terça-feira, agosto 31, 2021

homens inacabados [poema 334]

dizem-me que existem homens inacabados e que morreram assim 
como aves que não levantam voo ou peixes que não sabem nadar 
 
são homens de barrigas proeminentes, sentados sobre o que são 
montes de desperdícios ou descartes, são descartados como 
flores fora do jardim ou perfumes sem odor, são homens 
que nunca nascem de verdade, são só corpos a viver 
 
Ah, quem me dera voltar a ser homem inacabado 
para um dia poder ser

sábado, agosto 28, 2021

A missa do Centro de Preparação para o Matrimónio, vulgo CPM

Navegava, há dias, pela net, à procura de uns dados sobre o CPM, Centro de Preparação para o Matrimónio, quando, às tantas, numa página, dei por mim a ler comentários de noivos que já tinham participado ou iam participar no CPM. Um deles chamou-me particularmente a atenção, porque dizia: Nós já fizemos, até gostámos, mas depois tivemos de ir à missa. 
Notou-se bem o tom de fastio, mesmo sem ser assinalado. Porque o “tivemos de ir à missa” surge depois do “até gostámos, mas”. Ou seja, duas pessoas que decidem casar pela Igreja, provavelmente depois de exigirem ao padre missa no casamento - mas isso sou eu que posso estar a exagerar -, e depois ficam algo descontentes ou esmorecidos no seu contentamento, porque no final do encontro de preparação para o seu matrimónio católico tiveram de ir à missa. 
 

terça-feira, agosto 24, 2021

Uma Igreja sem fé

A generalidade dos baptizados que fazemos são pedidos por e para gente sem fé. Os casamentos igual. A catequese da infância e adolescência está estruturada como se os seus destinatários fossem pessoas com fé. Promovemos acções pastorais e eventos religiosos para pessoas que não têm fé e que apenas vão precisando da Igreja para necessidades pessoais ligadas a sacramentos, festas e funerais como eventos sócio-culturais arreigados. Gastamo-nos numa acção eclesial para gente sem fé, convencidos de que têm fé. Ou pelo menos estruturamos e executamos a nossa acção pastoral e cultual como se fosse para pessoas com fé. E as consequências estão à vista. Os agentes pastorais, a começar pelos sacerdotes, desgastam-se a fazer actividades inconsequentes e que, em muitas ocasiões, fomentam problemas e conflitos que doem a quem se dedica com zelo e que, às vezes, ainda afastam mais do encontro com Cristo. 
Uma Igreja constituída maioritariamente por gente sem fé que se agrega, mais ou menos, a ela como instituição sócio-cultural não tem futuro. E se a nossa Igreja, que queremos mais missionária, não se focar especialmente no primeiro anúncio, essa experiência de encontro com Cristo que leva à conversão, será, dentro em breve, uma Igreja mais vazia ainda. Vazia sobretudo da fé. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Gostava de esvaziar a minha igreja"

sábado, agosto 21, 2021

o inverno [poema 333]

e o inverno chegou no meio da primavera 
as flores pararam sem secar, os animais deixaram de se ouvir 
falavam para dentro, tudo falava para dentro, mesmo as casas 
de pedra encavalitada e encavalitadas umas nas outras 
não houve outono nesse ano de inverno 
 
o tempo que nasce dentro de cada um 
 
… gosto de começar os poemas como se viessem de trás e terminassem no início, em mim. Eles crescem onde começa o que não tem início, e terminam no que não tem fim.

quarta-feira, agosto 18, 2021

Deus ama-me como sou

Escreve esta frase até te cansares de escrever ou o papel acabar ou a tinta se gastar. Na verdade, ninguém quer saber da tua história senão Ele. Ou Ele acima de todos os outros. Porque só sabe de nós quem nos ama e nós existimos enquanto somos amados. Mesmo que a morte nos separe, ficamos no coração de quem nos ama. E Deus ama-nos muito para além da morte. O seu amor é mais que eterno, porque quanto mais vive na eternidade, mais intenso vive. Ninguém te conhece como Ele. Sem filtros. Na verdade toda. Inteira. Na manhã que cresce e no dia que anoitece. E mesmo assim, ama-te. Porque o amor nasce nele e o amor não ama porque se merece. 
Escreve a frase. Gasta-te nela. Escreve-a como se não precisasses de escrever mais nada. Dorme nela. E quando já não tiveres força no braço para a escrever, deixa que ela seja escrita pelo teu coração e ali gravada. É que esta é a verdade que mais sentido dá a tudo o que vives e quiseres viver. Deus ama-me como sou. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Como te amo, Senhor?" ou "A fissura do braço de Cristo"

sábado, agosto 14, 2021

os padres santos XI

Conheço muitos padres cansados. Parecem a maioria. Acordam cansados porque já estão cansados de se levantar. Porque acham sempre que a vida lhes deve alguma coisa. E toda a gente deve algo. E toda a Igreja deve algo. E esgotam-se nesse cansaço. No cansaço das correrias que ainda nem sequer fizeram. Nas muitas viagens que fazem com os pensamentos. São os padres para quem qualquer dedo apontado é em forma de cruz. Qualquer problema é insolúvel. Qualquer coisa que façam tem um peso que não sabem carregar. E vivem no limite da depressão ou do burnout. Vivem nessa tensão, como uma corda pronta a rebentar. Ou a enforcar. São santos nessa fragilidade de viverem esgotados por Deus ou por sua causa ou por causas que parecem relacionadas com Deus. 
 

quarta-feira, agosto 11, 2021

A geração digital e a fé sem interesse

Durante largos anos, a Igreja, como “sociedade perfeita”, colocava o acento na firmeza e rigor doutrinal para dar credibilidade a si mesma. Nos últimos anos, porém, surgiu uma visão no sentido oposto, uma visão mais atenta aos sinais dos tempos. Por isso tem havido um esforço, e bem, para melhorar e modernizar a comunicação. No entanto, estamos a dirigir-nos para uma comunicação sem real comunicação. 
As novas gerações vivem na internet. Vivem nas redes sociais, visualizam influencer’s e gastam o tempo a receber comunicação que seleccionam nos seus interesses. E se nunca houve uma comunicação tão global como agora, também nunca houve tanta dificuldade em nos fazermos escutar. Tudo parece ruido. E no meio do ruído, até o que não o é, parece somente um ruído. 
É certo que hoje não se conseguiria chegar às novas gerações se a nossa comunicação fosse apenas como era antigamente. O problema, porém, persiste, porque o digital não cria interesse se este não existe. E para existir interesse, este tem de se suscitar no meio de milhares de interesses que se confundem. É bastante difícil transmitir a fé em tempos de uma confusão global de comunicações maioritariamente virtuais. A fé é sobretudo relacional, e no mundo virtual o relacional é mais fictício que verdadeiro lugar de afectos. 
Parece-me que a Igreja, neste sentido e como um todo, tem-se vindo a deparar com grandes dificuldades em fazer passar uma mensagem que não seja light, porque quer agradar, ou enfadonha, porque demasiado agreste. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Amizades especiais"

segunda-feira, agosto 09, 2021

Sara [poema 332]

Envelheci a ver o tempo passar sem amanhã 
A loucura chegou arrastada pelo meu querer 
A luta contra os deuses em meu redor 
Sem mim 
 
Não sei que nome dar ao meu lamento 
O menino cresce nas veias e no tormento 
A espera não nasce, não é semeada 
 
Ai que dor me consome por fora e por dentro 
Pelo amor de deus que se esqueceu 
E o ai volta cada vez que resolve ir 
Debruçada, agarrada, colada em mim 
 
Até que o sorriso de Deus veio e ficou 

Gen 18 e 20

sexta-feira, agosto 06, 2021

amizades e aniversários

Completei uma linda idade que não quero para aqui chamar. A idade vem por si mesma e por isso não é preciso chamá-la. Entretanto, o meu aniversário de há um dia ou dois ainda me leva a receber mensagens de pessoas que querem manifestar a sua amizade, porém envergonhadas por terem deixado passar a data. E eu sinto-me na vontade genuína de tranquilizar as pessoas, pois estou certo de que, na verdade, a amizade não acontece porque as pessoas se lembram do nosso aniversário, mas porque se lembram de nós. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha avozinha"

quarta-feira, agosto 04, 2021

Homens do caminho

Quem não caminha está parado. E quem está parado, fica-se. Não passa dali. Em contrapartida, quem não quer estagnar, não pode deixar de caminhar. Quem vive a caminhar, nunca tem o caminho feito. Tem sempre caminho para andar. E como todos somos seres inacabados, somos, por natureza, caminhantes. Ou deveríamos ser. 
Nós, os padres, somos caminhantes, tanto por natureza como por missão. Por natureza, porque somos iguais aos outros no caminhar. Na necessidade de fazer o caminho. Por missão, porque o Senhor nos convida a ajudar a caminhar, a auxiliar quem caminha. Não me refiro àquele tipo de caminhante que acha que deve ir à frente para ensinar o caminho. Pois ele também não sabe o caminho. Sabe que o caminho é Cristo. Mas não sabe como percorrê-lo sem o percorrer. Por isso ele tanto poderá ir à frente, como atrás, como simplesmente ao lado. O ir é já ajudar a caminhar. Se Jesus nos convidou a tomar o seu jugo, como quem carrega connosco a nossa vida, também quem continua a sua missão deve pegar na canga e carregar quem caminha ao seu lado. 
Nós, os padres, somos essencialmente, ou seja, por essência, homens do caminho. 
 
revisitar Lc 24 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O António caído" ou "Padres que não sabem que caminham"

domingo, agosto 01, 2021

pecadora [poema 321]

vai e não voltes como a onda 
vai, leva os cabelos e a escova 
os perfumes e o teu sabor 
 
irei com a tua mágoa, e a história de saberes 
que um dia vieste como onda 
e foste como mar 
 
Lc 7, 36-50