quinta-feira, abril 24, 2008

Os maus é que deviam morrer

Os maus é que deviam morrer. Estava revoltada, dizia-me. Só por dizê-lo eu intuía que não era revolta. Era dificuldade em entender, em aceitar. Já viu, padre. Tinha apenas 32 anos. Tinha duas crianças. Morrer assim de repente. Sem explicação. Os médicos falaram em infecção. Mas nunca justificaram. Foram dois dias. Em dois dias foi. Não é justo, padre. Deus não foi justo. Ela era boa pessoa. Tinha razão neste ultimo comentário. Reconheço que o que conheço dela fazia dela uma pessoa boa. Mas não tinha razão no penúltimo. A justiça de Deus não tem qualquer semelhança com a justiça que usamos os homens. Quem merece ou não o amor de Deus? A quem é justo Deus amar? A quem é justo Deus chamar? Porque havia de chamar apenas os maus? E o mundo ficava a abarrotar dos bons até se tornarem maus?
É maravilhoso Deus amar, não porque se mereça, mas porque quer. É assim o amor no matrimónio também. Ama-se como a pessoa é, independentemente dos seus defeitos ou fraquezas. Ele ama porque ama. Não ama porque tenha de amar. Por isso a sua justiça é diferente da dos homens, que dão consoante o que o outro merece. Que julgam consoante méritos ou deméritos. Será que Deus não poderia ou deveria amar indistintamente? O nosso problema não será a inveja da justiça de Deus, porque não conseguimos amar como Ele? Porque é que só os bons deveriam viver? E porque havemos de fazer distinções numa hora tão bonita como é a entrega total a Deus da nossa vida? Um dia, num funeral duma amiguinha jovem, disse que Deus gosta de ter o seu vaso cheio das flores mais belas. Quando encontra uma quere-la o mais depressa possível. Deus é justo porque nos sabe amar a cada um como cada um precisa. Deus é justo porque na Sua balança pesa a pessoa e mais nada.

quinta-feira, abril 17, 2008

Nem Pai-Nosso nem Ave-maria

Lembro como os meus pais rezavam comigo quando ainda gostava mais da bola que de outra coisa. Lembro como a minha mãe me aconchegava os cobertores e me ajudava a dizer a Jesus que gostava muito Dele. Lembro que ia à missa com ela e, embora não percebesse bem o que por lá se passava, desejava ardentemente que chegasse o Domingo para irmos todos lá de casa à missa. Era uma festa. Lembro que o primeiro dia de catequese foi um grande feito. Já estava na catequese! Lembro que rezávamos o terço em família e até me gabava de o rezar ou de joelhos ou de braços em cruz. Apesar de poder parecer um excesso, eu sentia na altura que era um grande amigo de Jesus porque era capaz de me sacrificar com Ele na oração. Outros tempos. Outra forma de ser família. Outra forma de estar no berço da sociedade e da Igreja que é a família.
A João é catequista do primeiro ano. Tem dez miúdos na catequese. São muito queridos, dizia. Mas, senhor padre, não sabem nem uma oração. Nem Pai-nosso nem Ave-maria nem nada. Fico triste. Tenho passado muito tempo a ensinar-lhes a Ave-maria. Não aprendem. Insisti para pedirem aos pais que rezem com eles. Um miúdo respondeu-me que o pai não tinha tempo. Que quando ia para a cama, estava muito cansado e tinha que levantar-se cedo. Na missa procuro-os e não os encontro. Que hei-de fazer, senhor padre?
Não soube responder. Competia aos pais responderem. Encolhi os ombros. Consegui apenas dizer que não desistisse e que mostrasse como Jesus gostava deles e gostaria que eles conversassem ou brincassem com Ele como falam ou brincam com os amigos.

quarta-feira, abril 09, 2008

a senhora vai à missa

Doente, a senhora Ascensão, não pode caminhar por seus pés. Estes não ajudam a transportar o peso da vida, da idade, da doença, das dores. Antes era capaz de fazer quilómetros para se encontrar com o Senhor na Eucaristia. Em muitos anos não me lembro de faltar à missa de Domingo, senhor padre. Mas agora só vou quando a minha filha me leva de carro. Ela mora longe. Não vai sempre. Não me visita sempre. Não pode sempre. E aqui, como é uma anexa, passam-se várias semanas sem missa. Sabe, já não há padres que cheguem para as encomendas. A paróquia fica a três quilómetros. Não consigo. As pernas não ajudam, as malvadas. Sorria e olhava para elas. Inchadas. Rosadas. Mas olhe que eu vejo a missa na televisão. Interrompi-a para dizer que fazia bem. O importante era o coração que estava disponível para celebrar o dia do Senhor. Que às vezes se podia ir à missa sem celebrar a Eucaristia e sem celebrar o dia do Senhor. Interrompeu-me ela o raciocínio para acrescentar. Mas olhe que faço tudo como se lá estivesse. Levanto-me e sento-me. Ajoelho-me. Respondo. Será que faço bem?
E nesse momento lembrei aqueloutras que me contavam que viam a missa enquanto cozinhavam ou arrumavam a casa. E pensei: faz bem melhor que aqueles que ouvem a missa enquanto fazem outras coisas. Por isso repeti com mais força. O importante é o coração disponível para celebrar o dia do Senhor. A Ascensão celebra com mais verdade que muitos que vão à missa. Saiba que nesta dor de sofrer e de não poder ir à missa, a senhora vai à missa.

sexta-feira, abril 04, 2008

penso que sinto hoje aquilo que é ser padre

Deus fez tudo o que somos. Por isso fez o que sinto neste momento e agradeço-lho, embora Lhe peça um sinal. É que hoje penso que sinto o que é verdadeiramente ser padre. Ou pelo menos o padre que Deus me pediu para ser e as capacidades que me dotou para o ser. Hoje entendo que ser padre nem sequer é ouvir as pessoas. Hoje entendo que a Igreja de Deus nem sequer é a igreja das celebrações. Elas são a fonte para a nossa vida. No entanto a Igreja de Deus é a Igreja da vida, a Igreja da vida dos homens, a igreja dos homens. Ser padre é estar com a vida e com os homens. É estar com eles nos seus problemas e aflições. É estar disponível para as suas vidas e vivências. É ser com eles. É deixar de sermos apenas o homem que Deus quis que fôssemos para sermos o padre que Deus quis fazer para os outros. Hoje penso que sinto o que é aquela entrega total de que tanto se falava no Seminário. Não é dizermos a Deus Sou todo teu. Mas viver dentro de si os homens que Deus te entregou, quase deixando de te sentires a ti para sentires os que Deus ama, ou o Deus que os outros têm dentro de si ou que precisam ter dentro de si. Hoje penso que sinto o que é a minha missão sacerdotal, a tal missão do sacrifício, porque tenho de suportar o peso dos outros nos ombros. Até parece que percebo melhor porque Te entregaste na cruz, porque carregaste com o peso do madeiro. É um peso tão grande! Não é meu, mas levo-o nos ombros. Têm sido tantos os pesos que me têm procurado ultimamente. Sinto-lhes cada quilo. Quilos que precisam do padre e do Deus que o padre lhes transmite. Queria sentir outras coisas. Insisto em querer senti-las. Mas é isso que sinto. E por isso penso que sinto hoje aquilo que é ser padre. Mas, ó meu Deus, podias confirmar-me se é mesmo isto o ser padre? Podias confirmar-me se o que penso que sinto é mesmo o que sinto?