser céu 
no corpo de mulher, a realidade.
 
toma a carne e diz, acontece 
e todo o mundo na mulher 
estremece 

segunda-feira, dezembro 04, 2023

O senhor padre diácono

Uma vez que, por motivos pastorais, não tinha disponibilidade naquele horário que a família pretendia para presidir ao funeral, o colega sacerdote respondeu à senhora da agência funerária que teriam de verificar se o seu cooperador pastoral, um diácono permanente, estava disponível para presidir às exéquias. Pelos vistos, por motivos relacionados com a saúde, este também não tinha disponibilidade. Perante os factos, a senhora da agência diz, mais ou menos, o seguinte: ‘Uma vez que o senhor padre não pode, e o senhor padre diácono também não, podemos falar com aquela senhora que faz celebrações, que eu acho que também é senhor padre diácono’. O colega não sabia se rir se chorar. A conversa prolongou-se um pouco mais, isso sim, na certeza de que algum padre diácono haveria de se arranjar.
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O burro do Alfredo"

quarta-feira, novembro 29, 2023

Ter que fazer diferente

Vivemos no tempo das palavras que toda a gente tem que dizer e das opiniões que se têm de dar. Proliferam notícias, reportagens, entrevistas, artigos de opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Aliás, parece-me que nunca como hoje os artigos de opinião ocuparam tanto espaço na comunicação social, assim como o direito de contraditório, isto é, artigos a falar de alguém que contrasta o que outro afirmou ou que defende uma ideia que outro contrastou. Ora, como a Igreja existe num aqui e agora, ou seja, nesta sociedade e nesta história, sofre dos mesmos males. 
Esta introdução vem a propósito dos chavões que cansam, das mesmas frases que se ouvem anos seguidos de gente que supostamente descobriu que na pastoral se tem de fazer diferente, embora quase nunca se diga que diferença é essa a que se refere essa opinião. Toda a gente parece vir a público com a consciência de que as coisas estão mal e que há que fazer diferente. Mas até nesse ‘dizer’ se mantém tudo na mesma. É o mesmo 'dizer' de sempre. Faltam rasgos. Faltam verdadeiros pensadores práticos, objectivos, assertivos, que ousem arriscar horizontes, mas que, sobretudo, ponham mãos à obra, sujem as mãos nessa obra, se gastem, ao menos, a tentar, sem certezas, mas com a consciência de que o caminho só se faz caminhando e que as palavras podem ser apenas isso, palavras. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Às vezes sinto que não escolhi o meu destino"

sábado, novembro 25, 2023

o passo [poema 377]

ainda resisto em dar o passo.
lembro que dar é mais fácil que pedir, mas o passo 
está à minha frente, sei que posso 
deixar que seja o passo, para ser,
ou o passo por acrescentar 

ainda resisto por não saber 
o tamanho de vida que tem este passo, por isso passo 
o tempo a olhar o passo sem o tornar passo.
olho-o e ali me fico, no passo 
que hei-de dar

terça-feira, novembro 21, 2023

procuro a fé…

imagem de benzoix no Freepik
Penso muitas vezes a fé. A fé vive-se, mas também se pensa. Pensa-se para se descobrir e para se encontrar as razões dela. E procuro-a entre a razão e a vida. Procuro-a e gosto de não a encontrar. Para andar sempre à sua procura. Vivemos num tempo em que a fé é chamada, como dizia Hallík, a sair da casa das certezas em que sempre viveu. Eu sei que a fé é um dom de Deus, pois começa n’Ele. Gosto, porém, da inquietação que ela gera em nós. E as dúvidas, as incertezas. A vontade de ir sempre mais longe e mais profundo, até ao lugar maior do coração de Deus. Também as crises de fé são ou podem ser um estímulo da fé. Sei que tenho fé ou essa qualquer coisa que mexe comigo e sei que tem a ver com um coração a querer juntar-se ao coração de Deus. Chamemos-lhe fé. E eu chamar-lhe-ei Amor. Chamemos-lhe ‘mistério’ e eu chamar-lhe-ei ‘procura’. Quanto mais desvelo a fé, mais me apetece procurá-la. Só se procura aquilo que já se encontrou, mas se quer encontrar mais e melhor. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Obrigado pela fé que me deste"

sexta-feira, novembro 17, 2023

O céu do senhor João

O senhor João é um homem divertido. Geralmente acompanha as palavras, mesmo as profundas, com um sorriso. O rosto apimenta-se cada vez que tem oportunidade de dar uma graça. É um homem bem-disposto, mas isso não significa que não pense o que diz. Falávamos do céu e da morte. Da dificuldade das pessoas diante da morte. Do que nos espera ou desespera. E o senhor João olhou para mim de um modo muito sério, que quase me assustou, e disse em tom de desdém. As pessoas não querem morrer, não querem morrer, mas elas não pensam no que dizem. Eu tenho a certeza de que no céu se deve estar muito bem, porque ainda ninguém de lá voltou. E começou a rir às gargalhadas com o seu próprio argumento.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Será que os animais vão para o céu?"

segunda-feira, novembro 13, 2023

Seminários que formam clérigos e não pastores

Quando leio o que alguns jovens seminaristas escrevem por estes dias, por ocasião da semana dos seminários, e me apercebo que lhes falta a frescura das palavras e da novidade de Cristo no seu coração, e que insistem em repetir palavras clericais que parecem ter aprendido no percurso do seminário, palavras de bem dizer, mas que dizem pouco, devo confessar que fico triste. Parece-me que falta vida nos nossos seminários. Vida de verdade. Não quero generalizar e quero imaginar que a grande maioria dos nossos seminaristas é bem mais santa do que eu. E precisamos de padres santos. No entanto, estou convencido que ainda há muito por fazer para que os seminários deixem de ser redomas de vidro que protegem os futuros padres dos males do mundo ou fábricas de uma casta clerical que se fecha sobre si mesma. Ainda bem que a assembleia sinodal do último mês de outubro deixou plasmada, no seu relatório de síntese, a necessidade de uma formação dos candidatos ao sacerdócio ministerial que não crie um ambiente artificial separado da vida normal dos fiéis. Precisamos de seminários que formem pastores e não clérigos!

sexta-feira, novembro 10, 2023

Olha que Deus castiga

Quando a mãe, uma jovem dos seus trinta anos, disse ao filho rebelde de oito anos que, se ele não se portasse bem, Deus o castigava, não me contive. A catequista do filho contara-lhe como ele se comportara mal na catequese, e aquela mãe solicita achou que a melhor pressão era invocar o castigo de Deus. Creio que o disse sem pensar e tal como já o ouviu muitas vezes desde pequena. Mas assim é dificílimo que as crianças aprendam a gostar de Deus. Mais lhe terão medo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta Igreja é uma treta"

quarta-feira, novembro 08, 2023

orfandade [poema 376]

a menina recortava a seara, ceifando o tempo, 
longe se encontrava de viver ao colo 
aquela que tanto almejava, para 
crescer 
 
a menina soluçava enquanto pulava 
de monte em monte, desnorte 
entre os primeiros tempos das chuvas e as noites 
de inverno, à procura, sem sorte, 
daquela que dá à luz 
a vida 
 
ai menina, menina, que à força cresces, para ser 
essa mãe que tanto, mas tanto
procuras

domingo, novembro 05, 2023

As mulheres no sínodo

A XVI Assembleia do Sínodo dos Bispos, ocorrida entre 4 e 29 de outubro deste ano de 2023, teve substanciais novidades em relação às anteriores assembleias. A inclusão de mulheres, ainda por cima com direito a voto, foi uma das mais notáveis. Dos 365 participantes, 54 eram mulheres, todas elas com direito a voto. No entanto, quando, durante a assembleia, se falou do papel das mulheres na Igreja, a discussão foi renhida e, na hora das votações, foi a temática que obteve mais votos negativos, embora com os votos positivos necessários para ser aprovada. Dos 344 participantes presentes na congregação geral conclusiva, 69 foram desfavoráveis. Foi sobretudo o potencial acesso das mulheres ao ministério diaconal que causou dificuldades. Uns foram contrários, porque consideram estar em descontinuidade com a Tradição, e outros favoráveis, porque consideram ser um regresso a uma prática da Igreja das origens. 
Já manifestei publicamente que não me parece essencial a ordenação de mulheres, seja diaconal ou sacerdotal, assim como também não sou contra que se dê esse passo, pois uma das coisas que mais valorizo na Igreja que defendo é a comunhão de diferentes em pé de igualdade. O que me parece é que, às vezes, se reduz o assunto a uma questão de emancipação da mulher e isso, a meu ver, seria reduzir o assunto a questões secundárias. Assim como desejo que esta aspiração das mulheres ao sacerdócio ministerial não seja mais uma forma dissimulada de clericalismo, isto é, uma forma de as mulheres também terem acesso ao poder eclesiástico. Seria atacar o clericalismo com outro clericalismo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja das mulheres"

quinta-feira, novembro 02, 2023

Poderia ter sido mais moderado, padre

Diante do enigma e mistério da morte, estes dias de romagens ao cemitério, optei por ler aquela passagem em que Jesus diz ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’, e fazer alusão à diferença entre dia de ‘finados’, porque a palavra vem do latim ‘fine’ e aponta para o fim, e o dia de ‘fiéis defuntos’, porque a palavra defunto vem de ‘fungor’ e significa ‘cumprir’. Escolho a segunda para dizer que a vida dos que partiram ‘cumpriu-se’, chegou ao seu cumprimento aqui na terra peregrina e alcançou a eternidade. Por isso convido a fazer memória agradecida pelo dom da vida dos que amamos e já partiram. Agradecer por terem cumprido a sua missão. Agradecer mais ainda o dom das suas vidas nas nossas vidas. 
Mas ela não quer ouvir falar positivamente da morte. Não quer achar que as vidas se cumprem quando nós achamos que ainda nos fazem falta. E, por isso, no final, porque lhe custou a intensidade das palavras, veio dizer-me com amizade: o senhor padre poderia ter sido mais moderado. Viu o pai falecer há uns largos meses, mas o tempo insuficiente para fazer de conta que não lhe doi ou para atravessar a dor. Doi e fica-se na dor demasiado tempo. Ou fica demasiado tempo a fugir da dor. Vai serenando, mas não gosta de pensar que o pai realmente partiu. É como se, cada vez que pensa na realidade da partida, não quisesse pensar que é realidade. Disse ainda que me entendia, mas que achava que não devia ter falado como falei. Gostei da sua sinceridade. Contudo, ou a mensagem não passou tal como a idealizei, ou esta jovem é o claro fruto desta sociedade que tudo faz para esconder a dor ou evitar confrontar-se com ela.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Homilia para funerais ou fiéis defuntos"

domingo, outubro 29, 2023

Aprendemos a sinodalidade fazendo sinodalidade

Aos participantes da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos deste mês de outubro foi pedida discrição e que não relatassem para fora o que se passava dentro. Fiquei agradado com esta tentativa de evitar mexericos, embora se tenha de reconhecer que não seria possível evitá-los totalmente. Leio por aí artigos, comentários, notas de bastidores. Um destes textos chamou-me particular atenção porque falava de algumas tensões nas mesas dos participantes. Contava, por exemplo, que um bispo não aceitara ser fotografado ao lado de um padre com quem tivera acesas discussões. Outro bispo, que fazia de secretário numa das mesas, ao dar conta da observação atenta de um padre por cima do seu ombro, ameaçara com expulsá-lo da sala. Atitudes que demonstram que o mais importante deste sínodo não são os resultados mas a experiência. Na Igreja não estamos treinados para nos escutarmos em pé de igualdade, a igualdade fundamental do baptismo. Como era expectável, o mesmo texto informava que os participantes da assembleia reconheciam que os leigos presentes eram os mais versáteis na prática da sinodalidade. Não me admira que tenha sido difícil sobretudo aos que mais estão habituados a mandar e a não sentirem o exercício do contraditório. O sínodo ainda não terminou, mas esta assembleia deu um passo sinodal porque, na verdade, nós aprendemos a sinodalidade, fazendo sinodalidade.

A PROPÓSITO OU A DESPORPÓSITO: "Clericalidade da Igreja"

quinta-feira, outubro 26, 2023

‘chão mi de mani’

O castiço ocorreu novamente numa das minhas missas, por sinal num dos momentos de maior silêncio. Era também uma sexta-feira, dia da semana em que a Rádio Comercial faz um programa que habilita um dos participantes inscritos a receber uma quantia avultada de dinheiro se, ao receber o desconhecido telefonema da rádio, responder ‘show me the money’, na tradução evidente ao português de ‘chão mi de mani’. Pois no fatídico momento de silêncio não é que toca um telefone e se ouve uma senhora a dizer ‘Quem fala?’ E ao alucinado do padre só veio à ideia que um dia destes ainda alguém no meio da missa há-de atender o telefone e dizer, alto e bom som, ‘chão mi de mani’. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Quem canta, seu mal espanta"

segunda-feira, outubro 23, 2023

terra errada [poema 375]

junto as minhas lágrimas salgadas, ao mar 
salgado pelo teu corpo imberbe.
fumamos pela mesma boca o cachimbo da paz 
que não mora perto nem subiu a barcaça 
 
o vento não amaina, mesmo quando para 
e voltamos a chorar de mãos dadas, para tentar 
salvar a alma do teu corpo que o mar engoliu: 
são as lágrimas de ter vindo ao mundo 
na terra errada. 
 
Mais de 400 migrantes morreram ao tentar atravessar o mar Mediterrâneo desde o início de 2023

sexta-feira, outubro 20, 2023

choro a terra [poema 374]

choro terra, 
com a tua terra nas mãos.
e em cada lágrima de terra, amasso pão 
que havemos de comer juntos, em redor 
do lume, na primavera 
 
choro barro, 
depois de ter chorado terra.
e em cada gota que me desliza no peito 
moldo a casa onde havemos de morar, 
a terra

choro, e não sei que choro 
sei apenas que choro com olhos de chorar, 
na tua terra de barro 
choro 
 
terra santa, 07.10.2023

terça-feira, outubro 17, 2023

Um sínodo ‘redondo’

Nunca antes um Sínodo dos Bispos no Vaticano viu cardeais, bispos, padres, leigos, incluídas mulheres, reunidos em mesas redondas para discutir, ouvir, reflectir em conjunto e discernir o futuro da Igreja. As sessões plenárias dos anteriores sínodos decorriam num anfiteatro, com a mesa da presidência, num palco, voltada para o público que estava disposto em filas, de acordo com a respectiva posição na hierarquia. Na Assembleia Sinodal que está a decorrer em Roma, os participantes, sem distinções hierárquicas, encontram-se, olhos nos olhos, em pequenos grupos, sentados em mesas redondas. Todos podem falar dentro destes pequenos grupos e são livres de fazer apresentações escritas ao secretariado. Foi muito interessante ver nesta assembleia sinodal o Papa Francisco sentado à volta de uma destas mesas redondas. O ‘redondo’ explica melhor a comunhão que devia viver a nossa Igreja que é de todos. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Papa que faz hoje anos"

terça-feira, outubro 10, 2023

A minha expectativa do sínodo

Quando em 10 de outubro de 2021 o Papa Francisco abriu o sínodo sobre a sinodalidade, ninguém tinha a certeza do seu alcance. Sabia-se que seria algo importante na Igreja, ao menos, pela sua duração e pelas etapas estrategicamente propostas: local, continental e universal. As expectativas atingiram de imediato os chamados progressistas e conservadores dentro da Igreja. Os primeiros, entusiasmados, a pensar que se iriam mudar muitas regras e leis, e os segundos, preocupados, a pensar exactamente no mesmo. Que o sínodo é importante, atesta-o o facto de, entretanto, o Papa ter decidido prolongar em mais um ano a sua duração e em promover duas assembleias sinodais. Os temas que a comunicação gosta de badalar são capa. Os jornalistas não perdem a oportunidade para insistir na ordenação de mulheres, a bênção de casais LGBTQIA+, a alteração do celibato, entre outros assuntos sensíveis similares. Muita atenção se tem centrado nestes assuntos, na expectativa do que poderá vir a suceder. 
Desde outubro de 2021 que tenho acompanhado com atenção este processo. Foi-me dada a oportunidade de liderar algumas reflexões e pronunciamentos. Vou lendo o que o Papa vai dizendo, assim como alguns teólogos que aprecio. Acompanho as notícias. Rezo a Deus pelos bons frutos de tudo o que está a ser feito. Rezo bastante. Mas rezo sobretudo a pedir ao Senhor Deus que ajude os cristãos, todos eles, sem exclusão, a perceber, de uma vez por todas, que a Igreja somos todos nós. Se este sínodo apenas tivesse servido para isto, eu já ficava muito satisfeito. Todos na Igreja temos igual dignidade e missão. O que difere é o modo como o fazemos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Clericalidade da Igreja"

quinta-feira, outubro 05, 2023

entrar na igreja

Uma catequista perguntou aos seus meninos do primeiro ano se conheciam como era uma igreja. Era uma pergunta de retórica, como se costuma dizer, porque estava convencida de que as respostas daqueles meninos que haviam entrado na catequese, pela primeira vez, seriam todas positivas. No meio da confusão natural destes miúdos e dos olhos arregalados daqueles que diziam que sabiam mais ou menos como era, um deles respondeu que nunca tinha entrado numa igreja. Simples, directo e genuíno. E a catequista ficou sem palavras. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os Paulitos de hoje"

segunda-feira, outubro 02, 2023

A Igreja que também é do Papa

Fala-se bastante, por estes tempos, na Igreja do Papa Francisco. Mas eu não consigo ficar indiferente a estas abordagens e às muitas expressões que se usam, quase como se houvesse uma Igreja de Francisco, tal como houve uma de Bento XVI e outra de João Paulo II. Como se os papas fizessem Igrejas à sua medida. A Igreja não é propriamente dos papas. A Igreja é de Cristo. Quando muito, poder-se-ia afirmar que a Igreja é de todos e de cada um de nós, na medida em que a Igreja somos nós. E nesse sentido também é do Papa, seja ele qual for. Entendo o uso desta linguagem, mas não deixo de me inquietar com ela. E tem sido insistente o uso dos chavões eclesiológicos para falar da Igreja dos tempos de Francisco. Ouvem-se, lêem-se, vêem-se, sentem-se. Todos os que tentamos estar actualizados e que tentamos viver uma vida cristã comprometida seguramente já nos apercebemos que a Igreja, segundo o que se vai ouvindo, tem de ser sinodal, missionária, inclusiva, em saída, aberta, laical, samaritana, ministerial, inculturada, intercultural, profética, simples. São palavras muito acertadas para falar da Igreja de Cristo, tal como se conhece desde o início do cristianismo. Gosto especialmente que o Papa Francisco no-lo recorde e se esforce para que a Igreja de Cristo se expresse e se viva cada vez mais deste modo. Mas também temos a obrigação de lembrar que esta não é propriamente a Igreja de Francisco. É a Igreja de todos nós. Ou melhor, é a Igreja de Cristo. É a Igreja... que também é do Papa.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja dos 'chineses'"

sexta-feira, setembro 29, 2023

re-clamação [poema 373]

ainda hoje te reclamo o sangue 
disseste que seria azul e às vezes verde,
como o céu e a terra em tempo eterno 
de acalmia 
 
disseste que seria um rio, e n’ele eu 
encontraria o mar nas suas margens
 
fui confundido pela palavra que ouvi 
e tu só disseste porque eu pedi 
 
vem com a lança e abraça-me com ela 
no peito desenha uma estrada em forma de cruz 
e o meu sangue será tão confundido como eu 
Será confundido com o teu

terça-feira, setembro 26, 2023

contemplar [poema 372]

não sei falar do campo, nem como se escreve 
pinto-o de cores, com flores, isso sei inventar 
porque basta estar atento 
ao teu olhar 
 
também não sei os nomes das flores, mas as cores 
pinto-as como se fossem os meus amores 
a dançar 
 
falta-me o salto do olhar pelo que desconheço 
mas imagino, pois sei imaginar 
e me fico para perpetuamente 
te contemplar

quarta-feira, setembro 20, 2023

A generosidade dos pobres

Esteve em Roma o tempo suficiente para conhecer algumas ruas de cor e alguns dos seus habitantes. Naturalmente que ia algumas vezes à Praça de São Pedro. Ali perto, encontrava sempre um casal sem-abrigo, ele sentado numa cadeira de rodas, ela sentada a seu lado, muitas vezes a fazer tricô. Saudavam-no sempre que passava. Buongiorno, padre. Reconheciam-no no meio dos transeuntes, porque ele também os saudava. Uma manhã, ao passar junto deles, a senhora pediu-lhe uma ajuda diferente da moedinha habitual. Que ajudasse o marido a levantar-se do seu cobertor estendido no chão e o colocasse na sua cadeira de rodas. Nem o cheiro do descuido o impediu de se dispor prontamente a levantá-lo e a ajustá-lo na cadeira. No final, delicada e muito agradecida, a senhora perguntou-lhe se aceitava um café, que ela teria todo o gosto em oferecer-lho.
 

sexta-feira, setembro 15, 2023

O padre das onze missas ao domingo

Tenho um colega e amigo que vive no outro lado do mapa, numas terras que o Papa Francisco chamaria de ‘periferias’. Desde o tempo dos estudos teológicos na universidade que, de vez em quando, trocamos umas palavras por telefone. Na segunda-feira pela manhã o Lucas estava cansado. Na véspera, no domingo, celebrara onze missas. Começara pelas seis da madrugada e terminara ao final da tarde. E falava-me disto como se fosse o mais natural. Não faz praticamente mais nada nos domingos. Não entendo como consegue. E não acredito que estas onze missas não sejam a correr, com homilias brevíssimas e com o cansaço a arrastar-se nas palavras e nos gestos. Dizia-me que não podia ser de outro modo. As pessoas exigem. As pessoas precisam. Lembrei-lhe o Código de Direito Canónico que ele estudara na universidade e ele respondeu-me com uma respiração prolongada. Lucas, falo-te do que conheço pelas minhas bandas. Se tivéssemos levado a peito, há muito, a norma canónica quanto ao limite de missas, já tínhamos percebido que há muito mais Igreja para além das missas, já tínhamos mais reorganizada a nossa vida pastoral, já tínhamos investido noutros ministérios, já tínhamos ensaiado novos caminhos para sair de uma encruzilhada cada vez mais encruzilhada.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Ser padre ou ser Igreja?"

segunda-feira, setembro 11, 2023

a igreja cheia de gatos

Não saberia dizer quantos gatos vão à missa, mas sei que são muitos pelo ‘bichanar’ que se escuta naquela igreja durante quase toda a missa. São vozes de fundo de gente que gosta de rezar o que o padre está a rezar. Sabem a missa de cor, e tentam acompanhar em voz baixa, mas o suficientemente audível. Algumas delas têm o terço na mão e vão passando as contas. São ecos de oração bsch bsch bschee. E por mais que o padre da freguesia lembre que a eucaristia é feita de diálogos entre o presidente da celebração e os demais celebrantes ou que na eucaristia não se deve rezar o tercinho, elas continuam a fazer bsch bsch bsche... Ora o senhor padre, que é muito compreensivo mas risoteiro ao mesmo tempo, um dia destes interrompeu a missa para as escutar. Elas calaram-se assim que deram pelo silêncio. E o senhor padre lá explicou novamente que esses ruídos de fundo eram mais do tempo das missas em latim, quando não se entendia nada do que o padre dizia, mas que agora já não devia ser assim. A não ser que também não entendessem nada do que ele dizia. E na verdade, das duas uma: ou não entendiam mesmo ou então eram surdas. Porque mal o padre terminou a explicação, os gatos continuaram a ser chamados: bsch bsch bsche...

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me desumano"

segunda-feira, setembro 04, 2023

Vinha apenas para se casar.

Muito querida e simpática. Ele também, mas mais discreto. Ou mais calado. Encontraram-se com o padre para combinar os últimos retoques da cerimónia do seu casamento. Ela olhando de frente e ele de soslaio. Ela atrevida e corajosa e ele meio envergonhado. Senhor padre, queremos pedir-lhe um favor. Durante a cerimónia não pergunte quantos filhos queremos ter. É que, embora em tom mais ou menos de brincadeira, já o ouvimos perguntar a uns noivos quantos pretendiam ter, e como nós não pretendemos ter nenhum, gostaríamos de não ter de responder a isso publicamente. O noivo pareceu-me ter vontade de a interromper para dizer que ela é que não queria ter filhos. No entanto, mudou somente o olhar de soslaio para ela. Ela é que vestia calças, como se costuma dizer. O padre prometeu que não perguntava. Também lhes fez considerações sobre o significado de um amor fecundo. Mas ela não quis ouvir. Vinha apenas para se casar.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Mais um Manuel e uma Maria vão casar pela Igreja"

quinta-feira, agosto 31, 2023

a igreja dos mortos

Ela dizia-lhe que, por amor de Deus, o casamento dela não poderia ser realizado na igreja paroquial. Poderia ser em qualquer igreja ou capela da paróquia, menos ali. Até poderia ser na rua, mas não ali. Estava fora de questão. O padre, que apenas a escutava e acolhia com atenção, nunca lhe dissera que o casamento tinha de ser na igreja paroquial. Ela é que se adiantava a dizer que queria assim e ponto final. E sem que o padre lhe perguntasse o que quer que fosse, ela acrescentou que associava aquela igreja aos mortos e isso causava-lhe muita dor. Finalmente, o padre, que fez questão de não fazer nenhum comentário, entendeu o motivo daquela empolgada noiva: como ela só costuma entrar na igreja paroquial para os funerais, é natural que ela associe aquela igreja aos mortos. A avaliar pelo número daqueles que só entram na igreja para funerais, é bem provável que muita mais gente pense como ela.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Outra promessa esquisita"

terça-feira, agosto 29, 2023

nós [poema 371]

quando lhe afaguei o rosto, coube-me no coração 
uma mão cheia de rosto por inteiro que era, 
no mesmo instante, eu 

quando os olhos se tocaram, acendeu-se uma vela 
dentro da pele que é o sítio das velas mais vivas, 
no mesmo instante, eu 

quando o lábio se desprendeu e voou na sua direcção 
desenhando um anel, que somos os dois ou nós, 
no mesmo instante, sou eu

sábado, agosto 26, 2023

A paróquia das moscas

É conveniente referir que perto da igreja está um curral. Talvez isso justifique que a maioria das criaturas que vai à missa sejam as moscas. E há épocas festivas para elas, nomeadamente quando vem o estio. Costumam ir em muito maior número que os paroquianos que é comum designar de pessoas. Para cada paroquiano destes que vai à missa corresponde para aí umas quatro ou cinco dúzias de moscas. E se as portas estiverem escancaradas, como o Papa Francisco tem pedido, a proporção aumenta exponencialmente. Foi assim um dia destes, ao ponto de quase não conseguir abrir a boca para a consagração, com medo de que, em vez de sair a Palavra do Senhor, entrasse ou saísse mosca. A solução, certamente para alegria dos paroquianos que é comum designar de pessoas, foi despachar a coisa, passe a expressão. Nos finalmentes, concluída a bênção final, não resisti a despedir-me com um ide em paz e que as moscas vos acompanhem. O ideal é que cada um leve algumas dúzias delas para as amestrar em casa. Naturalmente que o pessoal se riu e esbracejou, ainda que o esbracejar já fizesse parte de quase toda a cerimónia para espantar as moscas. Estais a ver - disse ainda - se não vêm as pessoas à missa, vêm ao menos as moscas.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Será que os animais vão para o céu?"

terça-feira, agosto 22, 2023

todos, todos, todos

O Papa Francisco tem este dom dos chavões. Frases que ficam a tinir nos ouvidos e facilmente se repetem em qualquer circunstância. Até parece que aprendeu bem uma das regras modernas da comunicação. E assim fez nas diferentes comunicações durante a JMJ em Lisboa. Podia citar uns poucos desses chavões, mas um dos que fez mais eco na boca de muitos dos habituais críticos, contra-críticos, comentadores de bancada, escritores de verbo de encher, opinion maker’s e influencer’s foi o do “todos, todos, todos”. Não se conseguem contar pelos dedos todos os que se esforçaram a tentar clarificar, interpretar e até meditar o que significavam tamanhas palavras. Grande hermenêutica. Só faltou alguém se lembrar que o Papa queria dizer “todes” em vez de todos. Muitas vezes me veio à ideia este “todes”. Então é que era um Papa fixe. Mas vamos lá falar a sério, meus amigos. Eu não percebi como é que um chavão que apenas repete aquilo que já se sabe do tão grande amor de Deus, que não exclui ninguém, que ama a todos sem distinção e que, como se percebe na cruz, enviou o Seu filho ao mundo porque quer salvar todos sem excepção, é motivo para tanta tinta e tantas opiniões e contra-opiniões. E agora sou eu que faço hermenêutica de chico-esperto. O que o Papa quis foi deixar claro, mais uma vez, que Deus ama sem medida todos e todos têm lugar no Seu coração. Afinal é isso que qualquer missionário deve dizer e o Papa não é mais que uma missão aqui na terra. E já agora, convinha que TODOS percebêssemos que também nós somos ou devemos ser uma missão aqui na terra.

A PROPÓSITO OUN A DESPROPÓSITO: "Qual é o limite para amar a Deus?"

sexta-feira, agosto 18, 2023

Não sei que dizer da JMJ

Ainda hoje estremeço ao recordar a Carminho a cantar na vigília da JMJ e o silêncio de um milhão e meio de pessoas, sobretudo jovens, diante do Santíssimo. Muito deles de joelhos. Um silêncio que foi um grito. Tenho também no coração as ruas de Lisboa cheias de alegria, de cânticos, de vivas e de muita partilha. Um entusiasmo que foi certeza de uma paz possível. A via-sacra fez-me chorar quase do princípio ao fim. Não fui o único. Quando, no final da mesma, eu e os jovens do grupo nos olhámos de lágrimas nos rostos, demos um abraço colectivo com sabor a eternidade. Foi muito bom. Sinto-me orgulhoso do meu país e da minha Igreja. Pese embora alguns pequenos ou grandes senãos, Lisboa ficou no mapa do mundo e da fé. As palavras não chegam para descrever este tanto. Participei com um grupo de jovens da paróquia e seguramente que, no meio dos imensos cansaços e quilómetros a pé, retemperámos forças. Afinal a fé ainda entusiasma. Afinal a Igreja que tem sido tão criticada é uma Igreja viva. Não é uma Igreja cansada, como se tem ouvido dizer. É apenas uma Igreja a precisar de voltar continuamente à Primavera. Não sei muito mais que dizer da JMJ. Não sei mesmo. E sei que o que disser não será nada de especial, pois não sei dizer as palavras bonitas que muitos comentadores e críticos sabem dizer. O que posso dizer é que ainda estou em modo JMJ e não quero esquecer cada segundo vivido dentro desta peregrinação. E se a pandemia e muitas outras adversidades têm atingido fortemente a Igreja, a JMJ a mim mostrou-me que o mundo tem futuro e que, dentro dele, a fé sempre será um presente. Presente como "agora" e presente como "prenda". Mostrou-me igualmente que esta geração, que muitos temos como individualista e que vive nas redes sociais, também sabe estar aberta aos outros e à realidade transcendente. A ver vamos o que o futuro nos diz ainda desta JMJ, com os frutos que cada um levou para suas casas, seus ambientes, suas comunidades. A ver vamos como continua a JMJ.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Papa nas Jornadas Mundiais da Juventude"

quinta-feira, agosto 10, 2023

casamentos quase civis

Saí agora da igreja, depois de concluído um casamento que me pareceu muito mais um casamento de conservatória de registo civil do que um casamento católico, embora saiba que as raízes da fé estavam, porventura, nalguns dos presentes. Saxofone à entrada com músicas que não tinham nada a ver. Nenhum grupo de animação musical, a não ser este senhor que tocou à entrada do noivo um tema, outro à entrada das damas de honor, outro à entrada dos meninos das alianças e outro à entrada da noiva. Nada de litúrgico ou de mensagem religiosa. Leituras a correr, cerimónia a correr, tudo a correr que à saída se esperava outro grande arraial com música de circunstância, foguetes e o habitual arroz em quantidade. Drone à mistura. Flores pela passadeira, gritos e palmas a horas e a desoras. Quase toda a assembleia comungou, o que me levou a desconfiar pois não respondiam aos diálogos da celebração. O ritual fez-se. Cumpriu-se. Concluiu-se. No final assinámos os registos e pronto. Por mais correcto que eu tentasse ser ou por mais simpáticos e merecedores que fossem os noivos, quase tudo me lembrou o casamento pelo civil a que assisti já lá vão uns tempos. Se não fizermos algo para contrariar esta tendência, qualquer dia estas cerimónias não são mais do que uma cerimónia social na qual tanto dá estar um padre ou um conservador.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Um casamento que se chama civil"

sexta-feira, julho 28, 2023

Sou um privilegiado de Deus

Quando se fala pessoalmente da fé, corremos sempre o risco de não saber dizer a verdade dela, porque a verdadeira fé não tem medida nem peso nem forma. Embora muitas palavras e gestos a transpareçam, ela não tem palavras ou factos que a provem. E eu até tenho receio de dizer o que penso quando penso na minha fé. Contudo, faço esforço para ser autêntico com ela. Trato-a por tu, meio a medo ou com receio. Parece-me algo tão belo e tão inexplicável ao mesmo tempo, que tento encontrar as palavras certas e não sei se as encontro. Mas sei que sou um privilegiado de Deus na fé que tenho. Foi assim que o afirmei num encontro com jovens. Não sei se o pensaram, mas eu pensei pela cabeça deles que deveriam estar a pensar, do género, ‘olha-me este que se acha mais que os outros’. Por isso achei que devia explicar. O facto de ser padre e quase toda a minha vida girar à volta de Deus, com as celebrações que tenho de preparar, com as homilias que tenho de fazer, com os momentos de oração que tenho de proporcionar, com a reflexão que tenho de fazer, com os estudos e leituras que faço, com a entrada recorrente em espaços sagrados, a minha vida é um constante estar com Deus. Nisso sou um privilegiado. Creio que qualquer padre é um privilegiado. Porque os nossos afazeres, o nosso trabalho, é um constante estar com ou em Deus.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não sei o que é não ter emprego"

quarta-feira, julho 19, 2023

Catequese para miúdos sem fé

Não rezam e não vão à missa. Não sabem estar na missa. Não se confessam nem se sabem confessar. São capazes de comungar só porque os outros também vão comungar. Não sabem o que é a oração da via-sacra e sobre o terço têm uma vaga ideia. Só ouvem falar de Deus na catequese, quando conseguem ouvir a catequista no meio da barulheira e da distração. Não se lembram de Deus. Passam-se dias e dias sem que Deus venha ao pensamento. Pouco mais sabem que o nome de Jesus. Não entendem o que é o Espírito Santo e confundem Deus com Jesus. Sabem que Nossa Senhora é a mãe de Jesus e os pais já os levaram algumas vezes a Fátima. Não faltam à festa religiosa da terra. Mas são capazes de gozar com as beatas. Sabem da existência do Natal e da Páscoa. O primeiro talvez mais pelas prendas e o segundo talvez mais pelos ovos de chocolate. E ambos pelas férias. Ouviram falar de advento e de quaresma, mas são nomes estranhos. São capazes de gostar de algumas coisas que se fazem na catequese ou nas festas da mesma. Todos têm fotos da Primeira Comunhão e da Profissão de fé. A maioria aguenta-se até ao crisma para poder se padrinho. E, no meio disto tudo, os nossos catequistas, grande parte deles não tão bem preparados pedagogicamente como era necessário, lá vão tentando fazer uma catequese que, a maior parte das vezes, é mais escolar que kerigmática, é mais passar conhecimentos que alimentar e ajudar a crescer a fé. Sei que estou a escrever uma hipérbole, e sei que a fé é muito mais que celebrações, sacramentos, credos e doutrinas. Mas parece-me que temos promovido uma catequese a pensar que os miúdos têm fé e não proporcionamos experiências de fé. No fundo, temos fomentado uma catequese para miúdos sem fé que dificilmente a irão ter.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Queria saber como posso ter fé"

sexta-feira, julho 14, 2023

isto [poema 370]

entre o antes e o depois 
está este nada que já passou 
que era mas sempre foi, no passado 
ficou

terça-feira, julho 11, 2023

Doze funerais por semana

Doze funerais são os funerais que um colega amigo teve numa semana destas. Doze funerais são, no mínimo, trinta horas de trabalho doloroso, entre os minutos da celebração, do acompanhamento, da cerimónia no cemitério, da preparação da homilia, da viagem para as comunidades onde se realizam os funerais, e eventualmente de algum momento no velório ou no acompanhamento personalizado com os familiares. Acresce ainda a intensidade emocional de uma celebração de despedida. Doze funerais é quase uma semana de trabalho de um trabalhador comum. Acresce ainda a desorganização do que já estava organizado na vida ministerial do padre. Doze funerais são doze oportunidades de encontro com o Senhor através do limite da vida e da dor. Mas doze funerais também são o cansaço dos padres e a morte das paróquias.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha avozinha"

sexta-feira, julho 07, 2023

O caminho da fé nunca está terminado!

A sala estava ocupada pelos jovens da paróquia que se tinham inscrito para as jornadas mundiais da juventude. Tratava-se do primeiro encontro para prepararmos a nossa participação. A conversa foi muito informal e aberta. Sem estereótipos. Falámos da expectativa para as jornadas e do estado da nossa fé. Todos usaram da palavra. Uns mais à-vontade, outros mais a medo. Creio, no entanto, que todos foram sinceros. E ao fazermos um ponto da situação da nossa fé, numa escala de 0 a 10, eu, pessoalmente, não consegui ir além de um 8. E todos ficaram admirados com o padre, pois achavam que ele só podia autoavaliar-se com um 10. Respondi-lhes, com sinceridade, que uma fé de 10 é uma fé que para por ali, e que eu não queria parar a minha fé. Que estava convencido de ter uma fé forte, intensa. Mas que não era uma fé que não precisasse de andar mais. Tal como o amor, a fé precisa de constantemente se alimentar, aprofundar e amadurecer. O caminho da fé nunca está terminado!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Ano da Fé que bem precisamos"

terça-feira, junho 20, 2023

O confrontar da sinodalidade

Está de moda falar de sinodalidade, embora muitas vezes, na prática, ainda seja apenas uma sinodalidade vertical. A ideia é que se ouçam todos. Ou os que quiserem ser escutados. Que todos tenham voz. Ou os que quiserem usá-la. Mas ainda assim, quem manda, quem decide, continua a ser quem está na posição superior. Fazem assim os agentes pastorais nas suas actividades, os párocos nas suas paróquias, os bispos nas suas dioceses. Até sobre o Papa actual, Francisco, que tem sido um grande impulsionador da sinodalidade, fico com a sensação de que a prática sinodal ainda é demasiado vertical. Uma coisa é ouvir o que cada um quiser dizer, outra coisa a confrontação positiva e construtiva entre todos. Uma coisa é dizer só porque apetece e outra um dizer que é fruto da maturidade do assunto. Por isso, enquanto não houver leigos adultos, com uma maturidade eclesial capaz de dizer as coisas, de as pensar e de as confrontar, e enquanto os clérigos não estiverem de verdade abertos a uma discussão construtiva e capacitados para se sentirem confrontados, a Igreja continuará a ser clerical. Neste contexto, a existir alguma nesga de sinodalidade, continuará a ser vertical. Como bem refere Enzo Bianchi, não basta falar, é preciso escutar. Mas também não basta escutar, porque é preciso confrontar-se, fazer discussão dos assuntos, para se caminhar verdadeiramente juntos. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nós e vós"

quinta-feira, junho 15, 2023

uma confissão do arco da velha

Uma senhora foi-se confessar e levou consigo, para desabafar, um problema que a afligia muito. Pediu ao senhor padre que não contasse a ninguém. Claro que não era necessário o pedido, porque a confissão é absolutamente sigilosa. O segredo da confissão é inviolável. No entanto, a senhora fez questão de o salientar. Aliás, repetiu várias vezes a recomendação. E o senhor padre cumpriu, como é seu dever natural. Contudo, passados uns tempos – não muitos, por sinal – o mesmo padre ouve uma outra pessoa falar do problema da tal senhora, faz-se de desentendido, e ainda tem de ouvir um ‘O senhor padre sabe, claro que sabe, não se faça de desapercebido, pois ela conta a toda a gente que o senhor padre sabe porque lhe contou’. Ele há cada uma! 
 
A PROPOSITO OU A DESPROPÓSITO: "Um café com sabor a Deus"

sexta-feira, junho 09, 2023

jeito de amar sem jeito

Às vezes falta-me a coragem de te olhar olhos nos olhos, Senhor. Tu sabes tudo, tu sabes que te amo, embora o meu amor seja tão pequeno quanto o tamanho da minha pequenez diante de ti. Sabes que ele é pequeno, mas é sincero. Sai de mim como sou. E volta a mim para sair sempre em tua busca. Quando me deito nem sempre te entrego a minha noite. Quando me levanto nem sempre te entrego o meu dia. Praticamente só me lembro de ti quando me cruzo com as tuas coisas e nisso agradeço-te o meu sacerdócio, porque me faz pensar em ti nas muitas coisas que tenho de fazer em cada dia. Tu sabes tudo, tu sabes que te amo deste jeito sem jeito. Deste jeito mal organizado e pouco racional. Mas também creio que é por isso que ainda aqui estou, mesmo sem a coragem de te olhar olhos nos olhos, com receio de ficar preso ao teu olhar sem fim.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como te amo, Senhor?"

terça-feira, junho 06, 2023

A humanidade dos funerais

Quanto mais tempo estamos numa comunidade, mais conhecemos as pessoas e mais estabelecemos pontos de amizade, o que é bom, mas também aumenta a dificuldade em presidir aos funerais e despedirmo-nos de pessoas que se tornaram nossas amigas. Justifico assim as primeiras lágrimas que vieram ao meu rosto quando, ao chegar à igreja para fazer o funeral de um paroquiano amigo, agarrei numa das pontas do caixão, como que querendo abraçar quem estava repousado dentro dele. Na sacristia, antes de me paramentar, respirei fundo várias vezes, mas não as suficientes para começar a eucaristia de olhar aberto e limpo. Embarguei a voz inúmeras vezes. Reconheço que o cansaço tem-se acumulado em mim e isso ainda nos torna mais frágeis e sensíveis. O amigo de quem nos despedíamos já não conseguia falar nos últimos tempos, porque o cancro se alojara na boca. Apenas trocávamos mensagens. Por isso, na homilia achei que devia partilhar uma mensagem que recebera dele no segundo domingo de Páscoa, em resposta a um áudio que lhe enviara com uma reflexão a propósito do nosso amigo Tomé, o discípulo que costumamos associar à dúvida, mas que é um grande exemplo de fé. Este meu amigo dizia, na mensagem, “Sou o Tomé que acredita mesmo e que está resignado que o meu futuro próximo depende de Deus. Se Ele acha que a minha vida terrena está a chegar ao fim então é porque já percorri o caminho que me estava destinado. Hei-de prosseguir a minha vida nova junto de Deus onde vou esperar pelos meus familiares e amigos”. Lembro que me inclinei diante daquelas palavras fortes que acabara de ler. Ditas com a verdade da fé, eram fabulosas. Não podiam ser ditas com resignação sem mais. Eram ditas com a verdade do coração, a verdade que brota da certeza da ressurreição. Na altura, fiquei muito contente e inclinei-me diante daquelas palavras tão cheias de Deus. Mas agora que estas se concretizavam estava com a voz embargada, com o coração apertado e a sentir o peso da responsabilidade oportuna de testemunhar a minha fé na ressurreição. Reconheço que o fiz na fragilidade e na dor, que se calhar é a melhor forma ou a mais autêntica. Fi-lo, misturando a alegria agradecida, que brota da certeza da ressurreição, com a tristeza que a saudade traz consigo. Quando terminámos as cerimónias, e já ao sair do cemitério, banhado em lágrimas e sem conseguir levantar os olhos do chão diante das centenas de pessoas presentes, uma paroquiana amiga veio ao meu encalço e disse mais ou menos ‘Então, senhor padre. O senhor é sempre tão forte’, e eu respondi ‘nem sempre’. E agradeci a Deus a minha humanidade! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os funerais fazem-me dor de estômago"

sábado, junho 03, 2023

o padre tem de ser um homem de relação

A fé define-se como uma relação com Deus através de Cristo com a força do Espírito Santo, mesmo num mundo de frágeis relações e de redes virtuais. A fé vive-se no encontro e na relação. Por isso o padre tem de ser um homem de relação. E é paradoxal, por um lado, porque os padres trabalham cada vez mais sozinhos e, por outro, não estão a ser formados em relações. Têm vários anos de formação no seminário, fazem cursos de teologia e de pastoral, mas falta-lhes a formação das relações. O risco é tornamo-nos homens de relações, mas que vivem a relacionalidade de forma muito solitária e autorreferencial. Às vezes, de forma desequilibrada. Fala-se muito de sinodalidade e de comunhão, elaboram-se muitos documentos a falar disto, mas depois, na prática, os padres estão cada vez mais isolados e ensimesmados.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre que morava sozinho"

quinta-feira, junho 01, 2023

pedra atirada [poema 369]

és uma pedra arremessada do bolso que me pesa 
e és pisada pelo caminho na minha cabeça, 
eu diria calcada e nela transformada 
a cabeça de pedra, 
atirada

segunda-feira, maio 29, 2023

o paramento vermelho

A Eucaristia da solenidade de Pentecostes ia iniciar-se quando o pequeno acólito André, no início do cortejo, se voltou para trás e me perguntou porque é que tinha vestido um paramento vermelho. Não é costume, senhor padre. Pois não, não é muito hábito, respondi. Que te parece, André? E ele respondeu prontamente, com a alegria estampada nos ombros por causa dos seus gostos clubísticos: só se for por causa do Benfica ter ganho! A risada foi grande, mesmo depois de lhe ter explicado o verdadeiro motivo para usar esta cor litúrgica. E o resto da comunidade acabou por se rir igualmente quando também perguntei, do altar para baixo, se sabiam porque tinha vestido um paramento vermelho e lhes contei o que se passara um minuto antes. Viva o Benfica! Disse o André. E não é que até Jesus é o verbo “encarnado”!


A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sou do Benfica"

sábado, maio 27, 2023

espiritualidade como caminho a andar

A sociedade secularizada em que vivemos reclama dos padres uma maior formação. Contudo, a formação que os padres mais necessitam é a formação espiritual. Precisamos saber os nomes das coisas, mas os desígnios das coisas só a intimidade com Deus no-los ajuda a vislumbrar. Ou melhor, a desvelar. Porque ficará sempre muito por encontrar. E é bom que assim seja, para que a nossa vida seja um eterno buscar. Um padre que busca não é sempre um padre que encontra, mas é um padre que caminha para encontrar.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O assunto era padres"

quarta-feira, maio 24, 2023

a estrada do padre

Não conheço nenhuma estrada que tenha o nome de um padre. Nem um beco. Mas escolhi este título para falar dos quilómetros do padre. Há uns cinquenta anos, o padre tinha um quilómetro ou dois de estrada. Às vezes mais e tardava-se muito tempo na mula ou no cavalo para chegar de uma paróquia a outra. Era pároco de uma ou duas paróquias, quando muito três. Hoje o padre tem muitos quilómetros pela frente, muitas curvas e contracurvas. Muitas paróquias. E se antes o padre sabia os nomes das pessoas e intervinha nos nomes que os pais davam às crianças no baptismo, hoje o padre não consegue saber os nomes de todos. A estrada alargou-se. A vida alargou-se. O ministério alargou-se. O cansaço alargou-se. 
Não é, por isso, de estranhar que muitos dos meus colegas façam do automóvel um escritório. Tudo aparece na bagageira ou no banco de trás. Livros, rituais, sacos de hóstias por consagrar, uma alva e uma estola. Uma pasta com documentos. Livros no meio da confusão. E, às vezes, uma peça de fruta ou um tupperwere com comida. E muitas garrafas de água vazias, que se vão acumulando como tapetes. E como a maioria do tempo gasto no automóvel é um tempo solitário, não vem mal ao mundo nem pressa para ter o “escritório” arrumado. 
O padre moderno passa muito tempo na estrada. A vida transformou-se numa corrida de automóvel mesmo quando está fora dele. A vida humana, em geral, e a do padre, em particular, tem-se tornado numa corrida, com ou sem automóvel. Tão apressada e tão preenchida de coisas e afazeres que, muitas vezes, o mais importante fica escondido ou apenas se vê a correr do lado de fora da janela, como aquela margem da estrada que nunca acaba, que está sempre lá, mas que não temos tempo para olhar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O buraco"

sábado, maio 20, 2023

Os abraços que falam

Tinha tido um problema no coração há uns anos e recuperara entretanto. Nada fazia prever que, de um momento para o outro, tivesse um pequeno derrame cerebral. Mas teve. Foi tudo muito rápido. Encontramo-nos antes da missa, mas já na igreja. Olhei-o e perguntei como fora aquilo. Abraçou-se a mim. Apertou-me quanto pôde. E ficámos assim. Tinha muita vontade em me abraçar para me dizer como se sentia. E não disse mais nada para lá do abraço que disse tudo. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Uma confissão ou um abraço?"

quarta-feira, maio 17, 2023

vida das pedras [poema 368]

apetecem-me as pedras 
 
quisera tropeçar nelas para ser lançado 
como pássaro que não controla seu voo, 
essa dor que dói mais que a dor do tropeço 
e da pedra no princípio do voo 
 
apetecem-me as pedras 
 
quisera umas em cima das outras, 
como muros dos apriscos ou casas 
dos sentimentos 
esse baú que guarda a possibilidade 
de vida 
 
de pedras

sábado, maio 13, 2023

ir ao funeral sem ir

Terminara a cerimónia do funeral na igreja. Após as encomendações, saímos para fora, eu e os ministros concelebrantes, os homens das insígnias e da cruz e os que tinham estado na celebração. Alguns cantavam, outros faziam silêncio. Mas as várias dezenas de pessoas que tinham permanecido na rua durante toda a cerimónia não pararam os seus afazeres de boca. Era como se estivessem ali, mas não estivessem no momento que se vivia. Como se não estivessem na cerimónia de despedida de uma pessoa que tinha falecido. Parecia nitidamente uma feira sem tendas, comes e bebes e negócios. Nem quando o caixão saiu da igreja na mão dos homens que o carregavam, os seus amigos que tinham vindo despedir-se pararam a barulheira e as conversas mais típicas de café. Acho que nem deram conta. Alguns não saíram do seu lugar de conversa e uma grande maioria não entrou no cemitério. Tinham ido apenas cumprir o preceito de ir ao funeral sem ir. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha avozinha"

terça-feira, maio 09, 2023

thaddaeus [poema 367]

escolhi não ter rosto para saberes de mim 
sem as letras que plantei como flores 
que morreram no jardim 
 
cobrei o teu madeiro como tábuas de marfim 
esculpido para morrer ao teu lado 
entre as chamas que há em mim 
 
sabes que o meu rosto é do mundo, mas só teu 
a queimar, coração ao peito no meu peito 
sempre teu