domingo, abril 30, 2023

buscar Deus que nos buscou

Só se pode buscar a Deus com Deus. E só se procura o que já se encontrou, mas se precisa encontrar mais. E melhor. Só podemos encontrar Deus porque Ele já nos encontrou. Ou melhor, entrou no nosso espaço para se encontrar. A procura da dúvida é apenas a permanência na dúvida. A procura do que se experimenta, é a procura da verdade. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Ontem foi assim"

quinta-feira, abril 27, 2023

a cidade velha [poema 365]

não tinha mais que umas paredes longas 
cheias de janelas com as portadas fechadas,
as pessoas dentro das paredes a esperar 
entre umas janelas e outras a esperar 
a nesga de qualquer coisa que haveria de surgir 
no vazío

terça-feira, abril 25, 2023

o jogo

Havia poucas pessoas na igreja quando entrei. Era cedo. Ainda faltava cerca de meia hora para o início da missa. Sempre que consigo, tento chegar mais cedo para estar um pouco diante do sacrário. Àquela hora, na igreja, estavam umas cinco pessoas nos bancos perto do altar, sobretudo as senhoras do coro, e mais uma ou outra noutro banco mais para trás. A meio da igreja, destacava-se uma senhora que não deu pela minha chegada. Como é meu hábito, vou saudando as pessoas coxia acima. A senhora do meio da igreja, que foi a primeira que tentei saudar, só deu por mim a seu lado. Olhou-me sem retirar a mão do telemóvel, sorriu atabalhoada, disse qualquer coisa que me pareceu uma boa tarde, e continuou a jogar o jogo que estava a jogar no telemóvel, algo parecido ao velhinho tetris. Nada de mais, portanto, nestes tempos estranhos em que os telemóveis ocupam grande parte das nossas vidas. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "É assim o braço de Deus"

quarta-feira, abril 19, 2023

Pode-me confessar?

Na terra dele há três anos que não há confissões. O padre faz aquelas coisas colectivas, como lhe chamou, mas não confessa. É um homem do campo que pouco mais sabe da vida. Mas sabe de Deus e sabe que tem de se confessar dos pecados que comete. Sabe que os tem de entregar a Deus, que Ele é que é o senhor disto tudo. Eu sou um pobre homem, padre. Sou ignorante. Tenho uma doença desde pequeno. Não tenho mais nada. Mas tenho Deus. E lá na terra o padre já não confessa. Tenho medo de morrer e queria confessar-me. Desculpe incomodá-lo a esta hora. Há três anos que não me confesso. O senhor é o padre daqui, não é? Pode-me confessar? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma senhora que precisava confessar-se"

sábado, abril 15, 2023

nuvens que vão dormir [poema 364]

o balão de ar quente viera nas mãos
a feira de brinquedos trouxera-me os sonhos de outrora
que são sempre um presente, presente.
 
e subi ao mais alto dos céus, a escapar nas sombras do sol
a olhar para a terra, os sonhos não eram mais meus
tinham asas próprias e rasavam o voo lá longe
cada vez mais longe e mais perto, presente
 
quando, esgotado, adormeci, já era tarde, era noite
o balão parou numa nuvem branca, presente
e dei conta, não era um sonho, o sol mandara
as nuvens dormir

quarta-feira, abril 12, 2023

Porque é que Deus nos criou?

Já não sei quem fez a pergunta. Se foi a Manuela, se foi o Manuel, se foram muitas pessoas ou eu sozinho. Creio que é a pergunta de quem quer perceber melhor o porquê de viver ou de quem quer saber viver. É uma pergunta de quem se pergunta por Deus para saber de si. 
Com certeza que Ele não tinha propriamente necessidade de nos criar, porque se bastava a si mesmo. Um Deus não precisa de nada. Também não faz sentido pensar que nos criou para brincar connosco como as crianças brincam com as bonecas ou os brinquedos a que gostariam de dar vida. Nem nos criou para gozar connosco no sentido de nos ver a fazer as borradas que fazemos, a fazer as opções inóspitas que fazemos ou a sofrer na nossa contingência e condição humanas. Mas então para que nos criou quando, ainda por cima, nos deparamos com a morte, que parece um fim de tudo? 
Deus é amor. É uma comunhão de três. Por isso se entende que, na sua essência, Deus é amor. Mas não é um amor egocêntrico. É fecundo. É saída de si. Não podia ser de outro modo, pois o verdadeiro amor sai de si. E assim se entende, à partida, que Deus nos tenha criado porque Ele próprio, na sua essência e definição, é amor. Também porque é verdadeiro amor, este amor que Deus é, não podia senão ser gratuito e sem qualquer tipo de interesse. Parece-me, por conseguinte, que não basta pensar que nos criou porque nos ama, porque isso, embora seja verdade, parece muito pouco. Fala mais da intenção que do seu Ser. Creio que igualmente não se pode dizer que nos criou para nos amar ou para que o amássemos, pois isso poderia ser a mesmice de querer algo para si. Se calhar nem podemos alegar que nos criou por amor, como se o amor fosse somente uma razão sua e não quem Ele é. A não ser que Ele fosse também a sua razão de ser. 
Assumo afirmar e afirmo com vontade que Deus nos criou porque é amor. E também é nesse sentido que a vida aqui na terra não acaba. A morte apenas se transforma na ponte do amor! E um dia haveremos de viver eterna e plenamente no infinito Amor. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Entre mim e Deus não há nada"

sexta-feira, abril 07, 2023

aquela agonia

Veio-me ao pensamento aquele momento da tua agonia. Não o sei descrever nem sei imaginar. Sabias o que te ia suceder, mas não sabias das forças para tal. É tão estranho ver Deus sem saber das forças, tal como nós. E depois os teus amigos. Onde estavam? Porque dormiam? Porque nada faziam para te aliviar o peso do sofrimento? Os evangelhos dizem que eles te seguiam para todo o lado. Andáveis sempre juntos. Aprendiam a vida contigo. Pousavam e repousavam em ti, nos teus conselhos, nos teus milagres, na tua segurança. Mas não estavam acordados naquela hora. Soube-se depois que, mais tarde, se esconderam com vergonha e com medo, quando tudo aconteceu, ultrapassando o seu entendimento. Ficaste sozinho, como nós ficamos tantas vezes metidos para dentro dos nossos sofrimentos, sozinhos, mesmo no meio de multidões de pessoas que ainda há pouco nos aplaudiam de pé. Veio-me ao pensamento aquele momento em que pediste ao Pai que, se pudesse, afastasse de ti aquele cálice, aquela cruz, aquele sangue, aquele peso insuportável de não saber se terias forças. A tua encarnação foi autêntica. E perceber que não tinhas a certeza das forças, dá-me muita força.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Via Sacra de um simples discípulo"

terça-feira, abril 04, 2023

O Joaquim que gritava ao crucifixo que tinha desaparecido

O Joaquim tem um pequeno atraso. O seu grande corpo físico não corresponde ao tamanho das suas capacidades intelectuais. E estas ainda são diminuídas a cada dia pelo vício do álcool. É raro não andar bêbado. Não porque tenha muito dinheiro para alimentar o vício, mas porque muita gente lhe paga copos só para o ver tonto e a tombar! Os amigos do Joaquim são aquele tipo de amigos que merecem a verdadeira designação de ‘amigos dos copos’, sem mais amizade para além disso. No entanto, o Joaquim tem um amigo Grande, tão grande que não há dia nenhum que ele não o visite na igreja. É seu hábito ir lá fazer umas orações. Mas ontem estava muito zangado e gritava para o crucifixo que tinha desaparecido. O pároco tinha mandado tapar todas as imagens da igreja na semana santa. Todas, sem excepção. Foram todas escondidas com panos e colchas velhas. E o Joaquim não conseguia ver o seu Grande amigo do crucifixo: onde estás, Quem Te levou, Quem fez isso, Vou prendê-lo, Sai daí que eu estou aqui à Tua espera, Eles são doidos, São malandros, Deita isso fora, Vão pagar tudo, Vais ver! E não parava de gesticular, de esbracejar e de gritar a plenos pulmões. Na verdade, Deus ainda hoje gosta de falar pela boca dos que a sociedade chama tontos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma certa liberdade"

domingo, abril 02, 2023

A avó que era uma santa e morrera santamente

Era muito boa a minha avó, senhor padre. Guardo-a no coração. Guardo-a como um coração dentro do meu coração. E então contou-me da fama que havia na terra de estar tudo bem em seu redor, de ela ver tudo com um olhar positivo, de estar sempre disponível e disposta para o que quer que precisassem dela. Falou também vagamente da doença que a acompanhou nos últimos dias da sua vida. Nada que a impedisse, porém, de ir à missa. Porque ela tinha algo especial com o Senhor. Ó senhor padre, era mesmo uma santa. Tão santa era que morreu de joelhos depois de comungar o Senhor. E contou que já não estava muito bem da sua saúde, mas que fora à missa acompanhada pelo marido e um outro familiar, que ela se deslocara, por seu próprio pé, à comunhão, que regressara ao seu lugar e se ajoelhara entre o marido e o outro familiar. Não mais se levantou, senhor padre. Quando a tentaram levantar, já tinha falecido. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A dona Olímpia e o menino Jesus da cabeleira"