sexta-feira, dezembro 21, 2007

O pior dia do ano

De preto. Muito preto. Inclusive uns óculos bem pretos, de sol. Diz que é para proteger os olhos do frio. Dir-se-ia que é para se sentir isolada no seu mundo, um mundo que transforma em escuro porque não vê mais ninguém. Tem feitio difícil. Mas é boa moça, esta viúva de oitenta e muitos anos. Vive só. Tem uma energia que se desconhece em muito mais novos. Mas vive só. Tem um filho, mas está na América. Aqui, por perto, só tem os vizinhos. Vai vivendo. Aqui, acolá, nesta vizinha, naquela, uma conversa aqui, uma desconversa ali. Vai vivendo. Diz que poucas vezes está só. Mas ontem estivemos à conversa. Normalíssima. O tempo, a vida, as maleitas. Desejei-lhe um bom dia de Natal. E ela, no memo jeito despachado mas um pouco mais abatido. É o pior dia do ano. Não quis acreditar no que ouvia. Mesmo para quem não acredita, este é dos maiores dias do ano, dos mais alegres e esperados. Festa, família, prendas, muita cor e alegria. Por isso não arredei pé sem perceber. Porquê? E ela respondeu dizendo que era o dia de todo o ano em que se sentia mais sozinha. Sozinha porque as vizinhas estavam com os seus e não podiam estar para ela. Que era normal. Sozinha porque o seu filho não podia vir. Era normal nele, como em muitos outros filhos de hoje. Sozinha porque toda a gente estava acompanhada e fazia-se notar mais a sua solidão. Sozinha porque estava mesmo sozinha e nesse dia dava mais conta de estar sozinha. Por isso não fazia refeição. Deitava-se cedo. Para não dar conta durante muito tempo. Falei-lhe da presença viva de Jesus na sua vida. Falei-lhe que Ele nasceu sobretudo para ela. Afaguei-lhe o rosto. Ela afagou o rosto na minha mão. Mas não adiantou muito. Está bem, senhor padre, eu sei. Mas o dia de Natal não deixa de ser o pior dia do ano.
Aproveito para desejar a todos a presença viva de Jesus no coração, que Ele nasça todos os dias em cada um. Desculpem não escrever há muito, nem ler emails, nem responder... Estou sem net há quase um mês. Vim mesmo só porque estas datas são muito importantes e este espaço. para o bem e para o mal, vai fazer 2 anos!
BOM NATAL!

quarta-feira, novembro 28, 2007

O que eu espero de um padre

Tudo isto vem a propósito de um indivíduo que veio ter comigo, a casa, a desoras, para me pedir um favor. Queria que lhe desse um jeito. Um baptizado àquelas horas naquele dia. Já tinha tudo marcado. Imagino que tenha vindo o marido e não a esposa porque os maridos são mais incisivos quando querem alguma coisa. Não berram nem gritam, mas insinuam os ombros e a altura ou largura. Primeiro dediquei-me a explicar-lhe algumas normas. Ó padre, não tenho muito tempo. Queria que passasse à frente. Esperava a minha resposta e não os meus ensinamentos. Como a maioria dos cristãos. Quando lhe respondi que não podia aceder ao seu pedido, levantam-se os ombros, alarga-se a cintura, estica-se a altura. Não foram muitas as palavras, porque eu estiquei o sorriso e quando este se estica o outro fica desarmado. Era assim que Jesus fazia. Já imaginava, padre. Vou procurar outro, disse. Eu esperava que o senhor dissesse sim, que é para isso que os padres servem. Um bom padre não diz Não. Essa também me fez lembrar Jesus, disse-lhe já ele virava costas. Entrei em casa, sentei-me e a propósito perguntei-me. E se fosse eu? O que eu esperaria de um padre? Que ele me anunciasse a palavra de Deus e não a sua própria palavra. Que fosse modesto e vivesse com simplicidade. Que soubesse calar-se quando outros falam e soubesse falar quando os outros ficam mudos. Que rezasse, fosse profundo e me fizesse participar dessa profundidade para fugir ao perigo da superficialidade. Que tivesse tempo, como eu sinto que devia ter, agora e amanhã, sem datas marcadas no calendário. Fosse a garantia do tempo que Deus tem para mim. Que se fizesse perguntas e tivesse dúvidas. Os que não têm dúvidas ou questões também não têm respostas e não as podem conceder aos outros. Decidi ficar por aqui com os pensamentos pelo medo de descobrir muitas mais coisas que fossem demais para as minhas costas. Estas já pesam. Eu esperaria muito do sacerdote.

sexta-feira, novembro 23, 2007

Sapatinho de cinderela

Bateram à porta quase a meia noite. Sapatinho da cinderela. E dizia há dias um entendido na televisão que nós, os padres, devíamos estar sempre disponíveis. Mas para quê e para quem? E o bom senso? E a nossa vida? Eu sei que o tempo de Deus não é o nosso tempo e que o tempo dos padres devia ser mais parecido com o Seu tempo. Porém, também o tempo das pessoas devia ser como o de Deus quando precisam do padre.
Queriam que lhes resolvesse um assunto que elas não queriam resolver junto de quem podiam porque não se davam bem. Não se falavam. Nem lembravam o nome do seu pároco, mas criticavam-no e à sua igreja. Que não era delas a igreja. Também não era eu o seu pároco, mas doeu-me como se de mim se tratasse. A filha deixara de ir à Catequese porque a tinham reprovado por faltas. Com a Catequista que tinha, também que ia lá fazer, diziam. Eu estive quase sempre calado nos meus pensamentos. Com a mãe que tem também que ia lá fazer! Toca a desbobinar coisas e palavreado contra as pessoas. Foi uma chuvada valente e eu sem o guarda-chuva à mão. Não foi preciso muito para deixarem a minha porta. Bastou que lhes falasse que deviam falar com as pessoas devidas, que deviam dialogar, esclarecer os mal-entendidos, que deviam perdoar. A esta palavra começaram a descer a escada. Nunca, padre. Nunca. Desculpe lá o incómodo. Vamos bater a outra porta.
E se Jesus lhes batesse também à porta

quinta-feira, novembro 15, 2007

A pequena grande Sara

Veja o que me aconteceu, padre. Os seus olhos estavam vermelhos. Notava-se que tinha estado a chorar. Vinha da Capela do Santíssimo. Tenho de contar-lhe, padre. Sentámo-nos. Tentei esconder a minha preocupação. Trata-se de uma mulher sofrida. Viúva. Nova. Trabalhadora. Imaginei o pior. Com este estado do país bem poderia ter perdido o emprego. Ontem a Sara fez anos, padre. A Sara tem oito anitos. Ainda conheceu o pai, mas já não se lembra das suas feições porque ele partiu há mais de cinco. O que terá feito desta vez a Sara, perguntei-me. Era minha acólita. Apesar de irrequieta, está sempre atenta na missa. Não é propriamente uma garota desvairada.
A história que a mãe contou começou há uns meses. À noite a Sara costuma ajoelhar-se à beira da cama para falar com Jesus. Aprendeu na missa que rezar é falar com o Jesus que se ama. Eu costumo dizer que rezar é um diálogo de amor entre dois namorados, nós e Deus. Uma conversa que pode ser com palavras feitas, com frases comuns e com olhares. Ela optava por simplesmente falar. Contava a mãe que a Sara queria uma bicicleta. Como ela não podia comprar-lha, decidira pedir a quem fosse mais poderoso que a mãe, isto é, Jesus. A mãe tinha-a apanhado a pedir a Jesus que lhe oferecesse uma bicicleta no dia de anos. E contava-me que lhe tinha faltado a coragem para a demover do pedido. Depois notou que a conversa era quase sempre a mesma todas as noites e começou a ficar preocupada. E ontem, padre, ontem não houve bicicleta. Eu bem tentei poupar. Mas não houve. E à noite lá estava ela de bruços sobre a cama. Eu pensei que ela chorava. Abeirei-me, afaguei-lhe a cabeça e perguntei: Estás zangada com Jesus por Ele não te ter respondido, minha filha? E sabe que respondeu ela? Disse-me que não e que Ele lhe tinha respondido. Que lhe tinha dito que não. Que não podia dar-lhe a bicicleta. Fiquei perdida, padre. Já agradeci a Deus. Não agradeci a bicicleta que ela queria, mas a filha que me deu. Tinha de contar-lhe isto, porque tinha de o contar a alguém e a alguém que me percebesse, que percebesse a minha alegria. Afinal o padre está sempre a dizer que é bom pedir na oração, mas que esta não deve ser um negócio com Deus. De facto é bom pedir, porque significa reconhecer as nossas limitações, os nossos limites e confiar n’Aquele a quem pedimos. Mas não podem ser fórmulas mágicas de compra e negócio com Deus. E eu que pensava vir por aí mais um problema para resolver, recebi uma alegria para me encher de Deus. Depois que a mãe me deixou e logo que tive oportunidade, dei um beijo enorme e repenicado à Sarita, que estava por ali perto a tratar da sua alva.

terça-feira, outubro 30, 2007

A palavra difícil

Telefonou. Não me conhece. Apenas distingue a minha voz porque já me ligou algumas vezes. Sempre que se sente resvalar pela vida. Atendi sem forças, porque há uns dias que elas também me passam ao lado. Mas atendi que ela pode precisar mais que eu. Conversa puxa conversa, vai dizendo que está melhor, que a quimio tem feito alguma coisa, que o lado esquerdo da paralisia melhorou, que está cansada, mas tem tentado, conseguido alguma esperança. Agradecia-me alguns telefonemas, enquanto eu falava de forças, forças que devemos procurar dentro de nós. Ela recordou-me que um dia lhe dissera que devemos encontrar forças dentro de nós, no Deus que existe dentro de nós. Que bem lá no fundo está sempre essa força à espera de vir ao nosso encontro. Eu sorri porque já não me recordava dessas palavras. Precisava delas também para mim. Isto de ser padre não é só para os outros. É essencialmente para nós. Mas neste vai e vem de palavras, cumprimentos, agradecimentos e abraços, ela acrescentou. É difícil, mas estou a tentar. Não gostei. Não gostei da palavra difícil. Ela existe, mas não deve ser pensada. E falei-lhe exactamente este sentir. Sabe para que serve a palavra difícil? Para nos fazer fortes. Se tudo fosse fácil à nossa volta, tornar-nos-íamos fracos, débeis. O difícil é algo que, bem vistas as coisas, é bom para o homem se tornar forte. É como subir uma montanha e no final sentir que estamos mais preparados para subir outras montanhas. ´
Nem vale a pena contar o que falámos depois. Basta dizer que nessa noite dormi mais descansado e acordei mais bem humorado.

sexta-feira, outubro 26, 2007

Reza-se como se ama

Numa das minhas paróquias reza-se todos os dias o Rosário comunitariamente. É um costume que encontrei e que alimentei. Ou deixei que alimentassem. Vale a pena rezar. O Ti Joaquim vai algumas vezes. Mas ontem estava descontente com a vida. Encontrei-o sentado no jardim. Passava a correr como já é hábito em mim. Um hábito pouco saudável e solidário. No entanto ontem estacionei junto do Ti Joaquim. Estacionou-me ele. Ó padre, queria fazer-lhe uma pergunta. E atirou logo que não estava para me fazer perder tempo. São palavras dele. Mas ressentiram-me. É um dos meus defeitos. Procurar não perder tempo. No Domingo o padre falou que devemos rezar sempre e sem desanimar, verdade ou não? Olhe que eu estava atento. Mas estar assim tantas horas a rezar porquê e para quê? Não será perder tempo também? Ele ouve-nos mesmo?
O Ti Joaquim tem idade para ser meu pai, ou quase meu avô. Olhe aquele casalito que vai além. Quem? Aqueles dois marmanjos? Sim, aquele par de namoraditos. Por acaso passavam também. Olhe como eles se gostam de olhar. Se pudessem, passavam assim o dia inteiro. Aproveitou para me dizer que isto já não era como antigamente. Insisti. Mas no seu tempo também não fazia tudo por tudo para estar com a sua Maria? Ui, padre, se fazia. Ficava à espera dela sair da fábrica. E já se perguntou porque é que perdia tanto tempo com ela? Porque é que queria estar sempre com ela? Ó padre, porque não podia passar sem ela. Mesmo às escondidas, a gente encontrava-se por aí. Nem falávamos. Mas ficávamos a olhar um para o outro. Nem sabe a falta que me tem feito! Lá está, digo eu. A oração é um diálogo entre duas pessoas que se amam e que não podem passar sem estar, desta forma, uma com a outra. Ao namoro entre nós e Deus chama-se rezar. Mais lhe digo. Reza-se como se ama. Por isso rezar, às vezes, não é mais do que abandonar-se ao Espírito. Estar ali escondido. Dizer coisas. Procurar-se. É uma questão de achar que sem falar com essa pessoa a vida não tem sentido.
Olhou-me às gargalhadas. E como quem aceitou bem o que ouviu, lá me disse: Vá lá, não perca mais tempo comigo. Se por acaso encontrar por aí o seu Amigo, dê-lhe cumprimentos meus.
Eu percebi as duas frases. Ó se percebi. É mesmo um homem sabido.

quarta-feira, outubro 24, 2007

sondagem_ " Qual o momento da Eucaristia que te prende mais a atenção ou que valorizas mais?”

Passados que vão mais de quase sete meses da última sondagem e 635 votos, chegou a hora (até ultrapassou) de avaliar a sondagem que estava no lado direito, no sidebar. A questão era:

Qual o momento da Eucaristia que te prende mais a atenção ou que valorizas mais?
E os resultados são:

1. Consagração _45%
2.
Homilia _18%
3.
Comunhão _17%
4. Animação Musical _5%
5.
Acção de Graças _ 4%
6.
Acto Penitencial _4%
7.
Leituras _4%
8. Outros _2%
9.
Animação Litúrgica
_1%
___________________________
pequenas considerações:
1. Não há maior alegria que perceber que a maioria dos meus peintentes percebe que o momento em que Jesus se torna real e presente na Eucaristia (CONSAGRAÇÃO) é o momento central da mesma. Por isso devíamos dedicar mais atenção a cada uma das palavras que são soletradas neste momento.
2. Supus que a HOMILIA competisse bastante com a Consagração, dado que há quem classifique a Eucaristia como boa ou má a partir da homilia que ouve.
Ao mesmo tempo, esta ordenação faz-me concluir na tão grande necessidade que os cristãos têm de formação e de intelecção da Palavra de Deus. E mais nos responsabiliza a nós, os sacerdotes. Este é momento que mais nos dá espaço à criatividade.
3. Aliada à Consagração, não me admira a terceira opção, a COMUNHÃO, pois é a ocasião em que a presença real de Cristo se partilha connosco e nos faz participantes dessa presença. Pessoalmente talvez a colocasse em segundo lugar.
4. Quero crer que a escolha da ANIMAÇÃO MUSICAL não seja motivada pelo espectáculo que possa proporcionar. Aliás costuma ser também um dos fundamentos habituais para classificar a eucaristia. É bom relembrar que é um acessório da Eucaristia. Mas é importante, sobretudo na medida em que provoca a participação mais activa dos leigos.
5. ACÇÃO DE GRAÇAS, ACTO PENITENCIAL, LEITURAS. Todos estes momentos são imprescindíveis na Eucaristia. Bom mesmo era que, ao fazermos esta sondagem, concluíssemos que cada momento é importante por si e que não se pode qualificar em comparação com outro. No entanto cada pessoa sente ou vive de maneira diferente cada um, e pode bem constatar-se alguma distinção entre eles.
6. É engraçado como a ANIMAÇÃO LITÚRGICA foi escolhida apenas por 9 pessoas. Fala-se tanto nesta animação pelas nossas paróquias e, afinal, não se lhe dá muita importância.
O resto da reflexão fica convosco.

Hoje surge nova sondagem. Porque não questionar-nos da forma como lidamos com a Palavra de Deus! Aí vai a pergunta:
Quantas vezes por mês abres a Bíblia para ler durante mais que 10 minutos?~

Se possível, dá também a conhecer o que seria desejável em termos pessoais ou relativamente a um bom cristão.

segunda-feira, outubro 22, 2007

O Padre que este sim é que é um padre

O Padre “que este sim é que é um padre” é um colega que há dias me foi substituir numa das eucaristias. Contaram-me uns tempos depois que as pessoas tinham gostado muito, porque os comentários eram do tipo Este sim é que é um padre. Nasceu para isto. Olha como ele fala. Olha como ele sorri. Olha como ele é diferente. Olha lá, vamos mudar de padre? Este comentário em forma de pergunta foi apenas meu. Fi-lo a quem me contava com alegria que tinha gostado muito do padre “que este sim é que é um padre”. Também senti que tinha direito a fazer um comentário. E fi-lo a sorrir. Não me incomodaram propriamente os comentários. Meteram-se comigo, só isso. Porque até faz bem ouvir falar bem de colegas. Já lhe dei os parabéns. Mas fez-me pensar. Naquilo que foi a minha entrada nalgumas paróquias. Naquilo que eram os comentários da altura. Este sim é que é um padre. Este é que fala mesmo bem. Nasceu para isto. Olha como ele sorri. E hoje, passados que vão uns anos, sou só o padre. Padre para aqui que agora preciso. Padre para ali que agora não preciso dele. Padre que falou bem porque gostei de ouvir. Padre que já não falou tão bem porque não me agradou o que ouvi. Padre que é porreiro porque comeu connosco e disse umas graçolas. Padre que é menos porreiro porque não anuiu com o que eu queria.
Mas o mais interessante, sobretudo naqueles que coabitam mais tempo connosco e caminham ao nosso lado, independentemente das opiniões e comentários, é a expressão O Nosso padre. O nosso padre isto, o nosso padre aquilo. Nunca tinha reflectido nisto. Mas é ou pode ser semelhante ao amor conjugal. Depois de vários anos casados, o que é mal na minha opinião, também já não se ouve muito ao casal dizer Eu amo-te. E porque será? Porque Já és meu. Já não me apetece dizer. Já não preciso dizer. Estás aqui. Convivo contigo. Com as tuas capacidades e virtudes. Com as tuas fraquezas e defeitos. És apenas o meu marido ou a minha esposa. O meu ou a minha. Agora o nosso. O nosso padre. Passou a paixão, e ficou o amor. Ou o hábito, quem sabe!

quarta-feira, outubro 17, 2007

Queres ficar à missa?

Vinham em par. Uma porque não era daqui e outra para a acompanhar junto do padre porque era daqui embora não soubesse ao certo quem era o padre. Dirigem-se primeiro ao sacristão, pois teria mais cara de ser ele. Depois apercebo-me e aproximo-me. Querem mandar celebrar uma missa, pois a estrangeira prometera mandar celebrar uma missa numa dita capela pelo marido que tinha morrido. Explico-lhe que não. Que mande celebrar na mesma intenção, mas no local em que eu celebro. Aceita. Vá lá, ao menos isso. Depois, sem mais conversas, saem as duas de braço. Ia começar a Eucaristia. Mas ainda deu para ouvir o diálogo estranho entre elas. Ficamos ainda uns minutinhos aqui, perguntava a primeira para a segunda. Queres ficar à missa?
Para qualquer cristão, a pergunta não teria grande sentido colocar-se. Mas afinal a eucaristia com a intenção delas não era aquela. Bem podiam vir noutra altura. Se não era naquela eucaristia que se queriam dirigir a Ele, porque haviam de se dirigir forçadas? Não ouvi a resposta porque foi dada bem baixo e eu não estava propriamente atento. Mas recordo que a que respondeu agarrou no braço da que perguntou e arrancaram dali. E recordo que não as vi por lá, na Eucaristia. Também não procurei encontrá-las. Mas pressenti, pelo mesmo motivo da pergunta que ouvira, qual teria sido a resposta.
Estas coisas deixam-me intrigado. Porque mandarão estas pessoas celebrar missas? Quais serão os verdadeiros motivos que as levam a fazê-lo? Como se chama uma fé que manda apenas celebrar missas e não as celebra?

quinta-feira, outubro 11, 2007

Uma Confissão uma lição

Ainda era seminarista, mas não esqueci mais. Foi uma lição.
Estava em Fátima e, como muitos outros, aproveitei para me confessar. Abundam padres em Fátima. Mas isso não vem ao caso. Pelo menos que sirvam para nos encontrarmos de novo com Deus através da Confissão. A sala das confissões tem fila preparada, confessionários preparados. Chegara a minha vez porque a luz verde tinha acendido para mim. Entrei. Ajoelhei. Não olhei o padre, que este é apenas o intermediário. Quem perdoa é Deus. Olhei Deus através do padre e inclinei-me para me recolher e para que os pecados a apresentar fossem mesmo os meus e os que mais me doíam. Feitas as orações prévias, comecei o desenrolar dos pecados. Quase como um desfiar do rosário. Não precisei dizer mais que dois ou três que me perturbavam para que o padre iniciasse um rol de perguntas. E isto? E aquilo? As perguntas eram mesmo daquelas que não se esperavam. Salvo erro, estava no último ano de Seminário e estas coisas já não eram novidade para mim. Porém, não abri mão. Deixei-o perguntar e, com ares de malvadez, respondi afirmativamente às suas perguntas. Que sim. Também tinha feito isto. E mais aquilo que o senhor padre não se lembrou e nem lhe passa pela cabeça.
Pequei. Pequei porque inventei pecados. Dos piores que me vieram à memória. Dos mais escabrosos. Ora digam lá se não tinha razão. Afinal, a pessoa que se confessa, se estiver verdadeiramente arrependida e porque custa assumir o nosso pecado perante outrem, não estará também sofrida? Não precisará que um padre, por melhor que seja a intenção, faça perguntas desmesuradas. Quando muito que as fizesse com medida e com a única intenção de ajudar o penitente.
Não gostei daquela confissão. E já ouvi muito boa gente que também não gostou da confissão a, b ou c, daquele padre que faz ou fez perguntas desmesuradas, exactamente porque desmesuradas, despropositadas e inconsequentes. Não entendo porque um padre precisa de saber mais coisas, quando Deus é que precisa de as sentir arrependidas. Por isso ainda pequei mais. Terminei a confissão dizendo que era sacerdote, o que aumentava – digo eu – a responsabilidade dos pecados, e que não achava justa aquela forma de apresentar a misericórdia de Deus. Levantei-me. Saí e coloquei-me de novo na fila. Quem me visse, diria que eu não estava bom. E não estava mesmo. Não quis ensinar nada àquele sacerdote. Mas não consegui evitar. Não sou propriamente santo.
Eu é que aprendi uma lição. Nunca fazer perguntas durante a confissão, a não ser que a pessoa peça, e restringir-me sempre àquilo que se pode chamar faltas de amor a Deus, ao próximo e a si mesmo.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Uma certa liberdade

Não vinha com o lenço preto e apertado a esconder as faces. Trazia o cabelo arranjado, lábios escurecidos pelo batom. Perfumada. Arejada. Ares de nova e de trabalhadora. Mas todo o rosto dava azo a imaginá-la com um lenço preto apertado, cabeça inclinada para a frente para esconder o rosto e para deixar apenas ver as pálpebras dos olhos. Mãos sem saber onde se colocar. Padre, não sei como ser mais perfeita. Eu bem tento. Cumpro ao máximo todos os preceitos. Sabia o que eram! Rezo. Mas tenho tanto medo que Deus não me salve. Dizem que Ele vê tudo e eu vivo com medo que ele me interprete mal, que Ele não goste do que faço e digo. Tenho medo de errar. Tenho medo dos castigos de Deus. Mas cumpro. Faço tudo o que me ensinaram que devo fazer.
Não usei a mão para lhe levantar a cabeça. Mas ela levantou-a. Porque faz, afinal tudo isso? Ó padre, porque Deus quer. Porque aprendi que tem de ser assim.
Só por isso? Retornei. Baixou de novo e cabeça. Posição inicial. E não chega, padre?
Foi quando lhe contei que Jesus morreu para nos libertar e não para nos oprimir ou condenar. Foi quando lhe expliquei que se a fé nos faz prisioneiros dos nossos actos, ela pode não ser verdadeira. Foi quando lhe falei que o cristão vive na liberdade e que por isso vive na alegria. E que o sermos cristãos nos faz felizes porque nos liberta de tudo, até da morte. E que tudo o que fazemos como cristãos deve ser consequência da nossa vida entregue a Deus e não como exigência de Deus para a nossa vida. E que Deus nos ama como somos e não como achamos que Ele gosta. E que a Páscoa liberta. E que se não somos livres na fé, então a nossa vida está aprisionada numa crença e não está fundada no Amor de Deus.
Disse ainda mais umas frases que queriam dizer exactamente o mesmo. Por isso não repito agora. Ela agradeceu. Não mudou a posição do rosto e da cabeça, mas disse que ia pensar.
Quando cheguei a casa, abri o armário onde está o espelho, inclinei também a cabeça levemente, e pensei. E eu? Será que eu sou livre na minha forma de ser padre?

quarta-feira, outubro 03, 2007

O lado de cá e o lado de lá da janela

Ultimamente tenho aprendido muita coisa. Afinal, um homem está sempre a aprender! Quando era seminarista, não entendia porque muitos padres se refugiavam no seu cantinho. Não davam améns a ninguém. Tornavam-se frios e distantes. Apareciam como quem tem toda a autoridade. Como a última palavra na paróquia. Apareciam como os donos do sagrado. Se por ventura comiam fora de casa, que fosse com gente que podia interessar. Achava que era um erro. Tinham de ser gente sofrida. Gente sem braços para amar. Só para o serviço e o zelo pastoral. Pensava eu que não devia ser nada saudável ficar por detrás de uma janela, fechada, a olhar para lá das nossas paredes. Hoje, fazendo a experiência, continuo a sentir que as janelas foram feitas para abrirem. E que as portas se inventaram para se poder sair e entrar consoante as necessidades. Mas, e há sempre um mas. Nem que seja para entender a perspectiva do outro. Mas a chuva cai lá fora. E molha. O sol bate fortemente e não se suporta. O vento agita como se nos arrastasse. Pode vir um carro e atropelar-nos. Não sei. Deste lado da janela não tenho de ouvir desaforos, faltas de compreensão. Não me sujeito tanto. Posso falar sozinho que ninguém me interpreta mal. Não tenho de ser ofendido. Não tenho de escutar o que dizem por lá das coisas que faço ou devia fazer ou entendem que devia ser. É mais esquisito, mas não dói tanto esta cruz. E pergunta um penitente. Porque dizes isso hoje? E respondo. Porque não consigo viver sem me dar realmente, sem sentir os outros, sem amar o próximo, sem conversar, conviver, brincar, rir com os outros, aproximar-me de quem precisa ou quem preciso, estar com os outros, ser eu próprio. Ser o padre, o amigo, o homem, o Cristo… O padre é apenas um padre. Mas é mais fácil fazer como aqueles que avistavam o mundo do lado de cá da janela. É esta a minha oração de hoje.

sábado, setembro 29, 2007

Como é que o stor aguenta?

A aula estava, como sempre, em rebuliço. Eram miúdos complicados, mas gostavam de aprender a vida. Demoravam a sentar nas cadeiras. Demoravam a assentar o silêncio. Porém, passados que fossem cinco minutos, prestavam atenção ao que eu falava. Só que mais não fosse, para me poderem confrontar e questionar. Para me medir o pulso. Hoje em dia os jovens são muito assim. Dispersos, mas com sede de perceber a sua vida. E no meio de uma situação normalíssima de uma aula de EMRC o Luís soltou descaradamente a pergunta. Ó stor, não lhe custa essa coisa do celibato? Como é que o stor aguenta? Não tinha absolutamente nada a ver com o assunto da aula. Mas respondi no segundo seguinte, como resposta à sua pergunta, que ainda era novo. Todos franziram as orelhas. Pois, por isso mesmo, stor, disse outro. O stor ainda é novo. Quando for velho é que vai ser mais difícil, acrescentei. Ó stor, retornou o Luís. Atão mas agora, que é novo, não será mais difícil?! Os olhos estavam todos à espera que explicasse. Não tinha sentido algum a minha afirmação. De novo é que a gente tem as hormonas aos saltos! Deixei que a sala parasse. Virei costas e escrevi no quadro, enquanto perseguiam o barulho do giz: Quando tivermos menos forças, será mais difícil encontrá-las.

quinta-feira, setembro 20, 2007

A chaveira

Eu já disse que os santinhos têm de vir para aqui, refilava comigo. Era a chaveira, termo inventado por mim para quem têm as chaves das capelas para mais ou menos tomar conta delas, dar uma visitinha de vez em quando, fazer uma limpeza aqui e outra ali. Moram perto da mesma e quase sempre encontram afinidades com ela. O pior é quando a afinidade se transforma em posse. É a fronteira entre a responsabilidade e o poder, o serviço e o uso. Acontece muito. Quero aqui as imagens, já disse. Elas tinham sido retiradas por motivos óbvios. Primeiro porque havia sido indicação do especialista de arte sacra que tinha recuperado o altar e as imagens, insinuando que a morada destas era desadequada. Segundo porque o Conselho Económico decidira levá-las para um local mais adequado. Bastava esta, desde que sensata. Perguntei-lhe com que autoridade fazia aquela exigência. Ia sorrindo e tentando que as palavras não fossem ofensivas. As delas também, reconheço. A senhora esforçava-se para não fazer alarido. Perguntei-lhe se eram dela as imagens. Se sabia que antes de ali estarem haviam estado noutro local. Roubaram-mas, repetia. Olhe que eu deixo de tomar conta da capela. Depois da exigência vem a chantagem. Depois da chantagem, muitas vezes, a desistência para que os outros não pensem que somos fracos. Não entro nessa. Respondo que eu não funciono dessa forma. Apesar dos esforços, os decibéis iam subindo. Havia gente por perto. Tínhamos acabado a Eucaristia. Alguns davam-me os parabéns, pois fazia anos de sacerdócio. O ambiente estava estranho, bom e pouco bom. Num dos poucos segundos de silêncio, esbocei um desejo a Deus. Livra-me rápido desta. Estás distraído? Logo hoje. Nem hoje.
Uma pequenita, contaram-me depois, estava atenta, muito atenta, à batalha das palavras e dos gestos da senhora. Eu explicava o papel das chaveiras quando, às tantas, vi uma mão pequenita levantar-se quase acima das ancas da senhora, insinuar no rosto um gesto de força, e zás que já levaste uma palmada. Para que se calasse e deixasse o senhor padre em paz. Quem estava atento riu à brava. Rodearam-me com as gargalhadas. Até a senhora riu. Deixámo-nos a seguir. Afinal Deus não estava distraído.
Pena, ou talvez não, que duas semanas depois a senhora tenha entregue, através do marido, a chave da capela.

quarta-feira, setembro 12, 2007

A Rosária

É o que se chama um ponto no sentido mais cortês que lhe conheço. Basta-me olhá-la, o seu rosto desmazelado mas honesto, e a vontade de sorrir surge espontânea. A última aconteceu antes da missa da semana. Estava apressado pelo relógio da pontualidade. Mas insistia na oração que me queria ensinar. Ensina orações a toda a gente. Percorre a vila de lés a lés com orações ou jaculatórias nos lábios, contam-me. Para cada ocasião tem uma. Na sua ingenuidade e simplicidade, aquela forma de dizer orações é a forma de se encontrar com Deus. Não me repugna, porque é genuína. Porque é verdadeira nesta forma de ser cristã. Custa-me aceitar, mas a Deus não deve custar. É uma forma engraçada de O amar. Não é hipócrita. Só é genuína. Noutra pessoa acharia uma hipocrisia tamanhas peregrinações de orações ditas para serem ditas ou ouvidas. E tem de ser, senhor padre. Está bem, diga lá. E vai uma enxurrada de palavras lindas dirigidas à virgem Maria. Gostei. Já não é a primeira vez que lhe peço para as escrever para a posteridade. Mas o castiço foi quando no meio da referida oração surge a palavra “penhores”. Ups, pensei. E ups perguntei: Sabe o significado dessa palavra? Não, senhor padre. Ensine-me. É que foi rir. Ela também riu. Então nem sabe o que está a dizer!? Mas é tão linda, senhor padre. Lá está a beleza das suas orações. São lindas porque são para serem ditas de forma linda. Um vaso também não se torna bonito porque as flores são bonitas, perfumadas ou coloridas. Depende de quem e do como se faz o arranjo das flores e de quem e do como se olha o vaso.
Não avançámos mais na conversa, que estava na hora da missa e o pessoal estava à espera. Mas enquanto me paramentava ia rindo à brava por debaixo da casula. Um dos acólitos ainda me perguntou se não encontrava o buraco da casula. Eu não conseguia era esquecer o rosto da Rosaria. E mais me lembrei daquela ocasião em que, aqui na paróquia andaram a fazer umas filmagens para um filme. Um dos actores vestia a pele de padre e uma batina. A Rosaria não perdeu tempo. Irrompeu no meio das filmagens para pedir um favorzinho ao senhor. Olhe, já que aqui está, não me podia confessar?

sexta-feira, setembro 07, 2007

De rabo para o ar

Fazia-se silêncio. Uns para me ouvir e outros para descansar da noite mal dormida. Os olhos na direcção do ambão, na minha direcção. Eu falava, falava, pregava. Já lá iam uns bons cinco minutos. A coxia estava desimpedida, como é normal. O fundo da Igreja repleto. Os bancos cheios. Mas tudo em silêncio. Agora imaginem o que é avistar, no meio deste cenário e deste silêncio, uma senhora dos seus setenta anos ajoelhar-se a meio e no meio da coxia depois de descalçar o chinelo para tentar acertar numa lagartixa que teimava em ouvir a homilia e que não sossegava, ao contrário das pessoas, percorrendo os espaços livres que lhe deixavam! E vai uma chinelada. E vai outra. Como a lagartixa insistia em fugir, a senhora coloca-se de gatas, rabo para o ar, e toca de gatinhar atrás da lagartixa batendo e batendo com o chinelo nas pedras da coxia. Do meio da coxia quase chegava ao cimo, nunca se perturbando com o aparato da situação. Parei. Poisei os olhos sobre ela. Poisámos todos. O silêncio trocou-se pelas gargalhadas. Tapei a boca para controlar as minhas. Não era possível. A lagartixa havia escapado. Entretanto, a senhora levanta a cabeça para mim à espera que eu aprove, compreenda e perdoe a posição de rabo para o ar. Pedi-lhe para acalmar. Pedi a todos. Mas foi difícil prosseguir a homilia, pois no meio da Palavra de Deus teimava em aparecer-me aquele rabo virado para o ar. São aquelas situações que nos fazem recordar o humor de Deus!
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Voltei, amigos, depois das férias e de ter estado a meio gás. Não resisti a contar esta situação caricata que me aconteceu nesse período. Obrigado pelas visitas e pela amizade.

quinta-feira, julho 26, 2007

Fui usado por Deus

Caros amigos:
Depois de um ano de labuta intensa, chegou a hora de fazer uma pausa. Ultimamente não poude vir como desejaria, bem o repararam. Estive ainda mais ocupado do que o hábito que já costuma trazer muita ocupação. Mas fez-me bem estar ocupado, pois neste momento, após um ano de canseiras, sinto missão cumprida. Sinto que fui usado por Deus para a Sua Messe. Cansado, mas bem usado por Ele. Obrigado Senhor. Vivam as férias! Até breve!

domingo, julho 15, 2007

Sinto-me uma pecadora

Veio numa hora sem movimento. Uma hora tardia. Não foi directa no assunto. Mas as palavras eram directas. Contidas, mas directas. Não sei por onde começar. Continuei em silêncio. Deixei que ela escolhesse as palavras. Se veio ao meu encontro, já tinha encontrado a força necessária. A mais difícil. Agora era uma questão de tempo e de palavras. E no meio de umas tantas deambulações, soltou quatro. Traí o meu marido. E não me sinto bem em relação a ele e em relação a Deus. Sinto-me uma pecadora. Quero ser forte. Mas o meu coração recorda a outra pessoa. Amas ainda o teu marido, perguntei. Respondeu que sim. Mas que não sabia como lidar com a situação. Ele perdoava, mas ela não se sentia capaz de se sentir perdoada. Até porque não esquecia os momentos com a outra pessoa. E eu encontrei-me a louvar a sua honestidade. Senti que isso era ainda mais importante que a traição. E desejei-lhe muita força. Nós, cristãos, somos tão santos como pecadores. Tão fortes como tão fracos. Sinceramente, penso que uma das nossas vitórias é podermos assumir que somos fracos. Como Jesus. Assumir as nossas fragilidades com humildade. Fui mais longe quando disse Não te envergonhes de ser frágil. Quanto à tua fragilidade, leva-a nos ombros apenas como isso, uma fragilidade. As paixões são muito descontroladoras e muito superficiais. São rápidas a consumir e a desaparecer. São fruto e consequência de desejos. O amor é mais profundo. Mais doloroso. Mais difícil. Complicado… mas mais interessante. A paixão resulta do desejo inato de prazer. O amor do desejo natural de ser feliz. Tens de fazer esta distinção. Se te sentires fraquejar, descobre a tua força interior e percebe à tua volta como o que tens neste momento é belo. Procura dar-lhe novo sabor. À tua relação com o marido. Procura dialogar. Demonstrar o que sentes e deixar que ele faça o mesmo. Deita-te nos braços dele e sente como é bom ter quem nos aconchegue com verdade. Ainda que com rotina. Não há nada melhor que termos com quem partilhar-nos totalmente... E não só sexualmente…

quarta-feira, julho 04, 2007

Afinal isto é Dele e não meu

Hoje é um daqueles dias em que se berra com Deus. Li há tempos que também era rezar. Mas não me apetece chamar-lhe assim. Busco dentro de mim respostas e forças para o que tem de ser, mas o cansaço não me permite encontrá-las. O estômago anda às voltas. Os berros surgem para os que me surgem. Ou se não surgem, surge o rosto desesperado que leva a perguntar que tenho. Não é costume. Amar não cansa. Cansa é amar desta forma. Ontem deitei-me já hoje, mas pouco depois da uma hora. Levantei-me passada outra hora, porque o sono que pesava não tinha força suficiente para lutar contra os pensamentos, os raciocínios, as imagens, as resoluções. Tem acontecido. Por isso tenho acordado mais cansado que quando me deito. Mas levanto que há muita coisa para ser feita. Com os amigos falo a correr ou corro com eles. Não há tempo. Por isso Lhe berrei de manhã, perguntando o motivo de me ter feito assim, padre, nesta época das correrias e dos stresses, assim, a cumprir com demasiado zelo o que acho que tenho de cumprir e que pode até nem ser o essencial. Mas é essencial para mim, ou para os outros, através de mim. Sosseguei um pouco mais à tarde já. Uma vez que Ele não parecia ter os ouvidos bem abertos aqui em casa, saí para a sua melhor casa cá no sítio, o Sacrário. Falei, falei, falei. De vez em quando parava para sentir a resposta. Não ouvi, mas pareceu-me que algo acontecia porque sossegava. Rezei-Lhe a minha vida, as minhas correrias, os meus cansaços. Pedi que não me deixasse ir abaixo que havia quem precisasse de mim. Pedi que fosse Ele a fazer através de mim. Agradeci o que me tem dado e as capacidades que me deu para aguentar e ainda fazer. Saí porque o telemóvel tocou como uma sirene para ir fazer o que tinha de ser feito. Pelo menos saí a sorrir. Afinal isto é Dele e não meu.

sexta-feira, junho 29, 2007

Quem é que Deus quer salvar?

Um dos malfeitores que fora crucificado ao lado de Jesus dizia: “Senhor, lembra-Te de mim quando estiveres no teu reino”. E a resposta veio pronta: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Mas ele não tinha sido um criminoso?! Um pecador?! O que ele não deve ter feito durante a sua vida!!! Mas a resposta é rápida. Não tem hesitações. “Hoje hás-de estar lá”. Pufa, suspirei. Ele quer mesmo salvar todos. Não exclui ninguém.
E ouço uma voz ao meu lado. Já tinha chegado uma penitente ao confessionário. Ainda teve tempo de se arrepender. Que lindo! Resmungo dizendo que não é disso que se trata. Este raciocínio é redutor. Senão teríamos a gentinha toda fazer o que apetece e depois a pedir perdão na hora H. Ou então, não sabendo da hora H, vivendo com o medo próprio de quem pode ser apanhado nas suas tramóias.
O meu raciocínio é outro. O de Deus também.
Basta que abramos as portas do nosso coração a Deus. Quando as abrimos estamos a mostrar que sabemos quem Ele é: “Senhor, lembra-Te de mim”. Quando o abrimos, estamos já a amá-l’O. E está sempre na hora de o abrirmos. Amar é mais importante que tudo. Mesmo quando erramos ou somos pecadores. Jesus não afastou nunca os pecadores. Até disse que veio para eles. Mas condenou os hipócritas. Os que parecem os mais santos, bondosos, certinhos, mas por dentro não têm espaço para o amor. É engraçado que, geralmente, os mais frágeis, os que se reconhecem mais pecadores, costumam ter o coração mais simples e disponível para amar! Porém, que isto não seja desculpa para as nossa falhas e pecados, tipo: estou descansado porque amanhã o gajo perdoa-me.
Por mais pecadores ou frágeis que sejamos, há sempre uma esperança… se O soubermos amar.
O que conta não é a quantidade de pecados, mas a quantidade de amor!

quarta-feira, junho 20, 2007

Porque ontem sim e hoje não?

A Gina faz parte do grupo de cristãos que se baptizaram tarde. Tarde perceberam a importância de Deus nas suas vidas. Mas perceberam. O que nem sempre acontece com aqueles que se baptizam cedo. E um dia cinzento, confidenciou-me as suas dúvidas. Acho que não tenho o direito de questionar Deus. Mas hoje apetece-me. Tudo muito lindo quando me recordo dos dias em que Deus se fez presente na minha Vida. Ou fui eu que me fiz presente em Deus?! Acho que a última é mais correcta. Mas anular a primeira sinto Deus como um ser distante. Não sei. Sabe, começo a imaginar um Deus sentado numa poltrona, em que tu é que tens que te aproximar. Já não sou capaz de imaginar aquele Deus que sentia sempre ao meu lado, nas horas boas e más. Nas horas boas caminhava ao meu lado e nas horas más agarrava minha mão para me dar forças para caminhar. Que se passa agora, padre? Porque sinto isto? Hoje parece-me pura criancice pensar num Deus assim. E apetece-me perguntar se Deus existe mesmo ou será apenas uma pura psicologia?! E rezar será uma maneira de falar com Deus ou apenas uma maneira de nos convencermos que Ele existe mesmo? Se tem dias que sinto que Deus me guia e me leva por bons caminhos, porque existem dias que me deixa ao abandono? Porque ontem sim e hoje não? E afinal quem sou eu? Se eu acho que Deus me ajuda ou ajudou, porque não ajuda Ele outros que precisam muito mais do que eu? Apetece-me concluir que isto tudo não passa de pura imaginação de cada um.
Deixei que ela falasse tudo, pensasse para fora, sentisse para mim. Não interrompi sequer, porque assim ela deitava tudo para fora sem que eu a obrigasse a fazê-lo. Fazia-o como se escrevesse uma carta a Deus. Isso percebi, embora ela não o tenha percebido. Sorri sem ela dar conta também. É que questionar a nossa fé é dar passos na fé. Questionar Deus na nossa vida é sentir que Ele existe, embora possa não ser como queremos. Questionar-nos e questioná-lo é bom. Nunca questionar pode ser apenas a prova de que Ele não nos incomoda, nem para o bem nem para o mal. A prova de que Ele não conta para nós. Para a Gina conta, senão não estava ali a falar comigo e com Ele, através de mim. Estive até para deixar que a resposta viesse de dentro dela mesma. Mas achei que podia ajudá-la a procurar essa mesma resposta dentro de si.
Sabes, Gina, Deus existe, muito embora nos apeteça, muitas vezes, que Ele não exista para justificar muitas outras coisas. Ele não precisa que acreditemos que Ele existe. Porque existe mesmo sem isso. A resposta às tuas perguntas, ou dúvidas, busca-as na melhor imagem que conheço. Uma relação de amor. Imagina as tuas relações de amor. Têm os seus momentos. Bons, menos bons, maus. Mas nunca deixas, se fores verdadeira no teu amor, de amar essa pessoa. O que precisamos é de alimentar essa relação. Umas vezes a pessoa que amamos parece estar longe, ocupada, distante, estranha. Mas continua no nosso coração. Continua a dar-nos vontade de viver para a amar. O que precisamos é de alimentar essa relação. Nem sempre está como gostaríamos ou age como pretenderíamos. Mas continua sendo a mesma pessoa que amamos. Podemos não a compreender bem ou não a conhecer como gostaríamos. Mas continua sendo a pessoa que dá sentido à nossa vida, à nossa felicidade. O que precisamos é de alimentar essa relação. Imagina que Deus é essa pessoa que amas, e descobre as respostas por ti...

quarta-feira, junho 13, 2007

Vejo um padre como alguém que manda na paróquia

Sentámo-nos lado a lado nos bancos da Igreja. Olhando em frente não nos víamos. Por isso estávamos ligeiramente inclinados. Os olhos dela procuravam os meus para me entenderem melhor. Gosto muito das pessoas que conseguem olhar nos olhos, procurar os olhos. Não é fácil. É preciso ter bastante segurança daquilo que se pretende. É preciso estar livre para poder olhar sem pensar que os olhos podem trair. Se os quatro conseguem procurar-se, a sedução da procura recíproca pode ser desgastante e tornar-se uma competição. Era mais ou menos assim o nosso inclinar de olhos. Por isso atirou. Padre, não consigo perceber como o senhor pode ser assim. Assim como, perguntei. Era um jogo de pergunta e resposta e mais perguntas por detrás das perguntas e respostas e dos olhares. De um lado e do outro. Como consegue reagir de forma tão calma e fazer de conta que as coisas não se passam como de facto se passam! Como pode deixar que as coisas se arrastem! Como não faz alguma coisa e põe esta gente na linha! Não consigo perceber. E zango-me. Zango-me porque eu não consigo ser como o senhor. Zango-me porque queria que o senhor agisse de forma mais violenta, mais directa, menos dissimulada. Eu sabia do que ela falava. Falava de outras pessoas que dificultam a vida comunitária da paróquia e que tentam a todo o custo mandar, impor-se aos outros, insinuar, cortar casacas, mostrar-se. E embora sejam úteis à paróquia, ainda gastam o padre como podem, mas só pelas costas. Não deixam de ter qualidades boas e úteis à comunidade, mas utilizam-nas de forma errada. Eu sabia do que ela falava. E sabia da verdade que ela falava. Mas agia de forma a que o tempo, a oportunidade e Deus fizessem por mim. O senhor para mim é um totó. Será que não é capaz? Tem medo? É assim tão fraco? O senhor tem obrigação, como pároco, de por ordem na paróquia. Dizia-me isto procurando os meus olhos e eu fugindo dos dela. Sei que não o dizia para chatear, mas para me espevitar. Para que eu fizesse algo. Ou para perceber em mim que Deus faria da mesma forma que eu. Eu sei que Ele agia assim, sem violência, sem se irritar. Ele dominava-se e dominava a situação. Mas isso irrita-me em si. Vejo um padre como alguém que manda na paróquia, que a põe em ordem. Respondi que o via mais como aquele que conduz a paróquia. Mas eu não permitia que me fizessem de parva. Repetia. E mais calma ia dizendo que gostava de perceber. Disse-lhe que Deus também não afastava ninguém. Lembro que acabei a conversa com o desviar os olhos e com palavras que repetiam a minha forma de reagir aos problemas da paróquia.
Já em casa, a conversa continuou na minha cabeça para perceber também. Se a minha forma de agir era fragilidade ou impotência ou calma, ou antes a tentativa de fazer da melhor forma e de forma bem pensada. Como agiria Jesus em situação idêntica?

quarta-feira, junho 06, 2007

No funeral, uma oração de resmungar

Primeiro uma explicação. Depois a acção. Após vários funerais, deixei de rezar publicamente, isto é, com voz de mega-fone, durante o acompanhamento do féretro até ao cemitério. Decidi assim, contra a minha vontade intelectual e espiritual, porque era dos poucos acompanhantes que rezava. Ao meu redor pelo menos. Ora, se assim acontecia, bem podia rezar no meu interior. Continuava a rezar sozinho. Bem sei que a oração comunitária é mais… digamos, de Cristo.”Onde dois ou três estiverem em meu nome, Eu estarei no meio deles”. Se calhar também foi comodismo. Mas o argumento é válido. Digo eu para mim. Expliquei.
Num dos últimos acompanhamentos, aconteceu. Encontrava-me na minha oração, como disse, interior. Um homem da frente falava alto qualquer coisa que não percebia. Foi-se aproximando. Parou a um palmo de mim. Isto é uma vergonha: Reze lá ao menos um Pai-nosso. Eu já tinha rezado vários. E disse-lhe que estava a rezar. Que ele também o podia. Devia fazer. Isto é uma vergonha. O nosso padre nem um pai-nosso sabe. Na paróquia de… (não interessa o nome! Mas é de um colega) o padre reza. Estive para perguntar-lhe se os paroquianos rezavam. Mas não fiz. Calei-me. No fundo ele tinha a sua razão. Continuava. Só na nossa paróquia. É uma vergonha, não acham?... Nem um pai-nosso! Repeti-lhe que rezasse também. Não ouviu. Não me conseguia ouvir.
Eu continuei na minha oração… pessoal e comunitária, pelos outros, mas interior. Ele também. Uma oração de resmungos. Foi até ao cemitério nestas orações. Ouvia-o de longe. Eram sentidas, porque muito repetidas. Em mega-fone, como desejava. Contaram-me mais tarde que já não devia estar sozinho. Alguns graus a mais falavam com ele.
Porém, fiquei na dúvida se agradou mais a Deus e à honra do falecido a minha oração silenciosa, se a oração sonora e reivindicativa deste amigo…

sexta-feira, junho 01, 2007

Um champô pode ser três coisas numa só

Tenho um colega ateu militante, dizia. Militante mesmo, pois aproveita tudo para uma conversa militar. Não perde a oportunidade. Dispara com cada pergunta mais difícil, padre. Nos momentos em que menos espero. Gaguejo muitas vezes. Muito. É que ainda por cima esta gente lê muito e tem constantemente maneira de argumentar. Ia escutando e pensando que estes são quase sempre gente que busca. Por isso lê. Coisa que muito cristão não faz, porque não busca. Mas da última vez calei-o, confessou. E deu-me um certo gozo. Não para gozar com ele, mas para gozar interiormente. Visitávamos uma catedral. Num altar estava escrito em latim "Vem, Espírito Santo." E sai a pergunta disparada. O que é o Espírito Santo? Engoli em seco, pensei “Pronto já cá faltava”, mas respondi que era a terceira pessoa da Santíssima Trindade. Retorquiu secamente que ficara na mesma. Como sempre. Isso é o que está escrito no catecismo da Igreja católica. Por que é que vocês respondem sempre todos da mesma maneira? Ele lê o catecismo, padre. Bolas. Se respondi, mais depressa perguntou. E o que é a Santíssima Trindade? Eu queria parar por ali a conversa, mas não queria dar parte de fraco cristão. O mistério da Santíssima Trindade é um dos dogmas da Igreja. É Deus, Pai, Cristo, Filho e o Espírito Santo. São três pessoas distintas numa só. Deus enviou-nos o Seu Filho, Jesus, e esteve e continuará a estar sempre presente entre nós através do Espírito Santo. É que resmungou! Como é que eu podia acreditar num coisa impingida pelo catecismo e pela igreja! Lembrei-me então de uma coisa, padre. Olhei-o fixamente e: Olha, vou-te explicar o mistério da maneira mais simples que me explicaram até hoje. Vou-te explicar com o champô. Um champô pode ser três coisas numa só. O champô que é o constituinte maioritário e é o que lava. O amaciador que aperfeiçoa o trabalho do champô. E as vitaminas que te dão vitalidade e beleza. O mistério da Trindade é o mesmo. Deus é o champô, Cristo o amaciador e o Espírito Santo são as vitaminas. São três coisas distintas mas uma só ao mesmo tempo. Primeiro ficou sério, depois riu-se, e depois. Ah, agora já começo a entender melhor. Porque é que não falaste logo assim?! E calou-se! Pelo menos por cinco minutos. Ó padre, será que eu fiz bem e não cometi nenhuma heresia?
Primeiro fiquei sério, depois ri-me, e depois. Como é que eu nunca me tinha lembrado desta?

terça-feira, maio 29, 2007

Foi um colega que contou

Hoje venho aqui, às escondidas, para esboçar umas palavras de desconforto. Bem baixinho. Para ninguém ouvir a minha confusão. E conto, porque o colega não contou em confissão.
Um destes dias um colega. Um padre, claro. Outro. Nem sei bem a que propósito. Falava de um outro colega. Outro ainda. Que tinha viajado aos Estados Unidos. Visitava um amigo. Outro colega mais. E numa visita às paróquias encontrou uma criança. Como é normal e hábito aqui em Portugal, sorriu para ela. Com certeza concentrado nas palavras de Jesus: “Deixai vir a mim as criancinhas”. Ou então por pura exterioridade de simpatia. Que também nos é próprio. Aos portugueses. O colega deu-lhe um encontrão. Repeliu-o. Afastou-o da criança. Não entendeu. Mais tarde, em casa, explicou: não se pode olhar uma criança aqui nos Estados Unidos. Muito menos sorrir-lhe. Pode levar a outras interpretações. Todos desconfiam. Os padres são o alvo preferido. Lembras aquelas notícias? Há até quem desista de se abeirar do sacerdócio. Os jovens não querem ser conotados com nada.
E o colega que visitara os Estados Unidos não mais sorriu durante a sua estadia.

terça-feira, maio 22, 2007

O que é preciso para ser santa?

Sentou-se ao meu lado, quase com as mãos postas e com a cabeça inclinada levemente para o lado direito. É muito importante o pormenor do lado direito. Senhor padre, andei tão entusiasmada com aquilo da irmã Lúcia. Olhe. E olhei. Posso fazer uma pergunta? Já fez, mas nem lho digo, senão tinha de explicar-lhe a teologia toda. Senhor padre, o que é preciso para ser santa? Recordei automaticamente o jovem rico que chega junto de Jesus e faz uma pergunta idêntica. Não que ela fosse jovem ou rica. Eu também não sou propriamente Jesus. Mas é a situação. E digo. Pois, minha amiga, é preciso fazer o bem. Ah, mas isso eu já faço. Dou esmola aos pobrezinhos, vou a todas as missas, visito os doentinhos, a minha vizinha que tá c’uma trombose. Pois, digo. Digo sempre pois quando não sei que dizer a seguir. E pergunto-me baixinho, bem lá dentro, o que será fazer o bem. Depois, falando sério e em poucas palavras, é estar atento ao próximo, ao outro, às suas necessidades, com todo o amor desinteressado e gratuito que possamos utilizar. Claro que explico à senhora por outras palavras. Ela responde-me que isso já o faz. Na sua simplicidade, que por ser simplicidade é sempre linda, ela diz que cumpre já. Bom. Digo eu. Então só falta saber como vive. E continuo o raciocínio sem esperar que perceba. Não está em causa apenas o que fazemos, mas como vivemos o que fazemos. Podemos dar, fazer muito e não vivermos nada! Não interessa aquilo que se faz, mas a intensidade com que se faz. Há dias alguém pesava na balança a irmã Lúcia e a Madre Teresa de Calcutá. Ela riu e disse que deviam ser ambas magritas. Sorri também, mas continuei a comparação. Uma fechada no convento. Outra, de mãos, boca e coração abertos e libertos. Quem será a mais santa? Não respondeu. Pessoalmente, também gosto mais daquela parte de Jesus que investe claramente no irmão. Mas a resposta não pode ser dada desta ou daquela forma pelo modo pessoal como se gosta. As duas podem ser santas, imensamente santas, sem comparações possíveis. Porque o mais importante não é tanto o que fizeram mas como o fizeram. O que mais interessa é a forma como, no contexto social, político e religioso em que viveram, elas se tornaram verdades de fé e de amor, de entrega e de intimidade com o Senhor. E posso ser santa como elas? Faça bem esse bem. Faça-o com verdade.

quinta-feira, maio 17, 2007

O terço das vinte e uma e tal

Estavam assim habituadas. O terço das vinte e uma horas era cerca das vinte e uma e quinze, ou mais. Vinte e uma e tal. Esperavam-se. Enquanto a Igreja não estivesse composta, pelo menos uma ou duas pessoas em cada banco, não começavam. Hábitos antigos. Recordo os primeiros anos da minha paroquialidade. Sempre fui amigo da pontualidade. Quase casei com ela, o que não é exclusivamente bom, porque os carros e as viagens e os acidentes não perdoam. Podia chegar à porta da Igreja a faltar cinco minutos para a missa, ou até dois, mas à hora programada estava ao altar, paramentado e com um sorriso nos lábios. Acabava por ser engraçado, dado que iam pedir-me à sacristia para esperar as pessoas, que a Igreja ainda não estava composta. Como não conseguiam, tentavam empatar-me com conversa. Altruísmo, descobri. Um altruísmo estranho, mas altruísmo. Estavam preocupados com os outros. No entanto, nem que fosse só com cinco pessoas, eu começava. Assim os fui desabituando.
Entretanto, como não tenho ido rezar o terço com eles senão no dia em que lá vou celebrar a missa, o terço é rezado em comunidade na hora em que a Igreja se compõe. A missa fora marcada para as vinte horas e trinta minutos. Não demorou meia hora, que durante a semana não demoro muito. Como combinado, iniciámos o terço logo a seguir. Nem fazia sentido de outra forma. Eles estavam ali. Não iam a casa para voltar em vinte minutos. Aliás, a Igreja estava composta. Rezei com eles. A meio do terço dei conta de uns barulhos na rua. Não liguei senão mais tarde, quando a Maria me contou duma pequena discussão na rua. Umas poucas zangadas com o terço ter começado sem elas. Que não era costume, esbracejavam. Pela história, desta vez não estavam contra o padre. Também não estavam contra a hora da missa. Nem se lembraram dela. Pelo menos a discussão não a aflorou, pois que elas queriam era o terço. Não era a missinha. Na minha opinião elas não sabiam sequer contra o que estava a sua conversa a falar. Só não compreendiam como é que o terço foi mais cedo e não foi como é hábito. Porque elas estavam habituadas.

sexta-feira, maio 11, 2007

Só se for a fingir

Fora convidado para um almoço ao ar livre, depois de uma longa caminhada. Eu vestia normal, mas arejado. O meu normal arejado. Sentei-me na pedra. Encolhido, que não éramos poucos, mas uns poucos na mesma pedra. Comi no prato de plástico. Garfo apenas. Dava mais jeito para segurar o prato. Estava entre amigos. À vontade. Umas graçolas. Conversas banais. Rimos. Outras mesas vizinhas olhavam para as nossas gargalhadas. Quase todos nos conhecíamos. A minha excepção era constituída por dois casais, pai e mãe, filho e filha, ela de três anos e ele de quatro. Não hesitei em brincar com eles. Estavam já os meus braços a servir de trampolim quando alguém chamou o miúdo para levar, nem lembro, seria uma peça de fruta, ao senhor padre. Onde está? Perguntou. É esse senhor. Não é nada. Eu acrescento. Sou. Sou. Sou. Não é nada. Pergunto porque não. A cara de envergonhado e desiludido encosta-se ao pai, ao seu colo. A sério, filho, é padre. Não é como o da nossa terra. É mais moderno, mas é. Não é. Não pode ser. Pausou. Assim vestido? Acreditem que eu trazia roupa que bastasse. Não estava rota nem descosida. Eram apenas umas calças de ganga e uma t’shirt branca e vermelha nas mangas. Óculos de sol, que estava sol. Aproximei-me dele para lhe dizer que também havia de ir para o Seminário. Não, não vou. E já chega de brincadeira. Ó filho, não vês que é amigo da tia! A tia tem um amigo padre. Virou-se para mim de lado, não deixou desenvolver mais o assunto, e sentenciou. Só se for a fingir!
O pior é que as crianças não sabem mentir. O que dizem, no mínimo, é a verdade delas. Mas que verdades faziam parte do seu mundo? Eu garanto que não fiz nada de outro, de outro mundo. E não sei que parte de mim poderia estar a fingir. Ou que não estava a parecer real. Ou se outros fingem na sua realidade. Ou se fingem nas vidas que conhece. Ou em que mundo vivem os padres que ele conhece. Ou como devem viver os padres…

terça-feira, maio 08, 2007

Esta é a minha arma

Cheguei, como sempre, mais cedo. Estava diante do sacrário com o terço nas mãos. Admirei-me. Não o fazia tão devoto. De cinquenta e poucos anos, este amigo costuma usar quase todas as circunstâncias e situações para a brincadeira. Por isso nos damos tão bem. A amizade estende-se até às palavras medidas, mas sempre a roçar a gargalhada. Há quem ache exagero ou falta de respeito. Eu não. Eu gosto de viver assim com palavras fora de sítio no sítio certo, no limite do significado das palavras que podem ter ou ser usadas noutros sentidos, bem mais divertidos. Há quem o julgue homem de não se levar a sério. Eu levo das duas maneiras. A sério e a brincar. Admito que mais a brincar. No final da missa ficámos a sós com uma que outra piada. No momento da despedida realcei a sua postura com o terço dedilhado. Dizia-lhe que tinha subido mais uns pontos na minha consideração. Como se isso fosse importante. Era mais uma daquelas. Colocou-se então entre mim e a porta. Estancou-me, e olhou-me como ainda não tinha dado conta. Sabe, este terço anda sempre comigo há mais de trinta anos. Ganhei-o como prémio. Quando era miúdo acompanhava sempre o meu avô que era o sacristão. O padre, na altura, para nos fazer ir ao terço, lançava um concurso. Cartões. Por cada ida ao terço recebíamos um. No final do mês de Maio quem tivesse mais recebia um prémio. Eu nunca faltava. A bem ou a mal, nunca faltava. Era ainda uma oportunidade para estar fora de casa. Torci um pouco o nariz às últimas palavras e ao concurso, mas cocei-o na esperança desconfiada. Nunca tinha pensado numa assim. Não me parece de inculturar nos dias de hoje. Claro que o ganhei eu, padre. Nunca mais me abandonou. E mostrava-o. Andou comigo por Angola. Garanto-lhe que o rezo todos os dias. Nunca em trinta e tal anos, desde que o recebi, ficou por rezar. Em Angola juntava-me a um colega e, numa hora mais leve, rezávamos por aqui. O terço ia mexendo-se de um dedo para o outro na sua mão. Eu acompanhava o terço, os dedos, as palavras, os olhos molhados. Posso ser um doidivanas, mas com Deus nunca brinquei. Esta é a minha arma. Sempre foi. Todos os dias, padre. Caramba, respondi. E acrescentei que não tinha mais pontos para subir na minha consideração. A minha boca admirada perdera os pontos. Recordei a minha mãe que também rezava três terços todos os dias. Lembrei quanto gostava e gosto dela. Este amigo, o Zé, ensinou-me a gostar ainda mais dele. Fiz-lhe continência.

quinta-feira, maio 03, 2007

Ontem foi assim

Levantei-me mais tarde porque me deitara tarde. Cerca das nove e trinta. Casa de Banho com ele. Sim. Também fazemos dessas coisas! Tomo um banho meio quente porque o gás está a ir-se e ainda não tive tempo para ir buscar novo. Precisava uma secretária só para estas coisas. Ou secretário. Se calhar era mais próprio. A casa está fria porque… só preciso ligar o aquecimento para mim. Entretanto bateram à porta. Moro sozinho. Por isso não atendo. Deve estar a dormir. Estou sempre a dormir quando não abro a porta. Dizem. Às vezes escolhem aqueles momentos mais fisiológicos para bater à porta. E continua o dia. Depois do pequeno-almoço, saio para tomar o meu café da manhã no café em frente. Tenho um café que mora em frente e que me permite usufruir de som ambiente até bem tarde. Pior é quando não tenho estacionamento à minha porta. Ouço falar da Jacinta. Uma paroquiana doente com cancro. Preocupa-me o estado dela. Vou ligar dizendo umas piadas para animar. Só o possível. Recebo outro telefonema. Precisam que lhe faça o baptizado sem que os padrinhos estejam crismados: Há outro padre lá do sítio que permite. Explico o Código Direito Canónico. Entendo que estar crismado não é igual a ter fé. Mas tem de ser. Penso. Tenho de ir ao Centro por causa dos dois velhinhos que precisam que se lhes resolva o problema. Vou e almoço. No meio ainda rabisco o calendário litúrgico da semana. Preparo os avisos para os jovens elaborarem a Folha Paroquial. Quase duas horas. Converso com as empregadas. Uma refila porque não concorda com o horário do Domingo. Bateu a porta do escritório. Mais uns desabafos da Directora Técnica do Centro. Ouço já com o pensamento noutros lados. Entro em casa e torno a sair. Um amigo convida para café. Outro. Conversa puxa conversa. Desabafa. Quer desistir do Conselho Económico. Está cansado do que tem de ouvir. Animo-o. Animo-me. Já preciso. Chego a casa para ver as leituras do funeral. Faço o funeral que é o que me custa mais como padre. No final, depois do constrangimento dos choros a que assisto, vem uma senhora. Quer perceber porque é que não pode fazer a festa da Santa tal. Tal porque já nem consigo ouvir o nome correcto. Insulta-me. E continuo a sorrir-lhe. Casa de novo. Outra paróquia para celebrar missa. Vou mais cedo para atender confissões ou outras necessidades. Atendo só uma. Celebro a pensar no dia que está a passar. Acabo. Tinha uma reunião marcada com as zeladoras dos altares. Até para estas inventam reuniões. De doze aparecem duas. Não tenho vontade de fazer jantar. Ainda tenho de trabalhar no computador. Vou ao centro. Já está fechado. Tenho chaves e como qualquer coisa. Programo mais umas coisas no computador. Penso numa actividade. Recebo mais uns telefonemas. Bons e maus. Trabalho. Afazeres. Experimentam até ao tutano. Ouço do outro lado um paroquiano com problemas sérios. A esposa. Sinto-me incapaz. Queria rezar e já não consigo. A cabeça à roda. Apetece-me ter uma reunião com Deus e discutir com Ele. Deito-me. Claro que não adormeço logo. Revejo o dia todo. E o de amanhã. Ainda há quem pense que não trabalhamos!
E vou marcar uma reunião com Ele.

segunda-feira, abril 30, 2007

A bela Bela

Tem uma série de filhos, ou filhos em série. Ainda é nova, mas a vida já trouxe demasiadas experiências à Bela. Porque quis, porque aceitou deitar-se em várias camas. Mas é boa rapariga. Por isso resta-lhe cuidar das crianças, arrumar a casa e passear pelas estradas. Há dias lembrou-se de baptizar dois, os mais novos. Eu gosto de os ver na Missa. Não faltam. A mais velha leva-os. Mas vem isto a propósito porque depois de combinarmos tudo, de conversarmos muito, de tomarmos decisões em conjunto, falou da sua pobreza e que, apesar de não pagar a tal côngrua, não podia também pagar os dois baptizados. Ó mulher de Deus, não pense nisso. Eu falo com o Conselho Económico. Que ninguém deixe de se aproximar de Deus por causa de dinheiros. Eu conhecia a maior parte das dificuldades. Ficou então assente. Seria tudo gratuito.
No dia marcado, na missa marcada, obviamente, aparece toda aperaltada. Estava bonita. O resto das crianças menos mal, mas alegres. E os dois miúdos. E um ou dois amigos. E os padrinhos. E mais a avó e um que outro tio. E mais uma máquina fotográfica enorme com um indivíduo por detrás. Espanto meu. Era um dos fotógrafos profissionais da zona. E mais máquina de filmar. De espanto em espanto, não resisti em perguntar ao fotógrafo se era amigo, se fazia o trabalho de graça ou se alguém o pagaria pela Bela. Respondeu a tudo que não. Que tinha sido um contrato, umas tantas fotografias, e mais algumas na festa que vai dar com todo o aprumo, um filme do essencial do baptizado e em troca umas tantas notas. Espanto meu, espanto meu, que devo fazer eu? Aviso que este nada tem a ver com a pessoa, mas com a situação. Que todos têm direito a festas semelhantes. Ninguém é mais que ninguém. E quem tem poucas, deve aproveitar bem as que tem. Mas que haja a lucidez necessária para a coerência necessária. Que se faça com a mesma igualdade que se exige. Eu sou pobre e não posso pagar a cerimónia. Mas quero ter uma festa rija, para não dizer rica. Não bastavam as máquinas ainda vem a festança… que podia ser uma simples festinha com a mesma força da festança!
A cerimónia do baptismo não é o parente pobre mas o motivo da festa, a festa. O resto é embrulho.
O espanto maior aconteceu quando perguntei preços. Só das máquinas era o quadruplo do preço da cerimónia. Nem quis saber do resto. Nem o Conselho Económico. Toda a gente ficou mais que admirada, abismada.

quinta-feira, abril 26, 2007

A senhora da Côngrua

No final da Eucaristia veio desenfreada buscar a certidão de baptismo do filho. Tinha-a pedido faz duas semanas, no mesmo despacho. Vai casar-se, padre. Ainda sorri, como se ela tivesse feito ponto de interrogação no fim da frase. Pediram isso. Explicou e compreendi. Imaginei despacho para tudo. A certidão estava passada faz duas semanas menos um dia. Igualmente me despacho, para não esquecer nada de importante. Há muito uso bloco onde aponto tudo o que há a fazer. Só assim não esqueço. Ou melhor, o bloco lembra. Porque eu esqueço. No final perguntou se não era preciso mais nada. Eu respondi que não. Se pagava a côngrua, era gratuito. Explico melhor. Para facilitar a organização da paróquia, quem paga a côngrua tem tudo gratuito, sacramentos, papeladas. Contribuem com o que podem. Mas contribuam. Quem não paga, seja por esquecimento, por pertencer a outra paróquia ou por falta de generosidade, paga emolumentos. É assim que se chamam. Paga-se à paróquia. Não é ao padre. Trabalha-se com a justiça dos homens, reconheço. A de Deus é gratuita em todos os casos.
Estavam presentes mais dois elementos do Conselho Económico, e ela respondeu como habitualmente. Com despacho. Eu pago, pois claro. Tão claro como um dos presentes que exclamou. Não me parece. Deixa ver. Eles têm fichas organizadas. Desde 2000 que não há registo de qualquer contribuição tua. Ah, disse ela, corando e gesticulando desenfreada. Eu pensava que sim. Acreditem que ela vai sempre à missa e que ouve todos os avisos, porque só sai depois de ouvir o que, porventura, se avisa, não vá ser alguma coisa interessante. Pediu desculpas, prometeu e virou costas, despachadamente e envergonhada. Eu fiz de conta que nem assisti. E o do Conselho Económico acrescentou. Já da outra vez fez o mesmo, padre. Não lembra? Eu não lembrava. Não tinha apontado no bloco. Não aponto coisas menos importantes. Aproveitei para distrair da situação com umas graçolas.
Incomoda-me mais saber das coisas das pessoas que saber que essas coisas existem. Só lembram Santa Bárbara quando os trovões batem á porta. De resto, que trovejem para outros lados, que o meu lado não é esse.

segunda-feira, abril 23, 2007

Só fico a pensar… como seria

Dum lado está uma senhora, ou menina. Tem uma voz jovem. Não consigo ver através dos buracos do confessionário. Também não interessa. Conta-me coisas do arco-da-velha. A confissão parece demorar uma eternidade. E fico assim. A pensar. E volto para casa a pensar. Como será? Como seria? Ter uma família, uma esposa, um par ou dois de filhos? Não estou a fazer prosa. Às vezes penso como seria. Quando decidi definitivamente ser sacerdote, ser padre – andava já em teologia – disse para mim mesmo. Por muito que amasses uma mulher, amarias sempre mais a Deus. Considero que essa não era uma desculpa para nada. Era o que sentia. É o que ainda sinto. Mas, por vezes, pergunto como seria. Se calhar não estava tantas vezes sozinho, sem vontade de, inclusivamente, falar comigo. Não falava com paredes, com televisões ou com a almofada. Continuaria a dar tudo e a amar os meus paroquianos, os que Deus me entregasse ao cuidado. E não podia ser bígamo amando Deus e a minha esposa? E não é isso que Deus quer? Que amemos todos, em especial os que escolhemos para viverem connosco, e igualmente O amemos a Ele? Não sei. Não sei mesmo. Provavelmente tenho assim, sozinho, mais disponibilidade para os outros, para os meter no meu coração. Quantos lá caberão? E sou mais imparcial no que toca à vida dos outros. Estou desprendido até da família. Mas às vezes penso. Não é mal pensar. Nem é pecado. É só um pensamento. Não fico doente. Nem atrofiado. Nem castrado. Nem obcecado. Nem desequilibrado. Nem angustiado. Nem com pena. Ou remorsos. Ou saudade. Ou outras coisas parecidas. Só fico a pensar… como seria.

quarta-feira, abril 18, 2007

Cinquenta anos

Faziam cinquenta anos de casamento. Bateu-me à porta apenas ela e uma amiga. Que ele não entrava nestas coisas. Queriam marcar uma festa de aniversário com missa. Aqui há uns anos evitava-as, por causa dos transtornos. Simplificava as coisas com uma cerimónia simples. Até na casa dos interessados. Hoje reconheço que é mais meritório um aniversário que o próprio casamento. Não é que seja mais válido, mas certifica o amor verdadeiro. O casamento deixa sempre, hoje, uma dúvida. E este certificava cinquenta anos. Insisti na ideia da Eucaristia dominical. Comunidade presente para celebrar o amor. Foram pensar, mas a resposta foi não. E assim foi no passado sábado.
Dezassete pessoas, comigo dezoito. Missa bastante silenciosa. Incomodava apenas o tlink e o tlonk de cada máquina, pois haviam-se esquecido de as colocar no modo de silêncio. Cerca de dez flashes, entre câmaras de filmar e câmaras de fotografar. Não deu tempo para refilar com palavras. Fiz um ou dois trejeitos, mas também não eram óbvios. Respondiam pouco. Era mais um diálogo entre mim e mim. Pelo menos eu não ouvia, e, pelo hábito, eu até tremia com receio de mandar duas ao lado. Mas se não respondiam, como foram comungar? Sim, porque pelo menos metade comungou. Estranho. Mais tarde imaginei que eles estavam como eu, respondendo baixinho com receio de mandar duas ao lado.
Ele confessou-se antes da missa, para comungar nessa missa. A última foi há 25 anos. Imagino que aos 75 se vai confessar de novo. Festejassem cada ano e era todos os anos.
Bonito foi o rosto dos noivos. Estavam bonitos e frescos. Aparentavam menos uns 25. Ainda lhes exigi um “Eu amo-te” cara a cara e olhos quase nos olhos, porque foi rápido e a fugir, com o decoro da pureza e da vida nestas idades. Insisti que eram palavras bonitas e a utilizar toda a vida. Festa do amor. Mas fiquei com uma sensação de que não se festejou propriamente o matrimónio religioso. Isso só Deus sabe. A minha certeza induz-me apenas à festa do amor de dois cônjuges após cinquenta anos. Já não é mal, pois Deus devia estar agradado. E tlink. E tlonk.

sexta-feira, abril 13, 2007

Prometi uma missa a Nossa Senhora do Ó

Acercou-se a coçar barba. Olhou-me de esguelha. Tipo, não sei se é este! Mas deve ser, pelo jeito. E disse baixinho, como se não conviesse que mais alguém ouvisse: “Senhor padre, prometi uma missa em acção de graças à Senhora do Ó. Quando é que o senhor padre a podia ir lá dizer à capela?” Para entender melhor, esta capela é um local afastado da paróquia. Em primeiro lugar não sei se alguém se disponibilizaria para ir lá ouvir-me ou ver-me. Só costumo lá celebrar uma vez por ano, na altura da festa. Ele queria por força que fosse lá celebrar. Num tem uma meia horita? Não é essa a questão. Há uma pastoral organizada e um local apropriado para celebrar as eucaristias. Se fosse aceder a este tipo de pedidos, não fazia outra vida. Tinham de inventar-se muitas mais capelas!
Mas o pior é que eu não posso ser obrigado a cumprir as promessas dos outros. E disse-lhe: Então a sua promessa é para ser cumprida por mim?
Essas promessas são mesmo boas. São para os outros.
Mais grave ainda foi aquela senhora que há uns anos me veio dizer que tinha uma promessa a cumprir. Uma procissão de velas. A rir, para que também não se assustasse muito, disse-lhe: Minha senhora, pegue numa vela e comece a dar a volta à paróquia. Ela fez olhar de desconfiada. E acrescentei: Então a senhora quer que toda a paróquia cumpra a sua promessa!
Nunca gostei muito de promessas e cuido que Deus também não gostará. Porque é que não prometemos, pura e simplesmente, ser melhores?

terça-feira, abril 10, 2007

Preciso uns óculos novos

De facto o senhor Manuel não trazia óculos. Magro. Sempre com a piadita nos lábios. Mesmo assim. Resmas de folhas nos braços. E não trazia óculos. Conversámos durante algum tempo. Assuntos lá do Centro. Ambos entusiasmados com a conversa. Depois palavra puxa palavra e chegámos à fábrica. Há sete meses que não pagam os salários. Cinco que deixaram as máquinas. Mais de cem no desemprego. À espera. Alguns casais. Fico triste. Não baixo a cabeça porque é necessário dar coragem a esta gente. Mas quando chego a casa fico a pensar. Não tenho como ajudar. Não conheço ninguém que possa resolver. Nem as minhas cunhas servem. O problema começa a generalizar-se. O estado do país é alarmante. As contas ainda mais. Anda tudo desconfiado. Um dos casais que mais colabora com a paróquia está sem receber desde Janeiro. Trabalhavam os dois na fábrica. Têm um filho no Seminário. Dói-me a situação. Dói-me não poder fazer muito. Só confortar. Ouvir. Expressar esperança. Há dias ofereci a minha casa para uma família de cinco. O conforto de saberem que tinham onde recorrer deu-lhes ânimo. Estavam com medo de perder a casa e não ter onde abrigar os filhos. Foi saboroso uns dias depois saber que pelo menos desta estavam safos. Conversava assim com os meus pensamentos enquanto ouvia o senhor Manuel. Que não tem conseguido dormir. Só com calmantes. Nem apetite. Só à força. Pesadelos. Contas para gerir. Uma criança com dez mesitos. O pior veio depois. E só dei pela falta dos óculos nesse momento. Estraguei a haste dos meus óculos. Meti fita-cola. Mas agora foi no meio, senhor padre. Preciso uns óculos novos. Mas não vou lá porque o dinheiro pode faltar para comer.
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PS. Este post de arquivo aconteceu em 2005. A fábrica faliu. Há muita gente ainda no desemprego. As famílias apresentadas estão a tentar sobreviver. Uma delas conseguiu, embora o casal tivesse de separar-se por mais de 300 quilómetros. A outra está mais complicado. A separação é de milhares de quilómetros e ainda ñão se vê luz ao fundo do túnel. Mas o senhor Manuel teve direito a óculos novos.

quarta-feira, abril 04, 2007

Uma confissão bem amiga

Já não se confessava há muito, disse. Um tipo desportivo. Dread. Calças largas e quase ao fundo do dito cujo. Senta-se de forma bem larga. Sorri para tudo. Eu também. E depois um desenrolar normal do sacramento. Diálogo que não transcrevo. Tinha estado fora do país. Achara oportuno confessar-se. Nada de estranho. A mãe tinha dito. Ele achara por bem. Quer dizer, acho. Rosto amigável. Cabelo de gel. Simpático. Mesmo mesmo. Atribuí a penitencia que supus adequada. Costumo indicar algo que tenha a ver com os pecados confessados e para melhorar. Tipo, se murmurou, peço para rezar pelas pessoas com quem ou por quem murmurou. E agora diga o acto de contrição. Não lembro, padre. Não tem mal. Eu ajudo. Balbucio aos poucos e aos arranques e ele repete. No final, elevo a minha mão direita para a absolvição e bênção finais. Ele olha para mim. Sorri. Eu ia fechar os olhos, como costumo fazer, mas hesito. Não fecho. Imaginei que lhe tivesse recordado algo. Como ele vinha da Alemanha pensei até nos gestos hitlerianos. Safa, que não cabe qualquer comparação! Aqui trata do perdão e por lá da falta do mesmo. Mas não. Ele continua com o sorriso amigo, eleva também a mão direita. Vai buscar a minha quase à sua cabeça. Agarra-a. Cumprimenta-a. E a mim. Baixa as duas. Eu aceno que não. Ele insiste. Obrigado por tudo, padre. Sorri. Expliquei com calma. Abriu a boca e deixou que eu o absolvesse. Ficámos ambos descompostos. Ambos com uma para contar, sem malícia nem apimentado. E isto já me aconteceu mais vezes, tipo, uma ou duas por ano. Torna-se engraçada ou formativa a distracção ou falta de formação.
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Aproveito para desejar a todos uma Páscoa cheia de Alegria e de Vida!

quinta-feira, março 29, 2007

A minha avozinha

Já lá vai um dia, mas o meu coração continua sem sabor. Como se uma artéria estivesse desligada das outras ou não quisesse fazer parte do conjunto. Eu vou dizendo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque chega a um ponto em que os funerais a fazer são os dos amigos que constrói, dos mais chegados às artérias do nosso coração. E isso adoece o mesmo coração. Não amolece. Às vezes até o fortalece. Mas dói sem explicação.
A avozinha era desses. Não era minha avó. Mas ambos assumíramos esse parentesco. Ela fazia hoje 83. Mas o sorriso e o amor para dar era de 38. Fresco, livre, maduro, consciente, verdadeiro. Eu, com sorriso parecido, enternecia-me com o seu, com o olhar matreiro de cumplicidade quando olhávamos um para o outro na Eucaristia, com as suas lágrimas quando me contava as suas rugas, com a sua espera no final de cada missa, com as surpresas que me oferecia. Sobretudo com a verdade de tudo o que era. Olhe que eu gosto muito de si. Amo-o como um netinho. Tome para um café. E mais conversa. E mais outra conversa. Tenho de ir, vozinha. E um abraço apertado, um beijo nos cabelos brancos e penteados. Tapava-a com o xaile preto da viuvez. Brincávamos. Sabia-se na paróquia do nosso parentesco. Não sabiam que eu lhe levara uma flor na sexta-feira passada ao hospital. Um acidente acelerara o tempo. Rimos. Gargalhámos. E ainda me contou que era bom ter sido ela e não outro dos seus, pois ela já era velha. Nada me fazia pensar que eram as nossas últimas palavras visíveis. A notícia quis acordar-me faz dois dias. Ainda não acordei, e o coração continua sem sabor. Prometera-lhe uma festa no funeral. Eu pedia para se calar com essas conversas, mas anotava os seus desejos. Desde que participara no funeral da minha mãe que desejava uma festa como ela, dizia. E guardava uma foto da minha mãe junto com os seus santinhos. Rezava-lhe todos os dias. E sei que não mentia. Até porque sabia de cor a data do seu aniversário, da sua partida, e entregava-me sempre uma nota para levar um ramo de flores à campa. Não se esqueça. Ou quando ia a Fátima a uma reunião. Ponha lá uma velita. Não se esqueça. Como posso esquecer-me dela? Como posso aguentar um funeral duma amizade assim? Não aguentei mesmo. As lágrimas soltaram-se como se estivesse do outro lado do altar, junto com a família de sangue. Nos momentos mais importantes da Eucaristia fui forte. Deus deu-ma, a força. Homilia. Anáfora. Consagração. Nas palavras necessárias. Nos momentos de silêncio ou de canto, os lábios premiam-se, respirava fundo para conseguir, e as lágrimas caíam sem que as limpasse, a não ser discretamente com o lenço emprestado. Mas cantei. Tinha-lhe prometido. A paróquia toda engalanou-se para ela, como se fosse Domingo. Assim entendeu a maioria. Sinal do que era a sua presença na comunidade. Durante o acompanhamento novas e muitas lágrimas. Na despedida muitas mais. Levava do lado esquerdo, bem junto à face, a rosa amarela que levara ao hospital. Pedira a uma outra visita que a guardassem bem para quando regressasse a casa. Regressou em silêncio, mas entregaram-lha como prometido. No direito as duas rosas cor de rosa que diziam obrigado pelo amor que me deste. As quatro rosas já estão com a minha mãe.
Hoje celebrámos, como combinado, a missa de acção de graças pelo seu aniversário. Tinha sido combinado há quinze dias entre amigos. Contara-lhe no hospital. A família de sangue esteve presente. Uma das filhas prometeu continuar o que a mãe fazia na paróquia. Pelo menos parte. Outras agradeceram as cerimónias. Uma, a que mais admirei, afirmou que não havia necessidade de me agradecerem porque ela também era minha. Disse-o mais ou menos assim, ou eu senti-o. No final da missa, ficaram alguns amigos para deixar cair alguma que outra lágrima que ainda não tinha tido a sua oportunidade e para falar de saudades. O filho aproximou-se e disse. Padre, estes cinco euros a minha mãe mandara para o senhor, antes de morrer, para agradecer a missa de acção de graças e para um café. Era coisa sua, porque ela sabia que eu gosto de café. Sorri para ele e para ela. Até depois da partida, continuava a pensar em mim! Era a minha avozinha.
Entretanto vou repetindo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque há coisas que doem sem explicação.

quarta-feira, março 28, 2007

sondagem_ Perante a Vida Humana e perante o aborto, que defendes em concreto?

Passados que vão mais de 57 dias da última sondagem e 184 votos, chegou a hora de avaliar a sondagem que estava no lado direito, no sidebar. A questão era:

Perante a Vida Humana e perante o aborto, que defendes em concreto?

E os resultados são:
1.
A Vida humana,
incondicionalmente e como Direito Fundamental _56%
2. A Vida, mas não quero a penalização da mulher _35%
3. A lei vigente actualmente em Portugal _15%
4. A Total liberalização do Aborto _3%
5. Não tenho opinião formada e convicta _1%
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algumas considerações:
1. Depois do referendo do dia 11 de Fevereiro, dos resultados, de todas as considerações pós-referendo e das mudanças legais, estruturais e de vida que possam ter surgido nesse dia, parece que esta sondagem não tinha mais sentido. A comprovar o que afirmo, está o número de votos e votantes, número que está longe dos habituais nestas sondagens. Quase me apetece dizer que se perdeu a vontade de discutir ou opinar sobre o assunto. Também a mim me ocorre a vontade de não abordar muito mais que os próprios dados obtidos. Aliás, esta sondagem nunca pretendeu ser um referendo nem a obrigação de uma tomada de posição neste espaço que considero de evangelização. Ela nasceu antes do referendo e foi mantida até hoje. O objectivo deste espaço de tempo também não passa pelo desleixo ou por uma manifestação de reprovação pelo resultado do referendo. Fi-lo para auscultar a tipologia geral nesta área das pessoas que frequentemente visitam este espaço. Fi-lo para perceber como cada um dos meus “penitentes” valoriza a vida, mesmo sabendo que nesta sondagem não está contido o absoluto de respostas nem representa, de todo, o conjunto das questões que se poderiam elaborar sobre a vida. Fi-lo também para que não se esquecesse que a Vida é importante e que não podemos reduzir a reflexão sobre a mesma a um período de referendo. Ela nem se devia referendar propriamente. Mas reflectir, sim.
2. Sobre os resultados, não há muito para comentar. Mais de 50% dos meus visitantes fez ou faz uma clara opção pela Vida, em todas as suas componentes e contextualizações. Imagino que o tenham feito para salvaguardar a nossa vida, a Vida Humana como direito fundamental e o dom da Vida que nos é concedido por Deus.
3. Quase um terço dos votantes escolheu a opção que não penaliza a mulher, embora defendendo a vida. Eu também não gosto muito de condenar, nem me acho nesse direito. Mas se me fosse pedido que fizesse alguma defesa, sairia sempre a favor da vida em toda a sua amplitude. Não quero tecer quaisquer comentários em relação à lei que está para ser aprovada na Assembleia da República. Mas espero que ela não banalize a vida e a defenda deveras.
4. As restantes opções tiveram poucos votos. A lei actual, ou que era actual na data do lançamento desta sondagem, apenas teve 10 votantes. Estavam nela contidos os casos excepcionais. Será que as pessoas hoje já não querem ter, viver ou ser excepção?!
5. Fico contente sobretudo porque a opção da total liberalização não obteve mais que 3%. Questiono-me um pouco sobre o como seria este espaço se a maioria dos votos recaísse nesta opção!
6. Por último resta-me fazer o apelo para que o valor da Vida esteja sempre contemplado nos nossos horizontes!

Hoje surge nova sondagem. Numa época em que, a propósito do novo texto de Bento XVI, “Sacramentum Caritatis”, tanto se especula sobre a Eucaristia, surge esta sondagem que não pretende ser fechada. A Eucaristia tem outros momentos ou acções impor-tantes. Não se trata de escolher o que é mais importante, mas o que se valoriza mais. Sempre podem deixar escritas as razões da escolha e, porventura, as opções que faltam na sondagem. A pergunta é:

Qual o momento da Eucaristia que te prende mais a atenção ou que valorizas mais?

quarta-feira, março 21, 2007

Já viram?

Já viram um indivíduo atender o telemóvel enquanto se caminha para o cemitério com um morto? Eu já. Já viram um cangalheiro atender um telefonema na Capela Mortuária para dizer que agora não posso que estou num serviço? Eu já. Já viram que os funerais têm mais gente fora da Igreja do que dentro? Eu já. Já ouviram as orações de alguns que acompanham o morto fora da Igreja e no caminho do cemitério que são o tempo está bom, o Benfica jogou mal, aquela coisa está mal feita? Eu já. Já viram uma pessoa que em vida nunca recebeu flores da família, filhos e marido, e que depois de morta lhe enchem o caixão de flores? Eu já. Já viram parentes que estavam zangados, de costas voltadas, sem palavra que fosse, nem bom dia, e que na hora choram sobre o corpo que nem madalenas? Eu já. Já viram gente a maldizer a vida porque o padre não reza no acompanhamento fúnebre, mas não esboçam sinal de oração, sequer se benzem? Eu já. Já viram pessoas, depois de perseguir a carrinha funerária, e mal entrados no cemitério, debandarem para junto das campas dos seus, esquecendo o morto a sepultar, esquecendo o resto das exéquias? Eu já. Já viram o início de uma zaragata no meio de um acompanhamento porque se encontraram aqueles que não se podiam encontrar e quase se oferecem porrada por se encontrarem? Infelizmente, eu já. Já viram alguém desbaratar com a família do defunto na hora de ir para debaixo da terra porque, afinal a junta se enganara no terreno da mortalha? Eu já. Já viram um indivíduo na mortuária acender do cigarro para fumar? Eu não vi, mas contou quem viu. E quantas coisas não vimos já nós por aí fora em funerais? E quantas não iremos ver mais?
Enfim, consola-me que os que morrem já não vão ver mais.

segunda-feira, março 19, 2007

Não gostavas de saber-te apaixonada por Jesus?

Adolescente na força dos músculos, das pressas, da alegria e da vontade. Veio porque a mãe pedira para vir. A mesma mãe que não ia à missa e que dizia: vai. Ela insistia. Mas tu não vais! Deixa-te de coisas e não me chateies mais. Pouco tempo demorara a deixar a catequese. Não me apetece. Mas tu não amas a Jesus? Sei lá. A missa é meio seca. É sempre o mesmo. O rosto movia-se com alegria, num ritmo de simplicidade. Os olhos pequenitos, como o resto do corpo, brincavam às mães e aos papás, ainda. Olhavam-me directo e desinibidos. Dir-se-ia que não temia as palavras e que se houvesse culpa por perto, não era dela, de certeza. Eu gostava assim de uma missa mais alegre. Eu quero é divertir-me. A missa não me faz falta. É sempre igual. Já não ia há mais de meio ano. Falei-lhe da comida. Que também era igual, mas que precisávamos dela para viver. Ela respondeu, satisfazendo-se da vitória no combate com o padre. Quando não me apetece, não como. Ainda hoje não jantei. Insisti. E se fosse meio ano sem comer. Morria. Pois, falei-lhe de uma morte espiritual. Não entendeu muito bem, pois olhou-me desconfiada. Utilizei outra arma. Não sentes falta do amor de Deus? Eu conheço jovens que não têm sentido na vida porque se limitam a trabalhar, constituir família, ter casa e ir andando. Para lá de tudo isto, devia haver algo que preocupa mais cada um. E os jovens com fé passavam à frente nesta frente. Ela começou a achar aquilo mais importante. Ou interessante. Notei pelo descair do sorriso, que agora parecia mais disfarçado. Não gostavas de saber-te apaixonada por Jesus? Baixou as armas. Acho que sim. Arrebitou porém, de repente. Mas a minha mãe não me deixa ir à catequese. Eu queria. O João é fixe e eu ficava com ele na catequese. Mas não foi a tua mãe que te mandou falar comigo? Foi. Então tens de falar com ela, pois a catequese dá-te a oportunidade de conhecer melhor Jesus para o poderes amar, e até te ajudará a perceber a Eucaristia. Ela depende da forma com a sentimos e não da forma como é dita ou celebrada. Prometes que vais falar com a tua mãe? Mas falar a sério. Prometo. Levantou-se a correr, como chegara. E eu acenei com a mão, pensando na mãe.

sexta-feira, março 16, 2007

Tem de ser ele o padrinho

O João é meu acólito. Tem treze anos. É bastante responsável. Merece a minha atenção, como padre, como amigo, como companheiro. Entusiasmou-se com a ideia de ser padrinho da primita. Disse-mo a tia. Tem de ser ele o padrinho. E as normas? catequese dos dez anos. Ele só está no sétimo. E não há muitos que fizeram os dez anos e são crismados e não têm manifestação de fé visível e são padrinhos? Ela vencera esta primeira batalha. Mas as leis, mesmo as inventadas, vencem sempre, sobretudo por uma questão de igualdade. Falei disso, mas com alguma tristeza, pois percebia as suas razõesPressupõe-se que um padrinho tenha atingido a sua maturidade da fé. Por isso a, melhores que muitas das que escolhem padrinhos fáceis. E se ele não assinar, para já? Esperamos o crisma e os dezasseis anos. Só que isso criava precedentes. E se eu fosse a outro lado, a outra paróquia, passava-me uma declaração para ele ser padrinho? Claro que entendi, mas falei da incoerência. E já a pedir dó, relembrei que eles, como bons cristãos, deviam ser os primeiros a entender e a facilitar-me a decisão. Eles entendiam. Eram boa gente, de facto. Mas não queriam. E como explicar ao miúdo? Eu posso ajudar. Ele até já lhe ofereceu prendas, padre. Eu ia andando, porque tinha confissões à espreita. Esperavam-me uns colegas. Já quase em desespero, e espero que tenha sido só em desespero e sem pensar porque a frase não foi acertada. Isso agora não é importante. Importante é decidir que sim, que ele pode ser padrinho. Olhei com ar de autoritário. Este olhar não era meu. Era da decisão. Não gosto deste olhar. Abri a porta do carro para entrar. Insistia. Então a resposta é sim. Eu dizia que não. Olhe que vai ser sim. Ficamos combinados. Dizia isto quase a fugir para ter a certeza que não me ouvia dizer não e para que a sua consciência ditasse sim e não houvessem dúvidas. Não. Entrei também com a mesma forma de pensar.
E agora, como vai ser quando abrir definitivamente o carro e a encontrar de novo na reunião de preparação?

quarta-feira, março 14, 2007

Não emprestei o guarda-chuva, senhor padre

Chovia lá fora. Ventava. Ela tremia. Gaguejava. Soluçava. Digamos que chovia também. Senhor padre, preciso mesmo falar consigo. Nunca a tinha visto neste estado. Branca. Doente. Sentou-se ao meu lado. Segurei-lhe a mão esquerda com as minhas. Começaram também a tremer. Pensei o pior. Tropecei as palavras com um esforço de parecerem calmas: Diga, mas acalme-se. Precisava mesmo falar-lhe. Já tinha pensado ir ter consigo, mas temia incomodá-lo. Não sabia se tinha tempo. Lá está mais uma vez a minha desdita. A de muitos. Aconteceu há dias. Chovia imenso. Como hoje. Estava à janela. Tem esse hábito, que eu sei. Sabe sempre a que horas me deito! Uma moça corria por causa da chuva. Estava completamente molhada. Os cabelos pingavam. De repente viu-me e gritou por um guarda-chuva: Tem um guarda-chuva que me empreste? A casa dela ficava longe. Disse-lhe sem pensar que não. No outro segundo arrependi-me e gritei-lhe que sim. Corri à porta. Já ia longe. Berrei, mas a chuva não permitiu que me ouvisse. Voltei para casa com o coração a tremer. Até lá tinha vários, e ela devolvia-mo depressa. Como fui capaz! E repetia estas palavras muitas vezes. Segurava a cabeça com as mãos. Chorava. Eu disse que de facto tinha errado. Mas que agora devia ficar em paz. Não mereço perdão. Merece sim. Toda a gente merece. E continuava aos soluços. Precisava desabafar consigo. Precisava ficar em paz. Ajude-me. Como é que fui capaz de fazer uma coisa destas?! Quem conhece esta senhora sabe que está sempre disposta a ajudar, a dar de si. Não tinha muito sentido ter acontecido. Mas acontece a todos. Até aos mais santos e mais perfeitos. Todos fraquejamos. A moça já estava seca. Agora restava que esta ficasse em paz. Dei-lhe mais umas palavras de conforto. Não chegou. Levantámo-nos. Ainda tremia. Dei-lhe um abraço apertado. Tem 72 anos, minha gente! Apertou-se ainda mais ao meu coração. Quase um minuto sem palavras. No segundo minuto já não tremia tanto.
No outro dia falou para mim do abraço de Deus. E já não é a primeira vez que me falam deste abraço.

segunda-feira, março 12, 2007

As três freiras

O melhor local de Fátima inteira é a Capela do Santíssimo. Também lá encontro Maria. A brisa na Capelinha das Aparições agrada-me. O vento leve que vem à face leva um pouco de mim pelo espaço em silêncio, ou quase. Mas a Capela do Santíssimo é melhor. Não tem brisa, mas faz sentir o mesmo vento que leva um pouco de mim. Procuro um banco ao fundo. Chovia e fechei o guarda-chuva. Fechei também os olhos para abrir o coração. Tão bom, este momento. Quando o faço na paróquia parece diferente. Ninguém olha para mim, o que facilita não olhar ninguém. E após uma boa hora, chegam três mulheres novas, quase iguais. Rosto esbelto, posso garantir, porque me distraí do diálogo com Deus ao ouvir o chocalhar. Abri os olhos e a curiosidade. Vestiam azul claro, num tem quase cinzento. Eram novas, pela beleza, pela sinuosidade da silhueta. Sorridentes. Rosto a terminar no pano azulado que pendia e escondia os cabelos dourados. Imagino, pela tez visível. E donde vinha o chocalhar que quase lembrava o retinir dos sinos sem melodia e menos audíveis, para não falar noutras metáforas menos próprias para o local? Como me haviam distraído, se nem estava interessado em reparar nos presentes ou nas suas belezas!? Ao passarem mais perto reparei nos cordéis cheios de pontinhos organizados, de dez em dez. O rosário. E o porquê do ruído?! O meu que se queda vários dias no bolso esquerdo das calças não faz esse barulho. Foi quando descobri, não um, mas vários rosários, ou terços, como lhe quiserem chamar, um enorme, a pender do mesmo lado, deixa ver, esquerdo também, das roupas azuladas que terminavam quase sem deixar ver os sapatos ou sandálias. Não conheço a congregação nem julgo. Mas pergunto: faria parte das suas regras rezarem por diversos terços?! Ou seria um peso medido que deviam colocar no quadril?! Ou era para sinalizar a sua localização?! Estou aqui e vou passar. Ou adorno?! Que seria afinal? Não consegui perguntar, porque o local era de silêncio, embora as passadas delas, delineadas a manequim, não permitissem a concentração por causa do chocalhar das contas do terço. Como me havia distraído decidi sair para me concentrar.

quinta-feira, março 08, 2007

O fenómeno dos homens que não se confessam

Estava no café, e depois de um trocar de palavras e de atenções. Ó padre, as confissões são pá semana? Respondi afirmativamente. Sexta. Mais umas palavras e atenções, umas graças, e despedimo-nos. Então até sexta se não for antes. Ó padre, eu não vou lá. Perguntei só para dizer à minha. Voltei atrás. Não me diga que nem desta se confessa! Ó padre, sabe… As palavras não eram abundantes para explicar a sua pouca vontade ou indecisão. As asneiras, as carvalhadas. Que vou lá fazer se depois vou continuar?
Ai o fenómeno dos homens que não se confessam! Não é único, este amigo. Faz parte de um universo que nos devia levar a reflectir. Porque será? Porque sempre foi um hábito apenas das mulheres? Ou então consequência de machismo da parte dos homens não assumir? Ou então ser uma Igreja feminista a que temos? Ou dificuldade em aceitar a fé? Ou não acreditar no dom do perdão de Deus? Ou então não sei.
Segundo me dizem, depois de umas asneiritas, de umas carvalhadas, custa-lhes confessar-se. São as razões apresentadas. E julgam que não devem porque ao sair do confessionário já estão naquela porrada de palavras. Mas isso não é propriamente grande pecado! A não ser que sejam ditas para magoar alguém. É antes uma falta de respeito, uma falta de educação. Imaginem o que seria no norte do país, onde dizer asneiras é um hábito normal de todos, até dos padres!
Se for essa a razão, não há razão para não aparecer sexta. Mas será?