sexta-feira, janeiro 27, 2006

Que esse Jesus não era um gajo fixe

Contaram-me. Um amigo. Alguém que sabia o que dizia e onde queria chegar. Tudo se passara há uns anos atrás, numa tribo africana. Não eram propriamente os missionários, mas um grupo de gente cristã bem intencionada, gente de fé. Andavam por todo o lado, na tribo, a pregar, a evangelizar. E então, com toda a ternura possível nestes ambientes, explicavam que Jesus era bom, muito bom. Muitíssimo bom. Que até Se deixara matar por amor, que Se deixara bater e que O espezinhassem também. São palavras que ele utilizou. E que estava sempre disposto a dar a outra cara. Que até Lhe tinham escarrado na face e O tinham pregado numa cruz. Não deve ter sido passado muito tempo, segundo me constou. Uma horas apenas após a denodada pregação. Um ancião da tribo. Daqueles que têm a primazia de tomar a palavra. Não. Respondeu que não. Que esse Jesus não era um gajo fixe. Deve ter dito de outra forma, na linguagem dele. Que ele não podia ser um gajo fixe. Que era uma mulher. Não era guerreiro. Só podia. Um homem não deixa que façam isso. E acrescentava o meu amigo no final da história, que me deixou de olhos escancarados e dentes cerrados para conter - deixa cá ver que emoção devo transmitir! – um esboço de um sorriso contido. Temos de mostrar a esta gente, e a todos os cristãos, e a todos os homens de boa fé, ou de má fé também, que Jesus vale a pena. Que Cristo era forte, alegre, dinâmico, vivo, revolucionário. Que Cristo dá sentido à vida.
Foram estas as palavras do meu amigo. Ouvi e acenei com a cabeça. Para a direita e esquerda?! Para cima e para baixo?! Das duas maneiras, mas não ao mesmo tempo.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

A pensar em si

Tal como na eucaristia, aqui, ao meu encontro, muito discreta. Precisava confessar-me. O normal. O comum. Óculos pretos. Mas bonita. Assim uma beleza normal. Daquelas que não chama a atenção, mas que depois de olhar, concentra a atenção. Rosto bem torneado. Formas na média, que nem costumo olhar! Imagino que sejam. Reparo agora que sim. Mas aquilo que podia concentrar a minha atenção eram, de facto, os olhos verdes. Porque sim. Porque são cor da esperança. Porque gosto.
Recolhemo-nos para um canto, o canto do Confessionário. Havia algum ruído na sacristia. Abstraímo-nos. Diga. Não sei por onde começar. Não tenho certeza de querer confessar. Receio o que possa significar o que quero confessar. Como sempre, deixo que o diálogo flua. Olho nos olhos porque é hábito. Não porque sejam verdes. Ela desvia. Fico desconfiado. Mas não desisto porque estou certo de que o perdão nos aproxima de Deus e nos traz a paz que precisamos interiormente. Está à vontade, minha senhora. Tem poucos mais anos que eu, mas é uma senhora. Masturbei-me. A palavra surgiu seca. Eu não me assustei. Não é palavra que me assuste. Ia falar-lhe do egoísmo desta forma de usar a sexualidade. Do prazer que pode ofuscar coisas mais belas, como o amor. Mas que não fizesse um campo de batalha. Que não se mutilasse por isso. Nem física nem espiritualmente. Que tentasse ser fiel ao primeiro princípio do acto sexual, qualquer que fosse o acto: o Amor… quando fui interrompido por ela. A pensar no senhor. Masturbei-me a pensar em si. Olhou-me nos olhos. Eu desviei-os. Olhei na direcção do chão. Ela levou os olhos dela na mesma direcção, como que a procurar o que eu procurava. No chão. Fiquei no chão, com os olhos e com tudo. Não sabia o que acrescentar à minha conversa. Nem o padre nem o homem sabia o que acrescentar.
Engoli em seco as palavras seguintes. Ela também engoliu. Deus tudo perdoa. Agora diga o Acto de Contrição. Vá em paz e que o Senhor a acompanhe. Havia algum ruído na sacristia...

sábado, janeiro 21, 2006

Uma velhinha sincera

O padre gesticulava. Ainda lembro. Eu era seminarista. Acolitava. Tratava-se da grande festa lá da terra. Era um padre convidado. Gestos e mais gestos. Nunca gostei muito destas homilias ou sermões. Gritava. Esbaforia. Depois admoestava. Silenciava as palavras. Falava em tom grave. Usava a voz da cabeça, do diafragma e da garganta. Sabia usar as técnicas todas. Chama-se a isto a retórica homilética. Se não chama, crio-lhe o nome. Eu ria por entre os dentes. Mas havia quem chorasse. E S. qualquercoisa, com o peito cravado de sangue, suava horrores vermelhos de sofrimento. Como o sangue de nosso senhor Jesus Cristo derramado no altar da sagrada eucaristia, o sacrifício do eterno Pai. No meio de tantas palavras, a gente tentava descobrir a Palavra de Deus. Tentava, pois. E continuava a tentar porque não se conseguia. Mas havia quem arregalasse os olhos. Grande espectáculo. Isto é que é sermão. E ainda tinha que dizer várias vezes o nome de S. qualquercoisa para merecer os tostões. Tipo, quarenta e cinco minutos de palavras no mínimo. Pois que, como num espectáculo, a gente não paga para ver dez minutos de conversa.
Mas o melhor veio no final. Após a demorada missa, saímos, ou entrámos para a sacristia. Desparamentação. Vem uma velhinha ao nosso encontro. Ao encontro do padre. Muito curvada. Muito risonha. Senhor padre, o senhor falou tão bem. Parabéns. O caro padre, inchado, perguntou então. Gostou, foi, minha linda? Ao que ouviu a resposta: ai, senhor padre, desculpe, pode falar mais alto, que sou um bocadito surda!!

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Volte mais vezes, senhor padre

Vieram ter comigo após a eucaristia. Quatro filhos. Casados. Com filhos. Foi o médico, senhor padre. Disse para nos prepararmos. Se pudesse passar lá por casa. Extrema Unção. No meio da dor e do sofrimento, ainda emendei. Unção dos Doentes. Ou como seja, disseram. Penso que já nem sabiam o que pediam. Certo que a idade era avançada. Mas a mãe deles estava para partir. Dói sempre. Ainda me lembro bem da minha. Como se fosse hoje.
Então fui. Pela tarde. Uma tarde cinzenta, que está frio. Estavam uma série de netos com ela. Sempre bem rodeada, que isto do amor transparece e chama. Um quarto apertado. As filhas fora do quarto a chorarem. Entrei a sorrir. Que contraste! Mas é assim que devemos encarar. É assim que devemos animar. Entrei no quarto. Oh que alegria, senhor padre. Não tenho podido ir à Igreja. Ajoelhei-me. Era mais fácil para falar. Para escutar. Para estar próximo das suas palavras e do seu coração. Não foi propriamente para rezar ou me armar em santinho. Sorrio. A cara está mirrada. Clara. Amarelecida. Mas ela sorri. Depois de umas conversas animadas, perguntei: quer receber a Unção. Claro que quero. Saíram todos para ela se confessar. Não que fosse necessário. Mas era para falarmos à vontade. Longos minutos. Foi tão bom para mim! O que ela me disse. Melhor, o que ela insinuou da fé, da vida, da alegria, do amor. Estou aqui à espera. Dói um pouquito. Mas é quando Ele quiser. Falou de Deus. Que já não conseguia comungar. Só um pedacito. Que mal engolia. Comia pouco. Ou nada quase. E sorria. Se sorria. Beijava-me. Eu também. Contava das suas histórias de quando ia à Igreja. Que não conseguia andar. As pernas, malandras, não queriam. Que tinha ali as suas alegrias, os filhos e os netos. Já tenho bisnetos, senhor padre. E que rezava por mim. Cumpria uma promessa antiga. Tanta coisa bonita que os minutos passaram a correr.
No final, depois de tudo, depois de conversar com os filhos e netos para lhes explicar o que faz a fé, o que ajuda nestes caso, despedi-me dela. Volte mais vezes, senhor padre. Ela pedia, e eu é que saía dali cheio de Deus. Voltei lá logo passados quatro dias.

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Um negócio dos diabos!

Estão a imaginar. Uma daquelas senhoras de secretaria. Nova. Mãe de uma criancita. Muito zangada com Deus. O pai morrera há uns dias. Doença incurável. Pelo menos aos humanos. Gesticulava com nervos, mas, ao mesmo tempo, com alguma doçura. Queria perceber o que acontecera. Por isso falava comigo. Por isso viera ao confessionário. Ela prometera ir a Fátima a pé, 10 voltas à capelinha de joelhos, 10 velas para arder. E nada. Deus não a ouvira. Devia estar muito ocupado, dizia. Ou fizera de conta que não ouvia. Pedia-me para a ajudar a entender. Peguei naquela passagem do leproso que “ao ver Jesus, caiu de rosto por terra e suplicou: Se quiseres, podes curar-me”. Conhecem de certeza. Depois anui: esta deve ser a atitude de quem pede. O senhor da lepra não tinha saída. Fim à vista. E uma atitude humilde. Se Tu quiseres. Eu quero muito. Mas só se for essa a Tua vontade. Se for esse o projecto que Tens para mim. Tu é que sabes. E foi curado. Não quer dizer que a senhora não tivesse uma atitude humilde também. Mas é a postura final. A vontade de Deus. Já imaginou se Deus fizesse todas as vontades?! Da forma como alguns desejam mal a outros, imagine! E a idade que alguns teriam hoje?! O leproso abeirou-se de Jesus e fez um pedido como quem sabe que não pode, como quem sabe que está nas mãos de Deus. Nós, costumamos abeirar-nos d’Ele. Muitas vezes só nessa ocasião. E exigimos, revoltamo-nos, fazemos negócio. Será que Ele se pode comprar?! Será que Ele gosta de ser confundido com o bombeiro?!
Partiu com as lágrimas com que vinha. Mas mais aliviada, a senhora.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Que achas do Regresso do Confessionário? - inq

O inquérito que estava ao lado não apareceu por veleidade mi-nha, mas para ter certezas. Certeza de que valia a pena. Certeza de que era necessário. Certeza de que era um meio de evangelização, um local de encontro, um local de Deus. Obrigado pela força! Dos 84 votantes, 85% referiu que o Confessionário “Fazia Muita Falta”, e 7% que fazia alguma falta. Votaram ainda pessoas sem opinião (4%) e houve quem afirmasse que não fazia falta (5%). Agradeço igualmente a estes pela honestidade.

Aparece agora outro inquérito. No início de um novo ano, e olhando para o passado recente, faz todo o sentido apurar a personalidade ou figura falecida em 2005 que mais marcou o mundo, o país ou a Igreja. Sempre que quiserem, podem justificar aqui as suas razões de escolha.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Uma grande bactéria

Tinha dentro de si uma bactéria desconhecida. Os médicos não a conheciam. Estava inconsciente há duas semanas. Vinte e quatro anos. Tudo num repente. Dores esquisitas. Urgências. Médico. Medicamentos. Médicos de novo. Urgência para Coimbra. Coma. Afinal duas bactérias desconhecidas. Ligada a máquinas. Não podemos desistir. Nem de esperar nem de chorar. Liguei para o pai. Disse duas ou três palavras. Insisti que não sabia que dizer. Não me reconhecia o direito de saber o que dizer. Temia a revolta contra Deus. É que o pai era, por assim dizer, um afastado. Um que deixara Deus só para os casamentos, baptizados e funerais. Por isso nem falei em desígnio de Deus. Disse apenas que ia rezar. E do outro lado, as lágrimas disfarçadas. O mesmo pai afastado, dorido, sofrido, respondeu. É Deus que me deve estar a dar um abanão. Deve querer dizer-me qualquer coisa. Tenho pensado muito Nele ultimamente. Tudo depende Dele.
Eu sorri disfarçadamente. Por detrás do auscultador. Um misto de dor e alegria.

P.S. Já passaram quatro semanas e ela já foi desligada das máquinas. Dois pontos a favor de Deus.

sábado, janeiro 07, 2006

Não pode ser assim esta fé

Há pouco mais de cinco minutos. Por telefone porque é mais fácil por telefone. Não se vê a cara do padre. Triste ou irritado. Mas de certeza magoado. Tudo acontece em 50 segundos e dá para transtornar uma semana inteira. Que é dia de Santo qualquer coisa. Nem vem ao caso. Para a semana já. Tem de ser. Já está tudo combinado. Mas combinado com quem? Ó sr padre, basta marcar a procissão. Hoje é Sábado. Os horários da próxima semana estão necessariamente marcados. Não dá para fazer alterações. Mas tem de ser. Não interessa se o padre já tem outros compromissos. Tem de ser porque senão o padre tira-nos a fé. Ou fica mal visto. O povo revolta-se. Não pode acabar com uma coisa. Pois. Mesmo que ela seja desconjunturada. Marcada à pressa. São estas as nossas tradições. É esta a nossa fé. É esta a fé daqueles que só aparecem na festa. Daqueles que dizem que vão perder a fé se o padre não fizer das tripas coração à última da hora. A fé daqueles que não sabem o que é a fé.
E andamos nós nisto. A trabalhar pela fé de quem não quer senão não ter fé. Por um lado, esta ideia de trazer os afastados para a Igreja não é despropositada. Mas tem de ser à custa de tanta falta de fé?! Ou à custa do mau uso da fé?!

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Queria saber como posso ter fé

A Maria tem 27 anos. É uma moça normalíssima. Digo normalíssima porque faz o que as outras fazem. Porque vive como as outras. Sonha. Trabalha. Diverte-se. Namora. Nunca soube o que era a fé. Nem se valia a pena tê-la. Como se a fé fosse algo que se tem apenas porque dada. É o que muitos pensam depois de ser baptizados. Ou nem pensam. Apenas se sentem de consciência tranquila. Ou de superstição sossegada. Porém, depois de dada por Deus, tem de ser querida, aceitada, pelo próprio. Tudo começara no funeral do avô. As palavras do padre. Não sei quais foram. Não lembro. Só sei que foram as palavras para ela. A Palavra. A Palavra de Deus. A emoção do momento. A interioridade da situação. A profundidade do sentimento. Apercebeu-se que a fé era imprescindível. A morte fez-lhe perceber que algo mais era necessário na vida. Tocou à porta do padre passados poucos dias. Os suficientes para ter a certeza que queria falar com ele. Ainda estava de preto. Próprio destas alturas. Um preto de timidez. Os olhos fixos no chão. O medo da resposta. Mas a certeza da vontade. Queria saber como posso ter fé. Queria descobri-la. Queria baptizar-me. Falei-lhe do Catecumenado. Não tem mal. Também não quero baptizar-me sem saber o que é a fé. Primeiro quero conhecer a Deus. Quero aprender a rezar. Quero aprender a falar com Ele. É possível falar com Ele?! Foram quase dois anos. Antigamente, mas muito antigamente, nos tempos quase primitivos da Igreja, o processo da fé era exactamente o contrário do processo actual. Primeiro convertiam-se. Depois tinham formação. Finda esta, baptizavam-se. Hoje, baptizam-se, frequentam a catequese. Se frequentarem. E só depois se convertem. Se se converterem. A Maria estava muito consciente no dia do seu baptismo. Consciente do que queria. Da sua fé. Do seu amor por Deus. Baptizou-se. Crismou-se. Comungou pela primeira vez. Agora tem fé e está diante dos meus olhos, com os seus nos meus, a brilhar. A Maria. E diz que precisa mais. Que precisa um compromisso ainda mais sério com Deus. Mais e mais. Quer mais. Muito mais… Quantos dos baptizados querem mais?!