sexta-feira, abril 30, 2021

fidem [poema 315]

Há um homem que me corre nas veias 
Traça palavras pelo que sou e abandona-me 
Numa corrida sem fim, sem sair de mim. 
Sei-o pela cor do sangue quando caio e é branco 
E pela força que esboça o levantar e é eterna. 
Sei-o porque não o sabendo, o sinto. 
É isso a fé que alguns proclamam como tua, 
Somente tua forma de seres em mim.

terça-feira, abril 27, 2021

os padres santos IV

Conheço padres que são muito discretos. Vivem como uma ilha no meio das suas comunidades. São vistos por detrás das cortinas das janelas, com medo de serem vistos. Ou então no altar. Evitam olhar as pessoas olhos nos olhos. Mas até são capazes de rezar por elas. Como não se sabe o que fazem para além dos sacramentos e de estarem em casa, imaginamos que rezam pelas pessoas e pelas necessidades. Necessidades que eles próprios têm pouco. Porque o pouco lhes basta. Quase nunca saem para fora do seu território. Quase nunca participam nas actividades da sua diocese. Nem nas actividades sociais das comunidades onde são párocos. Acham que não têm lugar em lado nenhum. Mas como vivem com pouco, creio que são santos. É que o pouco, aos olhos de Deus, pode ser sempre muito.
 

sexta-feira, abril 23, 2021

os padres santos III

Conheço padres que procuram estar com as comunidades, fazer parte delas. Tanto que, às vezes, se confundem com elas. Se confundem no meio delas. São padres que inventam pouco, mas incentivam muito. Vão rezando aqui a acoli, de uma maneira ou de outra. Mas não rezam muito. Têm a cabeça ocupada a pensar no outro. No irmão que sofre e que está doente. Sabem comunicar muito bem. Comunicam não apenas com a palavra, mas com a vida. Mas sentem sempre que lhes está a escapar alguma coisa. Que ainda lhes falta o não sei o quê. Que a Igreja deveria ultrapassar-se a si mesma. Que Deus é que salva. E com isso tentam sossegar a consciência do que não conseguem fazer. E são santos. Obviamente que são santos. Em que é que não o seriam? 
 

quarta-feira, abril 21, 2021

madalena [poema 314]

Deixo os cravos atrás de nós e deixo ir o meu perfume contigo 
a cruz lavou-me os olhos e o sudário limpou-os 
 
piso descalça o meu passado, entre as casas, para te ver 
e não te vejo senão dentro de mim 
vivo como eu vivo 
 
Mc 16, 1-8

domingo, abril 18, 2021

A fé provoca-nos muitas dúvidas.

No meio de uma conversa amena sobre a fé, o Sérgio disse que a fé nos provocava muitas dúvidas. Disse-o como se fosse melhor que não ouvissem o que acabara de dizer. Teve medo do que disse. Teve medo da nossa reação. Mas disse-o, e gosto dele por dizer o que pensa. Por perguntar e procurar. Tal como o Tomé. Este apóstolo é conhecido, desde sempre, como o símbolo de todos aqueles que têm dúvidas de fé, que têm dificuldade em acreditar. Não é completamente justo este atributo. De facto, Tomé era honesto na sua dúvida. Não escondia as suas fraquezas e incertezas. Não tinha medo de perguntar e de buscar a verdade. Aliás, não conseguia viver com uma pergunta sem resposta. E procurava por ela. Tomé, mais do que símbolo das dúvidas de fé em si, é o símbolo de quem não esconde as suas fraquezas, inseguranças ou dúvidas, e procura e espera em Deus as respostas. Nele percebemos que qualquer cristão pode passar por dificuldades, ter perguntas, levantar objecções. Afinal, a fé é um caminho imperfeito na busca do mais que perfeito. A fé é um caminho irregular em que cada barreira se transforma em escada e em que cada poça de lama se torna o momento ideal para dar um salto. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como podemos ter a certeza da nossa fé, senhor padre?"

sexta-feira, abril 16, 2021

sementeira II [poema 313]

o homem cai da cruz porque a subiu, de peito aberto 
pisou as vestes que trazia como sombra 
 
Morres de novo, morres todas as vezes 
Mas não cais, porque estás no soalho 
E as flores não caem, porque nascem do chão 
 
o homem brinca ao faz de conta e a tempestade cai 
porque o homem não é o céu 
e as pedras são pedra 
 
Morres as vezes que for preciso, mas não te conseguem matar 
apenas te conseguem semear. 
 
Marcos 15, 2425

quarta-feira, abril 14, 2021

os padres santos II

Conheço padres que não param, que se multiplicam. Que andam de um lado ao outro a fazer tudo. Tratam do administrativo e do pastoral. Criam e recriam actividades, eventos, momentos. Estão com toda a gente e, ao mesmo tempo, não estão. Porque não conseguem estar. O tempo que lhes sobra é para fugir para outra actividade. Para estes, os sacramentos são actividades. Vivem animando a comunidade e desanimando perante a sua inércia. Vivem de tudo, como actos isolados e não como processos. Mas são santos. Se calhar rezam pouco com as orações. Mas rezam muito com a vida e o cansaço. Rezam com a depressão e com a entrega constante ao Senhor no que vem a seguir. 

"os padres santos I"

segunda-feira, abril 12, 2021

os padres santos I

Conheço padres que parece que vivem recolhidos, mas vivem encolhidos. Padres que rezam escondidos, mas rezam todos os dias a Liturgia das Horas e o Terço. Passam pouco tempo com e na comunidade. Pastoralmente mantêm-se, em geral, no sacramental a que chamam espiritual. Alimentam-se nos sacramentos, e bem. Para eles vivem. Para eles canalizam as suas forças. ‘Pouco mais’ é exagerado, mas é mais ou menos ‘pouco mais’. Pouca preocupação com a catequese, com a pregação, com o social. Vivem no encontro com Deus e esquecem o encontro com os outros. São santos, são. Vivem para estar na intimidade de Deus Pai. Talvez sejam santos no sentido humilde e pequeno da realidade. 
 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Porque é que Deus precisa dos padres?"

sábado, abril 10, 2021

sementeiras [poema 312]

o homem cai da cruz quando te descem nos panos 
ou desces por tua própria vontade, porque te abaixaste 
 
o homem é depositado na escuridão quando te sepultam 
por pouco tempo, o tempo das sementeiras 
 
e o vento recolhe a tempestade e sopra, 
entra pela face, como um eco, e não mais pára, 
 
e a pedra fria que te encerrou é agora a escada 
que o homem despido folheia por dentro de si 
 
e o silêncio que selara o sepulcro, o esvazia 
desembaraça a esperança que a morte não matou 
 
no maior milagre do tempo sempre a vir 
de ficar para sempre, mesmo quando partir 
o tempo eterno das sementeiras...
 
Lucas 24, 1-12

domingo, abril 04, 2021

O Miguelito e a Ressurreição

Uma das professoras da escola do Miguelito faltou vários dias, porque o seu marido falecera. Ora, o Miguelito gostava muito daquela professora, sabia que ela estava muito triste e, por isso, perguntou à mãe se achava que, se pedissem muito, Jesus poderia ressuscitar o marido da professora. Admirada com a inquietação do filho, a mãe respondeu-lhe que o marido da professora já tinha ressuscitado para a vida do céu, e que estava ao pé de Jesus. E o Miguelito, como é seu hábito, arregalou os olhos e disse que isso era muito bom. Só não entendia porque é que as pessoas tinham medo de morrer e ficavam tristes. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Três perguntas e muitas mais"

sábado, abril 03, 2021

ioseph ab arimateia [poema 311]

Fui sepultado contigo na edícula do meu passado 
Ali fizemos morada, pequena casa encavada, os dois 
Sem nos falarmos com as palavras 
 
Fui atrás dos gritos da multidão com o teu nome 
Ao contrário. Do alto pendias meu coração 
Caído 
 
Fui dono do meu passado no estio dos romanos 
Entre as barcaças que me afastavam de ti 
Nas horas tardias em casa de Simão 
Ao anoitecer 
 
Da nossa vida 
 
(Jo 19, 38) 

sexta-feira, abril 02, 2021

madeiro [poema 310]

morres nos meus braços de madeira no cimo da escada 
 
o sangue escorre, cai e desce 
até ao nascente do rio e desaparece 
na minha água inquinada 
 
e encontro a dor no pulsar do teu costado em meu peito 
aceleramos os dois o respirar num abraço colado 
pelas lágrimas de sangue a arder com avidez

inclinas-te para te entregares por inteiro a mim, 
e expiro contigo para ganharmos vida 
sem fim… 
A tua e a minha missão é cumprida. 
 
oh morte que não deixas morrer o amor, mesmo depois 
de morrermos unidos os dois. 
 
(Jo 19)

quinta-feira, abril 01, 2021

lavadeiro [poema 309]

Não consinto que me laves seja que parte for do que é meu 
Nem por fora nem por dentro da pele, a ribeira 
vai vazia e os tanques estão cheios até cima, de terra 
Que é húmida, e deixa marcados os passos errados que dou. 
Vou descalço porque se perderam as sandálias quando te percorri 
Cansado de tanto andar 
Por aí. 
 
Não quero a tua água, somente o pão molhado da tua taça. 
por dentro me lava esse pão e me azeda 
E não consinto que me laves sem saberes: 
Nego-te e renego-te, porque me nego a mim. 
 
(Jo 13, 1-15)