sexta-feira, março 29, 2013

Ser padre como um cireneu

Gostava de começar este texto com o blá blá blá fácil, embora sentido, que vem a propósito da quaresma, ou até da semana santa, ou até da Páscoa. Dizer coisas que são bonitas e tocam o coração. Falar da Paixão ou da morte, ou até da Ressurreição. Mas, com o avançado do cansaço, subiram-me os azeites à tona do sabor da boca, e apetece-me começar o texto com Esta é a minha cruz. Por isso dou asas à minha vontade e começo. Esta é a minha cruz. Depois digo que a minha cruz é ser padre. Imagino-me no meio de uma enorme multidão de pessoas que me acusam, que me insultam, que me açoitam, que me escarnecem, que me comparam ou à Igreja a um criminoso, que me fazem carregar com o fardo da cruz e me fazem subir montanhas mostrando a minha cruz. Aqui está ela. Para quem não conseguir avistar ao longe, que venham as televisões. E os jornais. Embora o papel esteja caro, que venham a voar com o vento, pois leves, chegam cá depressa. Sim. Esta é a minha cruz. Sou padre, digo. E depois de subir os montes, subo a cruz. Estou já com os braços abertos. Alguns querem abraçar-me e dizer que precisam dos meus braços, das minhas pernas, da minha voz, que precisam que eu desça da cruz, me torne vivo e lhes indique caminhos. Afinal o padre é isso. Mas outros olham-me com vontade de me darem vinagre a beber. Toma, que o teu sangue há-de jorrar todo pelos sulcos desta terra. Bem que eu queria ser padre doutra época. Padre doutra história. Pode ser da Tua, Senhor. Mas Ele não responde. Está também cansado e com o rosto sobre o madeiro. Afinal estamos ali os dois. Eu queria ser padre da Sua história, mas Ele diz-me que Ele é que está na minha história. Cansado disto, destas correrias que me trouxeram ao cimo deste calvário, as correrias de um lado para o outro, de uma missa para outra, de uma paróquia para outra, de umas vidas para outras, vou gritar. Vou gritar Pai, perdoa-lhes que não sabem o que fazem. Mas hesito. Porque eu também preciso do Seu perdão. E porque está ali Jesus na outra cruz e envergonho-me de usar as Suas palavras. Já sei. Vou dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonaste. Vem a propósito. Tem tudo a ver. Porque a cruz era pesada e não a senti mais leve. Porém, não consigo. A voz ficou-me embargada nas duas primeiras palavras. Meu Deus. Fiquei com a boca aberta e de boca aberta. Voltamos então ao início. Vou só dizer que esta é a minha cruz. Ser padre. E do outro lado ouço uma voz conhecida. Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso. É Ele. Só pode. Foi Ele que mo disse do alto da Sua cruz. Já não o vejo bem. Estou com os olhos sem forças. Mas reconheço-lhe a voz. Ouvi-a muitas vezes ao longo da minha vida de padre. Ouvia na boca de muitos que vieram ter comigo e precisavam de um padre. Ou de mim somente. Como eu estava de braços abertos e Ele também, ocorreu-me dar um salto à Sua cruz para nos abraçarmos. Mas já não tinha forças. Não tinha forças para descer e subir de novo à cruz. Mas ainda conseguia falar. E tinha a certeza de que Ele era capaz de ler os meus pensamentos. Olha, Mestre, estás a ouvir o que eu estou a pensar? Esta aqui é a minha cruz. E acrescentava. Sou padre. Ser padre é a minha cruz. Sou um dos que gostaria de ser dos Teus. Se quiseres eu vou ai e dou-te um abraço. Imaginei-O a sorrir. Vou ai e tiro-te dessa cruz. Tiro-te a cruz. Atiro com ela para bem longe. Imaginei-O às gargalhadas. Como se fosse possível atirar a Sua cruz quando eu nem conseguia descer da minha. Mas estávamos ali os dois. A Sua cruz era maior. Era do tamanho Dele. E já ninguém quer saber de mim. Pressinto que estão todos a olhar para lá, para Ele na cruz. Foi um alívio. Ainda bem que Ele estava por perto na Sua cruz. Já posso descansar. Afinal a minha cruz é bem mais pequena. Sou padre. É pequena, mas pesa-me mais que a dos outros. Dessas não sei o peso. Se pudesse, atirava com ela. E no momento em que me apetecia dizer Afasta de mim este pequeno cálice, ouvi do cimo do calvário, daquela cruz gigante, uma voz conhecida que me disse Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.
 
Aproveito para desejar a todos uma Santa Páscoa. Que a nossa cruz seja um braço da Sua cruz que aponte sempre o Paraíso na Vida Eterna.

sexta-feira, março 22, 2013

A minha experiência de confessar

Veio uma e sentou. Outra e sentou-se. Uma de cada vez. Sentaram-se várias senhoras, ao meu lado, para se confessarem. Cada uma com as suas vidas. No meio de tanta outra gente que não se confessa, ainda há quem tire um pouco da sua vida para tirar-lhe peso, e para o entregar a Deus, através do sacramento da Confissão. Ainda há quem busque a esperança que vem do saber-nos olhados por Deus com misericórdia. Foi assim ontem e hoje, dois dias, duas experiências, que tocaram a minha vida no mais íntimo de si. Nesta certeza de que, nós padres, somos um vaso muito frágil, às vezes algo partido, onde Deus deposita a sua água viva para refrescar quem dele beber. Aconteceu ontem numa paróquia envelhecida pelo tempo. Daquelas que são feitas de pedras antigas trabalhadas com vasos nos varandins. E no meio do desfiar de pequenos nadas daquelas muitas mulheres e alguns homens que se abeiraram da confissão, senti-me pequenino. Ouvia cada palavra como se aquelas fragilidades, aqueles pecados, fossem apenas a virtude que eu queria ter na minha vida. Porque eram uma manifestação de fé simples e humilde. Porque, na simplicidade daquelas confissões, eu me achava indigno da tamanha bondade que o sacramento da confissão tem por si. Tinha dificuldade em perceber como Deus me podia usar a mim, pois que ao lado daquela gente eu era um aprendiz. E hoje, ao confessar umas dezenas de crianças da catequese, ainda mais pequeno me senti. Elas, com o seu tamanhito de palmo e meio, fizeram-me crer que possuíam mais três ou quatro palmos que eu. Sei que eu estava na cadeira que concedia a absolvição e elas na cadeira dos absolvidos. Mas fiquei com a sensação de que as cadeiras estavam trocadas ou poderiam estar. Por mais teologias que saibamos. Por mais liturgias e pastorais, normas canónicas e sacramentais. Por mais certezas de fé que a nossa vocação sacerdotal tenha, na hora em que o perdão de Deus age através de nós, somos apenas uma frágil criatura, pequenina, que é somente instrumento, e mais nada. Inquieto por não me saber merecedor, depois destas horas em que estive a confessar, agigantou-se em mim a certeza de que sou muito pequenino.

terça-feira, março 19, 2013

Gostaste da eleição do Papa Francisco?

No dia em que se inaugura definitivamente o Pontificado do Papa Francisco, após as sondagens em que falámos sobre o Papa Bento XVI e sobre a possível proveniência daquele que o substituisse, tendo já na nossa cabeça e no nosso coração uma série de dados sobre o cardeal Jorge Mario Bergoglio e do Papa que assumiu o nome daquele que marcou de uma forma ímpar a Igreja de Cristo, Francisco de Assis, achei oportuna esta nova sondagem: Gostaste da eleição do Papa Francisco?
Podes justificar a tua opção nos comentários.

quinta-feira, março 14, 2013

Habemus Deus

Tenho um apetite enorme de dizer que se alguém tinha dúvidas da existência de Deus ou se alguém tinha dúvidas de que a Igreja era de Deus, apesar da chuva que cai, hoje tire o cavalinho da chuva. Através de homens, é certo, mas foi Ele que lá meteu o seu dedo de, não tanto um tudo pode, mas um pode com tudo, e escolheu um homem simples, com o mais simples das roupas a que é obrigado, com uma aparição que começa com uma inclinação perante todos os que estão à sua frente, com palavras de quem tem uma missão de ser bispo de uma Igreja e não o dono de um mundo, com palavras que todos entendem também ser suas, com um pedido de bênção e não com uma bênção pura e simples, com um pedido de oração não somente por ele mas por outros mais, com uma apresentação que nem é a sorrir que se farta nem é fria que se farta, pois que assim somos o comum dos mortais, com uma procedência longe dos habituais cumes do poder, lá de um continente que eu tinha escolhido interiormente se fosse eleitor, com um nome que lembra alguns dos que mais mostraram o rosto de Deus na História da Igreja, quer na vida desprendida quer na evangelização aos mais afastados, Francisco de Assis e Francisco Xavier.
Dizem coisas deste homem, e só saberemos com o tempo se são tão autênticas como queremos. Mas para já dá gosto saber delas. Que anda nos transportes como quase toda a gente. Que cozinha suas próprias refeições. Que deixou um palácio para morar num apartamento. Filho de gente humilde e trabalhadora. E por aí fora. Não quero saber tudo deste homem. Não sei bem sequer quem é. Sei que não era um papabile. Que não é uma escolha da comunicação social que tanto vaticinou, para o bem e para o mal, para os seus interesses e para os interesses de um mundo que não quer as coisas de Deus mas as dos homens. Sei apenas que ser alguém que não se contava, alguém que tem, segundo dizem, nem um para a frente nem um para trás, isto é, um sentido moderado das coisas, me faz pensar num Jesus que se preocupava mais com as pessoas que com as coisas das pessoas. Este saber faz-me bem. Faz-me bem pensar que Deus andou ali a trocar as voltas. Faz-me bem pensar que Deus vai na barca e não dorme, mesmo quando parece que o barco pode estar a afundar. É como se uma borboleta tivesse poisado no meu coração e continuasse a esvoaçar.
Repito que não sei bem quem é este homem e só daqui por bastante tempo saberei. Sei que tudo pode ser precipitado, como a chuva que está la fora, e que posso um dia ter vontade de levar de novo o cavalinho para a chuva. Sei que hão-de haver coisas, assuntos, resoluções que não me vão agradar. Sei que não se devem bater palmas ao santo, pois a procissão ainda vai no adro. Sei que este Papa continuará a ser um homem. Sei que a Igreja continuará feita de homens. Mas também sei que a Igreja é de Deus e não de um Papa ou dos homens.

quarta-feira, março 13, 2013

Já ninguém se confessa

Já ninguém se confessa, senhor padre. Disse-me uma senhora antes de desapertar o xaile da cabeça e se sentar para se confessar. Ela é do tempo das confissões que duravam várias horas com pelo menos cinco padres. Os padres passavam o período da Quaresma de terra em terra. Ali almoçavam e confraternizavam. Juntavam-se quase todos os padres do arciprestado. Segundo um colega desse tempo, era das melhores alturas do ano. Havia tempo para tudo. Até para estar às horas com a mesma pessoa na confissão. Hoje não é assim, e a senhora do xaile tem razão. Também há menos pessoas nas terras. São muito menos os padres. Não há tempo para estar horas com a mesma pessoa na confissão. Para a maior parte das pessoas a antiga desobriga pouco diz. A palavra Desobriga também não abonava este sacramento. Mas a senhora do xaile tem razão. Mesmo quem se confessa, costuma fazer da confissão um desfiar de frases feitas, memorizadas, de pequenos nadas, mas não daquilo que intrinsecamente está lá dentro de si e é pecado. Eu diria que a senhora do xaile tem alguma razão e que já pouca gente se confessa ou sabe confessar. Ou tem consciência do que é pecado. Ou consciência do perdão de Deus. E depois ainda existem aqueles que acham que não se devem confessar ao padre. Porque ele é como nós, um de nós. Pecador como nós. E embora seja Deus quem de facto perdoa, e não o padre, esquecem a graça sacramental da Confissão. Esquecem que a Confissão é um sacramento. Mas tanto dá. Dá igual estar em graça ou não. Assim como dá igual ir à missa ou não. Assim como dá igual ter fé ou não. Assim como há muitas outras coisas na fé que tanto dá ou não. É a fé dos nossos cristãos que tanto dá.

sexta-feira, março 08, 2013

Não nos dá o que pedimos mas o que precisamos

A Luísa é catequista de um grupo de adolescentes do oitavo ano. Estão naquela fase. Todos nós sabemos. A fase de colocar tudo em causa. A fase de fazer perder a paciência a qualquer um. A fase em que a presença de Deus deixa de ser passivamente aceite para ser uma realidade na minha vida. Se Deus quiser e se eles quiserem. Mas a Luísa não se explicou com estas frases. Queixou-se apenas. Estou cansada. Baixou os braços e suspirou. Depois disse que às vezes tinha a sensação de que Deus estava distraído. Não nos ajuda nesta coisa que, ainda por cima, é Dele. Na última hora da catequese, no outro dia, só me faltou chorar, senhor padre. Saí zangada porque Deus não me ajudava. O que me valeu é que quando cheguei cá fora, à rua, estava lá a mãe da jovem que me havia provocado tamanha zanga do coração. Falámos vários minutos seguidos. Foi o que me valeu. Foi Deus que lhe valeu, interrompi. Nós queremos que Ele nos resolva os problemas. E o que Ele faz é dar-nos a forma de os resolvermos. Ele não faz tudo o que queremos. Mas está lá, discreto, a fazer o que precisamos. Não nos dá o que pedimos. Mas dá-nos o que precisamos.

segunda-feira, março 04, 2013

O Papa Emérito

O hábito faz o monge e eu não sou superior ao hábito. Daí que este Domingo, na hora em que se intercede ou invoca o Papa, engasguei-me em quase todas as missas. Não veio mal ao mundo, nem à Igreja, digo eu. E cuido que os meus colegas, no geral, se devem ter engasgado também. Além do hábito, não se sabia o que pronunciar. Papa Bento XVI, pois que ainda é Papa. Papa emérito Bento XVI. Ou talvez unicamente Papa emérito. Ou nada mesmo nada. Investiguei as normas e umas coisas, mas não fiquei seguro. Escolhi, por isso, Papa emérito Bento XVI, decisão que não impediu nem o engasganço nem que fizesse um Papa emérito, pausa, Bento XVI. Ora depois da missa, corri para o café com alguns paroquianos. Fazia parte deste alguns a Adriana, que tem pouco mais de vinte anos. Qual não é o meu espanto, quando esta pergunta. Então já temos novo Papa? De onde é o senhor Emérito? Gargalhada geral incontida. A Adriana não sabia o significado da palavra emérito e convenceu-se que era o novo Papa. Valha-nos Deus, que os Papas pouco nos valem. Ainda estou engasgado de tanto rir. É o que dá termos Papa e não termos.