quarta-feira, novembro 30, 2022

A primeira comunhão das últimas

Tinha terminado a celebração da eucaristia onde tinha sido baptizado e fizera a primeira comunhão com outros meninos. Estava engalanado e feliz, o Tomás. Toda a família em seu redor e a querer tirar fotos com ele. Mal se podia passar na coxia. A avó era, sem dúvida, a mais expressiva. Estava orgulhosa do neto e dos passos que acabara de dar. Era uma mulher de fé e de missa semanal. Por isso, ao cruzar-me com eles, nos cumprimentos e manifestações de alegria, a avó afirmou alto e bom som Senhor padre, agora já tenho quem me acompanhe à missa. E o pequeno Tomás, nos seus sete ou oito anitos, fez cara feia, do género de cara incomodada, e disse que não. Estava muito perto de mim e foi possível olhá-lo nos olhos e perguntar-lhe se não tinha intenção de voltar a comungar. Baixou os olhos e disse que não queria ir à missa muitas vezes. Era só aos domingos, insisti. Mas isso era muitas vezes para o Tomás. O irmão mais velho repreendeu-o dizendo que não devia dizer isto em frente ao senhor padre, e ria-se. Os pais também se riam, vá-se lá saber que graça tinha o que o petiz acabara de dizer, consolados pela festa, pelos fatos novos e o banquete para onde iam agora. A avó baixou o rosto envergonhada e eu segui o caminho coxia abaixo que a seguir tinha outra missa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A comunhão do casamento"

quinta-feira, novembro 24, 2022

A Igreja dos bonzinhos

A mãe do Carlitos não vai à missa porque, e repito palavras dela, só lá vão as beatas falsas. Como se aqueles que fazem parte das comunidades cristãs tivessem de ser impecáveis, perfeitos e santos. E como se o espelho da nossa fé tivesse de ser o outro. Uma fé em comparação com outras fés. A medida da fé não é a medida dos números nem das comparações. 
A mim já me cansa esta mania de criticar a Igreja como se nela só pudessem participar bonzinhos. Até nisso, caímos facilmente na tentação de criar elites. As pessoas da comunidade cristã não têm de ser boas. Só têm de estar a caminho de serem cada vez melhores. E podem ser más. Podem ser grandes pecadores. Todos são bem-vindos e cabem nas comunidades cristãs, tanto quanto no coração de Deus. 
Pensar uma Igreja pura, santa, imaculada, constituída apenas por bonzinhos, é uma utopia. Não existe. E ainda bem, porque assim se percebe que todos têm lugar no coração de Deus e que o Seu amor é gratuito, é um dom, não se dirige a elites.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como se avalia um padre?"

segunda-feira, novembro 21, 2022

o menino rei apenas menino [poema 353]

era um menino como outro qualquer 
a mesma roupa, a mesma terra nas sandálias
a mesma pele e o mesmo coração, e o sangue a correr 
por dentro e por fora, no chão
a caminho do mar

era um menino por construir, no lugar de se viver
era um menino inteiro, por dentro da imensidão
que a voz da terra desconhece,
ao dizer
 
era aquele que é, nunca deixará de ser,
o magro encanto do tamanho que passa
de boca em boca como um beijo
sem palácio

terça-feira, novembro 15, 2022

Unidades pastorais como comunidades pluriministeriais

A paróquia tem-se vindo a esgotar. Mais do que “comunidade cristã”, tem-se tornado um aglomerado de crentes, na sua maioria pouco ou nada praticantes, voltada para uma prestação de serviços religiosos. Tem aumentado o número de bancos vazios nas igrejas e o desinteresse em participar na comunidade paroquial. Também parece fazer cada vez menos sentido configurá-la como um território, pois residir numa povoação já não é sinónimo de fazer parte de uma paróquia. E a pandemia pelo novo coronavírus potenciou tudo isto, tornando necessário repensar as paróquias e a acção pastoral junto das pessoas. A paróquia ainda é a estrutura onde se faz mais prática e visível a acção da Igreja. É uma realidade pastoral necessária, mas tem cada vez maiores dificuldades para cumprir a sua missão. Por isso se tem falado muito na hipótese de se progredir para unidades pastorais como conjuntos agrupados de paróquias. 
No entanto, para se fazer esse caminho, a reflexão não pode centrar-se nos padres ou nos eventuais párocos, mas nas potencialidades das comunidades como um todo. É que alguns bispos, para colmatarem as debilidades das paróquias, têm procurado quase exclusivamente soluções clericalizadas. Desenham unidades pastorais por causa das necessidades efectivas de párocos, que são cada vez menos para cada vez mais comunidades paroquiais. Fazem pacotes de paróquias para sacerdotes. Reagrupam paróquias de modos diferentes. Procuram soluções ou alternativas com padres vindos de fora, padres substitutos, ou outras figuras eclesiais similares, para se continuar a fazer as comunidades cristãs dependerem de uma única pessoa, o padre. 
O ideal seria pensar e estruturar comunidades mais dinâmicas, menos ligadas a lugares, menos dependentes dos padres, mais animadas e confiadas a leigos e equipas corresponsáveis, comunidades a que poderíamos chamar de pluriministeriais. Uma unidade pastoral não pode ser um agregado de paróquias do padre para lhe facilitar a vida, mas uma comunhão de comunidades e cristãos que unem sinergias, capacidades, potencialidades, recursos, ministérios, numa diversidade corresponsável, aberta, dinâmica e participativa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As paróquias que estão a morrer"

quinta-feira, novembro 10, 2022

A encarnação de Jesus hoje

Estávamos numa amena discussão sobre a realidade das paróquias e dos padres que as presidem. As vozes que mais se faziam ouvir eram as vozes dos inconformados, como eu, que pensam as paróquias e a evangelização e ansiosamente querem dar passos na direcção missionária da Igreja. O ambiente da sala era composto por pessoas habituadas a reflectir, maioritariamente sacerdotes. Por isso se notava algum desalento no tom das vozes. E às tantas, empolgado e a esbracejar, um dos presentes clamou por uma nova Igreja, dizendo que era necessário que Cristo voltasse à terra, que encarnasse de novo para renovar tudo. Em resposta, um dos padres mais velhos, num tom de voz próximo do murmurado, por dentro da máscara que ainda se usava na altura, interveio para dizer que não era preciso, pois Ele estava dentro de nós. Não precisávamos que Ele encarnasse de novo no mundo, mas que nós o deixássemos encarnar em nós. E calou-me. Calou-nos. Com tudo o que esse silêncio significa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Que pode Deus fazer através de mim?"

sábado, novembro 05, 2022

o catequista que reza pouco

Pouco se esforça por ir à eucaristia e reza muito pouco. No entanto, gosta de ajudar e de dar o seu contributo à comunidade. Quando uma amiga, que é catequista, lhe lançou o convite, decidiu voluntariar-se com entusiasmo. Foi assim que descreveu a nova missão que queria abraçar. Ia dar um pouco de si na paróquia. O pároco agradeceu a nova catequista e, com alguma discrição, aproveitou a ocasião para recordar que a catequese serve não tanto para o catequista dar de si, mas para, passe a expressão, “dar” de Deus. Por isso recordou quão imprescindível era a oração. E prosseguiu. Assim como não há fé sem oração, é difícil falar de Deus sem ambiente de oração. Não são os dogmas, as normas morais ou as doutrinas que transformam as pessoas em crentes, mas o encontro, a proximidade e a intimidade com Deus. Também não se pode falar de Deus em abstracto, como teoria ou ideologia, pois isso apenas teoriza a existência de Deus e o mais provável é que o afaste da realidade do indivíduo. Nesse sentido, a evangelização ou a catequese têm de propor a oração e a contemplação. Viver dela. Por melhores, mais eficientes ou mais estudados que sejam os agentes de pastoral, em geral, ou os catequistas, em particular, o testemunho brota da oração. Fala melhor de Deus quem fala com Deus.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Nem Pai-nosso nem Avé-maria"

quarta-feira, novembro 02, 2022

Conheço um leigo que faz funerais

Numas localidades não muito remotas, onde o colega padre concentra o cuidado de mais de uma dezena de paróquias com uma população bastante envelhecida, muitos dos funerais são presididos por um senhor a quem o bispo da diocese pediu que auxiliasse este sacerdote. O senhor deve ser idóneo, pela formação que já teve e porque, dizem-me, é muito bom cristão. O colega padre não consegue estar em todo o lado ao mesmo tempo e são raras as semanas que não tenha mais de cinco funerais. Claro que a necessidade obriga a mudanças que em tempos eram impensáveis. Claro que não basta justificar esta mudança com a necessidade. Claro que ainda não é muito comum este procedimento, porque as mudanças têm custos. Claro que há um longo caminho a percorrer. Mas o caminho está ai, aberto. A abrir-se.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Custa tanto ser padre nestas ocasiões..."