segunda-feira, outubro 31, 2011

O buraco

Não tenho palavras. Quero encontrar adjectivos para este meu estar, mas não encontro. Quero usar adjectivos suaves ou que me tranquilizem, mas não encontro. Nem sei se me encontro a mim mesmo. Sei apenas que aqui estou, neste meu novo estar. Sinto-me cigano da minha vida, sem casa e sem alimento, sem amigos em quem confiar, a percorrer quilómetros de carro para caminhos que desconheço. Vou e venho, como se ser padre fosse um ir e vir. Como se ser padre fosse um fazer coisas, porque têm de ser feitas. A estrada tem um buraco. Vejo os carros passar-lhe ao lado, como o levita e o sacerdote ao ver a doença prostrada no chão. Também a mim me apetece passar de lado. Mas tenho de tapar o buraco da estrada para ela se tornar aquilo que é, uma estrada. Queria dar um nome à estrada. Mas não sei que nome dar-lhe. Espero, Senhor, nesta minha oração, que me ouças e me dês a pá que preciso para tapar este buraco. Um buraco na minha missão, um buraco na minha vida que não quero que seja da minha fé.

quinta-feira, outubro 20, 2011

Chegou a hora!

(In)completa 2
Autoria Elsa Sequeira


Seriam umas dez da manhã. Estava sentado à secretária, descalço. De manhã ando descalço dos pés. Às vezes ando descalço da vida. Não era o caso. Rezava as Laudes. Mas quando a campainha tocou, senti-me mais descalço ainda. Desprevenido. O toque fora muito subtil, mas sonoro o suficiente. O tempo de me calçar foi insuficiente para pensar quem estará à porta. Não me penteei, que estava penteado. Não são horas de direcção espiritual, desabafos ou parecido. Enquanto atravessei o corredor, pensei nalguma santa com um saco de pêssegos. Encostei a mão à chave e a cabeça à porta. Abri com um sorriso de acolhimento. Depressa se transformou em sorriso de admiração e surpresa. Ou constrangimento. O meu bispo.
Era o meu bispo que estava ali. O assunto é sério, ia eu pensando. Ninguém aparece a estas horas se não for coisa séria, que se passa? Demorei tanto tempo nos pensamentos, que ele teve que me perguntar se não o convidava a entrar. E rimos, como que para desanuviar o ambiente.
Deu-me então a conhecer a razão da sua vinda: Padre x, chegou a hora de partires, para outras gentes, vais para outra paróquia, vai ser bom… O meu bispo continuou a falar, penso eu, mas eu deixei de o ouvir. Um turbilhão de sentimentos inundou-me. O silêncio fez-se presente. Agarrei-me à cadeira, como que não querendo ir, mas, no mesmo instante levantei-me e com firmeza disse: Senhor estou aqui, envia-me.

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E aqui está a minha escolha. Os motivos fui buscá-los mais àquilo que estou a viver que àquilo que gostaria mesmo de ver escrito. Gostei muito do final. E peço a Deus que continue a dar-me essa firmeza. De entre os textos que conduzistes para esta perspectiva da saída de uma paróquia achei este o mais directo, e gostei dele por não ter grandes rodeios e por usar claramente uma linguagem escrita parecida à minha. No que se refere aos textos que conduziram o sentido do conteúdo para o blogue, posso garantir-vos que adorei. Se não estivesse de mudança de missão paroquial, quase de certeza que a minha opção iria para esses textos. Pena também pelo último texto que aparece sem autor e sem título, pois achei-lhe imensa piada.
Abraço amigo a todos os que contribuíram para a (In)completa 2

quinta-feira, outubro 13, 2011

três Instante: a Lurdes

A Lurdes teve um cancro e, diz ela, foi o senhor padre que me mostrou que não devia desistir de viver. Foi o sorriso do senhor padre que me ajudou a sorrir. Por isso a Lurdes não se queria despedir de mim. E quando se foi despedir, disse-me que não se queria despedir do meu sorriso. E que chorara várias semanas seguidas. E que rezara para que eu não partisse. E que até houve refeições em que não conseguiu comer. Não entendia. Não queria entender. Mas ontem, senhor padre, fiquei mais serena. Ela nem sabe dizer serena. Disse qualquer coisa parecida, mas entendi-a. Os anos na paróquia ajudam a entender o que as pessoas querem dizer, mesmo sem o dizerem. Fiquei mais serena, senhor padre. E sabe porquê? Porque entendi que na paróquia para onde o senhor vai deve haver também muitas outras pessoas que precisam do seu sorriso. Limpou duas lágrimas. Deu-me um beijo suave na mão. Despediu-se. Limpei duas lágrimas. Aconcheguei-lhe a mão que agarrara a minha e, simplesmente, sorri.

terça-feira, outubro 11, 2011

dois Instante: o João

O João é um petiz de palmo e meio que eu vi nascer e crescer até ser esse petiz que nos entra no coração e não sai. A família é gente boa. Fazem parte da minha gente boa. O João aprendeu com eles a ser bom e quando vai à missa procura discretamente o meu sorriso. Há uns anos, ainda teria uns três, saiu-se com esta para os pais. O Padre é meu amigo. A partir daquela ocasião, tive a certeza que aquele meu paroquiano era meu paroquiano à séria. Os padres devem gostar dos seus paroquianos. Definitivamente, os padres gostam dos seus paroquianos. Eu gosto e gostava. Por isso gostava dos que se chamam João e dos que se chamam Josés ou Manueis ou Marias ou o que seja, desde que sejam meus paroquianos. E todo este meu raciocínio vem à baila, porque apesar de ter deixado de ser pároco de uma série de Josés e Manueis e Marias ou o que seja, eu continuo a gostar deles. Continuo a gostar do João. Este João que, dois dias depois de me ter ouvido anunciar na paróquia que o Senhor precisava de mim noutra missão, a meio do jantar, em sua casa, de forma solene, pediu licença aos pais e ao mano para dizer uma coisa muito importante. Pai, é importante o que eu quero dizer. Diz lá, meu filho, disse o pai do João. Temos de comprar uma casa nova na paróquia X. Abro entre parênteses para dizer que é assim que quero chamar a minha nova paróquia. E continuou o João. Temos de comprar lá uma casa para irmos para ao pé do nosso padre. A mãe contou-me com as lágrimas nos olhos. Eu ouvi com as lágrimas nos olhos. E escrevo com as lágrimas nos olhos. Mas amanhã, quando estiver na paróquia X, vou lembrar-me que há sempre um João em todas as paróquias.