As vozes hoje são só ecos
Ouvem-se os gritos delas sem nexo
Vêem-se dentro delas o que elas não vêm
Não têm nome, vivem sós,
São só elas, microfones sem som
São muitos gritos sem voz
Amplificados em ecos de amanhã
Que vai ser outra vez
hoje
quinta-feira, junho 27, 2019
terça-feira, junho 25, 2019
A oração do meu pai
Quando atravesso a porta de entrada do lar onde está meu pai, um frio percorre-me a espinha como se tivesse de atravessar o inverno para o ver. A saudade mistura-se com a ansiedade e o receio de constatar o seu estado de saúde progressivamente mais débil. Quando estou mais que uma semana sem o ver, aperta-se-me a saudade. Quando o tenho de deixar, aperta-se-me o coração.
Ontem repetiu-se este tipo de episódio. E depois da troca de mimos, como é costume, dirigimo-nos, a passo de caracol, para a capela do lar, onde rezámos, juntos, o que nos apeteceu. Pai-nosso, avé-maria, salvé-rainha, consagração-a-nossa-senhora e por aí fora.
Numa das pausas desse momento lindo, disse-lhe com simplicidade, Paizinho, tenho sentido tanto a falta da tua oração por mim, que nem imaginas! Ele concordou comigo. Que antigamente rezava muito por mim e agora não. Entre conversas com pouco sentido e conversas com mais sentido, aquela resposta pareceu a mais lúcida do mundo. A sua capacidade mental tem-se alterado. É normal que não se lembre de rezar, coisa que fazia persistentemente. Talvez a sua oração neste momento particular da sua vida seja outra. Mas eu é que sinto falta da certeza e força da sua oração por mim e pela minha vocação.
Nisto parou um pouco. Não sei se pensativo. Olhou-me e disse. O melhor era rezares tu por mim agora. A frase marcou-me profundamente. Ainda agora lhe sinto a profundidade da marca. Tive de, discretamente, voltar o meu rosto na direcção do sacrário, escondendo a lágrima que percorreu a minha face. Pequenina, mas do tamanho do mar.
quarta-feira, junho 19, 2019
O que se sabe de Deus aos quatro anos
A mãe é uma senhora já entradota, reformada do emprego mas não da vida, com dois filhos já crescidos, um rapaz que se separou da nora há uns tempos, e sofre, o coitado, e uma mãe de um neto maravilhoso, do mais bonito e inteligente que pode haver para uma avó.
Chamei-a de mãe, sobretudo por causa da filha que ela diz ser especial. Tal como o neto. Mas especial por dentro, sabe padre. E sempre assim foi. Não posso esquecer quando ela tinha quatro anos, repare. Fazia uma pausa, pedia para eu reparar. Ou seja para a olhar em cada palavra que ia dizer e cada sílaba que ia soletrar. Repare, padre, que a minha filha tinha quatro anos. Estávamos na Lagoa de Albufeira, de férias. Chamara-a várias vezes para almoçar e não respondia. Nem se mexia. Fui ter com ela. Olhe, só me parecia que estava fora do tempo. Abstracta. A olhar o mar. Abanei-a com a mão direita por cima do ombro esquerdo. Não me ouviste, rapariga? Já te chamei três ou quatro vezes.
Ó padre, ela olhou para mim com aqueles olhos lindos, que ainda hoje tem, e respondeu-me. Estava a ver Deus na sua grandeza… Ai padre, ainda hoje conservo nos ouvidos aquelas palavras do tamanho do mar…
domingo, junho 16, 2019
amo-te sem saber como te amo [poema 220]
Amo-te, por entre os dias, na sombra das coisas
No lugar que te vai no encalço, por entre
Os pirilampos verdes à beira da estrada
Desejo-te como te espero
Mesmo quando na escuridão te toco
sem te saber
Entre nós há um atilho de sangue
E um corredor escuro, sem confim
Percorro-te, às cegas e corro por ti
Pronuncio o teu nome no frenesim das palavras
Como um só som que não vive sozinho
Como um eco, muito eco
em mim
Amo-te sem saber como te amo
No lugar que te vai no encalço, por entre
Os pirilampos verdes à beira da estrada
Desejo-te como te espero
Mesmo quando na escuridão te toco
sem te saber
Entre nós há um atilho de sangue
E um corredor escuro, sem confim
Percorro-te, às cegas e corro por ti
Pronuncio o teu nome no frenesim das palavras
Como um só som que não vive sozinho
Como um eco, muito eco
em mim
Amo-te sem saber como te amo
quarta-feira, junho 12, 2019
Ser leigo na Igreja
Ante a minha admiração já desconfiada, num encontro de gente com responsabilidades na comunidade cristã, os chamados habitualmente de “leigos comprometidos”, à pergunta sobre se sabiam o que era um leigo, as respostas não foram muito consistentes. Sabiam que eram leigos na Igreja e que isso os designava, pois já o tinham ouvido imensas vezes, mas não sabiam o que isso significava na essência. Houve mesmo quem respondesse com aquilo que refere, mais ou menos, o dicionário de língua portuguesa: o leigo é alguém que sabe pouco de um assunto. Não sabiam sequer, e por exemplo, que, na linguagem eclesiástica, o leigo é um não clérigo. Ou seja, faz parte daquela imensa maioria de cristãos que, muitas vezes, ainda permanece passiva na missão que Jesus deixou à sua Igreja como sacramento da salvação. Recordou-me, infelizmente, a postura piramidal da Igreja desde tempos da Idade Média ou desde, particularmente, o concílio Vaticano I. Que pena!
Pode parecer que estou a entrar em águas pantanosas e que a teologia não é para aqui chamada. De modo algum. Escrevo como penso. E tenho muita pena que a maioria dos cristãos não saiba sequer o que significa a designação que lhe é atribuída por nós, os clérigos. Assim como me repugna, em certa medida, que ainda se pense o leigo no significado negativo, como um não clérigo. Como se o clérigo fosse o lado positivo, e o leigo o lado negativo da Igreja. Não gosto, e ponto final. Mas se podia queixar-me da hierarquia da Igreja, que mantém estas designações, mais me queixo desse número grande de cristãos, inclusive com vivência e prática cristãs - com se costuma dizer – que não tem a mínima noção do que é ser discípulo e missionário de Cristo, dentro de uma Igreja que é, acima de muitas coisas, Povo de Deus. Eu não quero leigos que substituam os padres e se tornem, eles próprios, uns padres em miniatura. Quero leigos com a grandeza e dignidade que lhes é conferida no baptismo e que se assumam plenamente como Igreja corresponsável.
segunda-feira, junho 10, 2019
Pássaro dourado [poema 219]
Morreu em minhas mãos o pássaro dourado
De olhos abertos, regalados, entre meus dedos
Fechados
Morreu como se fugisse
Da pequena gaiola de marfim
Que o apertava contra a parede
Onde voava, de olhos fechados, entre penas,
Dourados
De olhos abertos, regalados, entre meus dedos
Fechados
Morreu como se fugisse
Da pequena gaiola de marfim
Que o apertava contra a parede
Onde voava, de olhos fechados, entre penas,
Dourados
quinta-feira, junho 06, 2019
A vida vestida de branco
Tem seguramente mais de nove décadas de vida. Estava paramentado, com o terço na mão, enquanto esperava o início da Eucaristia. De tudo o que ele era e eu via, o que mais se salientava era o branco. O branco da alva com a estola em cima. O branco dos cabelos. O branco do rosto. Talvez fosse mais pálido que branco. Mas o meu olhar achou que era branco. Branco como o tempo quando está vivo. As suas palavras arrastavam-se. Arrastavam-se como os pés e o tempo. Quando rezávamos em conjunto, ele fazia o eco. A sua voz acabava ecoando no meio das outras. Até o terço que passava era branco. A cabeça pendia para si mesmo. Ou para a oração do terço. Permaneci uns pequenos cinco minutos a olhá-lo. A olhar este padre já reformado e doente. Não foram cinco minutos largos como quando a gente tem pressa de sair, de deixar de estar, de deixar de ouvir. Foram cinco minutos que passaram muito rápidos. Olhei-o com compaixão. Não foi com pena, não senhor. Foi mesmo com a ternura de quem ama. E talvez com o sonho de quem acha que a vida deveria ser sempre branca, mesmo quando tudo se vai tornando escuro. Levantei-me, dirigi-me na sua direcção, abracei-o sem vergonha dos olhares reprovadores ou das murmurações dos colegas que estavam no mesmo local. O abraço demorou mais cinco minutos longos. Quando levantei o olhar, eu ainda estava sentado na mesma cadeira, resignado. Afinal o abraço ficara só na vontade. Não foi a vergonha que me impediu de me levantar e, com verdade, o abraçar. Foi mesmo olhar nele o que me fez olhar a mim. O abraço que lhe queria dar, dei-o a quem estava mais perto. A mim mesmo. Um dia vou vestir a minha vida de branco.
segunda-feira, junho 03, 2019
esta janela [poema 218]
Da minha janela vejo o cemitério da cidade
Os telhados das casas com chaminés
Cruzes e campanários de pedra nas capelas
Ouço cães ao longe e a água da fonte que corre
Também os vejo sem os ver
A minha janela mora longe
Do chão se me debruço nela
De tudo o que vejo por ela
Nela sou os vidros que se revelam
Para além do que ela parece que é,
Casa onde moro quase todos os dias
Os telhados das casas com chaminés
Cruzes e campanários de pedra nas capelas
Ouço cães ao longe e a água da fonte que corre
Também os vejo sem os ver
A minha janela mora longe
Do chão se me debruço nela
De tudo o que vejo por ela
Nela sou os vidros que se revelam
Para além do que ela parece que é,
Casa onde moro quase todos os dias
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