Gostava de começar este texto com o blá blá blá fácil, embora sentido, que vem a propósito da quaresma, ou até da semana santa, ou até da Páscoa. Dizer coisas que são bonitas e tocam o coração. Falar da Paixão ou da morte, ou até da Ressurreição. Mas, com o avançado do cansaço, subiram-me os azeites à tona do sabor da boca, e apetece-me começar o texto com Esta é a minha cruz. Por isso dou asas à minha vontade e começo. Esta é a minha cruz. Depois digo que a minha cruz é ser padre. Imagino-me no meio de uma enorme multidão de pessoas que me acusam, que me insultam, que me açoitam, que me escarnecem, que me comparam ou à Igreja a um criminoso, que me fazem carregar com o fardo da cruz e me fazem subir montanhas mostrando a minha cruz. Aqui está ela. Para quem não conseguir avistar ao longe, que venham as televisões. E os jornais. Embora o papel esteja caro, que venham a voar com o vento, pois leves, chegam cá depressa. Sim. Esta é a minha cruz. Sou padre, digo. E depois de subir os montes, subo a cruz. Estou já com os braços abertos. Alguns querem abraçar-me e dizer que precisam dos meus braços, das minhas pernas, da minha voz, que precisam que eu desça da cruz, me torne vivo e lhes indique caminhos. Afinal o padre é isso. Mas outros olham-me com vontade de me darem vinagre a beber. Toma, que o teu sangue há-de jorrar todo pelos sulcos desta terra. Bem que eu queria ser padre doutra época. Padre doutra história. Pode ser da Tua, Senhor. Mas Ele não responde. Está também cansado e com o rosto sobre o madeiro. Afinal estamos ali os dois. Eu queria ser padre da Sua história, mas Ele diz-me que Ele é que está na minha história. Cansado disto, destas correrias que me trouxeram ao cimo deste calvário, as correrias de um lado para o outro, de uma missa para outra, de uma paróquia para outra, de umas vidas para outras, vou gritar. Vou gritar Pai, perdoa-lhes que não sabem o que fazem. Mas hesito. Porque eu também preciso do Seu perdão. E porque está ali Jesus na outra cruz e envergonho-me de usar as Suas palavras. Já sei. Vou dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonaste. Vem a propósito. Tem tudo a ver. Porque a cruz era pesada e não a senti mais leve. Porém, não consigo. A voz ficou-me embargada nas duas primeiras palavras. Meu Deus. Fiquei com a boca aberta e de boca aberta. Voltamos então ao início. Vou só dizer que esta é a minha cruz. Ser padre. E do outro lado ouço uma voz conhecida. Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso. É Ele. Só pode. Foi Ele que mo disse do alto da Sua cruz. Já não o vejo bem. Estou com os olhos sem forças. Mas reconheço-lhe a voz. Ouvi-a muitas vezes ao longo da minha vida de padre. Ouvia na boca de muitos que vieram ter comigo e precisavam de um padre. Ou de mim somente. Como eu estava de braços abertos e Ele também, ocorreu-me dar um salto à Sua cruz para nos abraçarmos. Mas já não tinha forças. Não tinha forças para descer e subir de novo à cruz. Mas ainda conseguia falar. E tinha a certeza de que Ele era capaz de ler os meus pensamentos. Olha, Mestre, estás a ouvir o que eu estou a pensar? Esta aqui é a minha cruz. E acrescentava. Sou padre. Ser padre é a minha cruz. Sou um dos que gostaria de ser dos Teus. Se quiseres eu vou ai e dou-te um abraço. Imaginei-O a sorrir. Vou ai e tiro-te dessa cruz. Tiro-te a cruz. Atiro com ela para bem longe. Imaginei-O às gargalhadas. Como se fosse possível atirar a Sua cruz quando eu nem conseguia descer da minha. Mas estávamos ali os dois. A Sua cruz era maior. Era do tamanho Dele. E já ninguém quer saber de mim. Pressinto que estão todos a olhar para lá, para Ele na cruz. Foi um alívio. Ainda bem que Ele estava por perto na Sua cruz. Já posso descansar. Afinal a minha cruz é bem mais pequena. Sou padre. É pequena, mas pesa-me mais que a dos outros. Dessas não sei o peso. Se pudesse, atirava com ela. E no momento em que me apetecia dizer Afasta de mim este pequeno cálice, ouvi do cimo do calvário, daquela cruz gigante, uma voz conhecida que me disse Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.
Aproveito para desejar a todos uma Santa Páscoa. Que a nossa cruz seja um braço da Sua cruz que aponte sempre o Paraíso na Vida Eterna.