segunda-feira, março 28, 2011

Hoje vieste-me ao pensamento e ao coração

Hoje vieste-me ao pensamento e ao coração. Sem motivos, sem vontades. Vieste porque o Tó, o padre António, começou a falar de funerais e de lutos. Destas coisas que conversamos porque nos inquietam. Quando comecei a falar de ti, o Tó parou para me escutar. Os seus olhos ficaram brilhantes, fixos, com rasgos de horizonte. Ele ainda tem mãe. De certeza que me escutou a pensar nela. Falei de ti como já há muito não falava. Quando me vens ao pensamento, ironicamente, costumo afastar-te, desculpando-me que é apenas um pensamento. É melhor não pensar para não sentir. Porque os pensamentos dão azo a sentimentos. A mana, quando precisa ficar bem com a sua vida, pensa em ti, contou-me. Sonha contigo. E acorda contigo. Eu não sou assim. Recuso-me a acordar contigo num sonho. Mas hoje apeteceu-me trazer-te à minha realidade. Àquele momento em que, com um sorriso estampado no mesmo rosto que era marcado por lágrimas, iniciei o ensaio de cânticos para a nossa festa, a festa da vida que te tinha prometido uns dias antes. Ninguém queria cantar. Eu queria cantar ao mundo todo, como se fosse o melhor cantor que poderia algum dia cantar-te. Apontei para ti, agarrei no micro e disse Vamos cantar, que hoje é dia de festa. Ninguém me acompanhou a não ser o silêncio e os murmúrios de muitas lágrimas que, no meio da assembleia, se desenharam. Deixaram-me, uns trinta segundos que pareceram minutos, a cantar sozinho. A minha voz enchia a Igreja e juntava-se ao ritmo das lágrimas. Não me vou esquecer nunca deste momento único das nossas vidas. Como estavas bela, a sorrir, contente. Recordo que as pessoas iam e vinham, em magotes, dar os sentimentos. Nunca gostei muito disso, até porque os sentimentos são das pessoas e continuam com elas. Sentimentos já eu tinha muitos E só quem ama a minha mãe sabe o que é este sentir a morte dela. Mas entendo. Davam-me os sentimentos e eu chorava e sorria. Chorava e sorria. Chorava porque não conseguia para de chorar. Sorria porque não conseguia parar de sorrir. Como agora não consigo parar de sentir. Como agora apetece trazer-te ao meu pensamento e ao coração. E aqueles olhares que, nos vários dias e eucaristias desse último mês, trocávamos, em casa, por entre a hóstia que acabara de consagrar. E sorríamos perdidamente, como se entre nós, entre mim e a tua dor, estivesse somente Ele nesse pedaço de sacrifício eucarístico. Que maravilhosas são as expressões de fé que o Senhor nos ensina através daqueles que são completamente seus. Mãe, devo-te muito do meu sacerdócio. Devo-te muito da minha vida. Devo-te muito daquilo que sou. E hoje apetecia-me tanto o teu colo!

sexta-feira, março 25, 2011

Prego a fundo no Pai Nosso

Estava no ambão proclamando o Evangelho. Depois de umas duas frases ou versículos, por assim dizer, o Evangelho dizia algo como Quando rezardes não digais muitas palavras como os pagãos, porque o Senhor bem sabe o que precisais. Depois desta insinuação ou chamada de atenção, o Evangelho colocava o Senhor ensinando a oração do Pai Nosso. E ali estava eu com a leitura do Pai Nosso, esforçando-me por a tornar verdadeira leitura. Entretanto, pressenti que à minha volta havia gente acompanhando-me com os lábios. Diria que se ouviam os lábios mexer. Mas quando chegou a parte final da leitura da oração, naquela parte do Mas livrai-nos de todo o mal, ouviu-se, por toda a igreja, Amen. Eram umas três pessoas, ou cinco, ou seis. A mim pareceram-me centenas, porque ecoou fortemente no meio da minha leitura. A partir dali o Evangelho do Senhor meteu outra velocidade, passando directamente de uma primeira para uma quinta. Começou aos engulhos, aos soluços. Parei duas vezes, mas foi para acelerar ainda mais a seguir. O motor precisava arranjar força para acelerar. O prego ia a fundo e eu respirava de forma igual, fundo. Mas cada vez que recordava o Ámen, a minha vontade era largar os engulhos, os soluços, as respirações a fundo, e espalhar-me em gargalhadas. Não se tratava nem de distracção, nem de hábitos. Para mim trata-se do esvaziar das nossas orações, porque as gastamos em repetições que apenas nos saem da boca e não do coração. Logo hoje que o Senhor nos dizia que ao rezarmos não devíamos dizer muitas palavras.

segunda-feira, março 21, 2011

A língua dos padres tem obrigação de saber responder

A língua dos padres tem obrigação de saber responder. E há três respostas que estão sempre prontas. Sempre na pontinha. São as três respostas que mais facilmente ouvimos aos padres diante das nossas perguntas ou dificuldades. Primeira. Temos de conformar-nos. Segunda. Temos de nos colocar nas mãos de Deus. Terceira. Temos de rezar. São as três respostas mais comuns e certeiras quando o problema está complicado e não tem solução à vista. São verdade nos nossos lábios. São verdade de Deus. Porém, mais do que respostas, deveriam ser frases declarativas, afirmações, adjectivos dos cristãos. Esta é uma das verdades que quero fazer agora. Não precisa ser de Deus. Só minha. Uma verdade que também uso, muitas vezes, como respostas. E canso-me. Canso-me de responder desta forma. E quando o cansaço se torna mais forte que a força das palavras, estas deixam de ser frases nossas para se tornarem simplesmente frases da nossa língua. De tão polidas, de tão usadas, elas tornam-se respostas gastas.
Quando a Maria me veio contar o que a filha fizera, que insinuara bater-lhe, que berrara para que meio mundo ouvisse, que fugira de casa, que partira para parte incerta com a certeza de que não voltaria, deixando a mãe com a sensação de que o cordão umbilical já não seria mais usado e que teria de guardar no esquecimento tudo o que à filha dissesse respeito, inclusive os seus erros e opções mais que erradas, não soube dizer mais do que as respostas que tinha prontas, na minha língua.
Depois cheguei a casa e bati a porta três vezes. Abri a primeira e achei que batera com a força certa. Abri segunda, e a força fora suficiente. Mas bati terceira para ter a certeza de que era essa a força que queria utilizar. Sentei-me na cama, de cócoras, com as mãos a segurar a raiva. E perguntei a Deus que há-de fazer um padre que as pessoas procuram a horas e desoras porque esperam que o padre fale a solução certa, porque estão habituados a ouvir as certezas que o padre tem habitualmente prontas, na ponta da língua e do Espírito Santo, porque sabem que ele é um homem de Deus e Deus há-de soprar-lhe ao ouvido, porque o padre é padre e é para isso que o padre serve. Porque padre é padre e ponto final.
Estou cansado de abrir constantemente aquela porta, que bati três vezes com força, para responder as coisas certas às pessoas, quando eu procuro mais que a resposta certa e não a encontro. Que dizer quando já não se sabe o que fazer, Senhor?

quarta-feira, março 16, 2011

Agarrou-me na mão

A meio da confissão, enquanto lhe dava conselhos sobre como lidar com os filhos, pois tem três, agarrou-me na mão, apertou-a e disse. Todos os dias penso em si, senhor padre. Não contava com aquela frase e não tive tempo para a entender. Por isso, discretamente, afastei a mão e fiz que precisava dela para gesticular qualquer coisa. E continuei a dar conselhos. Usava a boca para os conselhos e a cabeça para os pensamentos. Tentei fazer de conta que nada acontecera. Ou que aquilo que acontecera se tratava de uma natural situação de amizade. Também é meu costume agarrar nas mãos das pessoas na confissão, sobretudo quando sinto que precisam desse gesto. Se ao menos ela tivesse dito Todos os dias me lembro de si, senhor padre, talvez a carga de sentido fosse diferente. Talvez eu pensasse que se lembrava de mim por saudades da terra, que ela está longe. Ou que se lembrava dos meus conselhos e tinha saudades ou precisava deles. Mas ao dizer que todos os dias pensava em mim, os meus pensamentos deram acento à necessidade de pensar em mim, ou à incapacidade de não pensar em mim. Não quis ficar perturbado, pois gosto muito dela, como gosto de toda a sua família. Por outro lado, quero pensar que ela precisa de mim apenas enquanto padre. Pois que também estou convencido que a tenho ajudado muito na resolução dos seus problemas e das suas vidas, inclusive com o marido. Ela é uma mulher simples. Não é muito estudada. Quero convencer-me que ela utilizou essas palavras porque não sabia quais utilizar, quais seriam as mais adequadas. Estou certo de que foi isso. Estou convencido disso. De certeza absoluta. Só não sei porque é que estou aqui a pensar nisto!

sexta-feira, março 11, 2011

Falar de pecado

Não gosto muito de falar de pecado. Tenho sempre medo que ele me caia em cima. Que ao dizê-lo ele se torne realidade. Há muita coisa que só se torna real depois de falada. Até lá, ficam no íntimo da nossa ignorância e inconsciência. Mas ontem, quando o Pedro me perguntou o que era o pecado, eu não pude fugir. Acho que hoje, na sociedade dita moderna, não gostamos de falar de pecado. É uma palavra que não se usa. Como eu, outros colegas se inibem de a usar. As pessoas evitam-na. Preferimos falar em fraquezas. Erros. Um dia um amigo saiu-se com esta que eu vou contando quando quero passar a bola para canto ou quando quero rir-me à custa de não ficar sério. O meu pecado é pecado apenas quando os outros o sabem. Enquanto eles não o sabem, são apenas fragilidades.
No entanto, desta vez não consegui contar esta ao Pedro. Ele estava demasiado sério, para eu brincar com o assunto ou com ele. E lembrei a comparação que um dia ouvira a outro colega. Presta atenção. Imagina uma série de espelhos que se vêem uns aos outros. Que estão voltados uns para os outros. Imagina-os numa feira. Ora o pecado acontece quando um desses espelhos decide deixar de ser espelho. Em si, ele espelha o que a luz ou a claridade deixam que espelhe. Sem elas não espelha nada. Querendo ser ele a luz dos outros espelhos, prescinde do sol. Mas assim submerge nas trevas. Deixa de ter luz para mostrar. Deixa de ter utilidade. Deixa de ser o que é. Assim acontece com o homem. O homem querendo, na sua soberba, ocupar o lugar de Deus, tornar-se igual a Ele, acaba por se tornar o seu oposto. Querendo ser a luz, acaba por ser trevas. Daí o escuro. Daí o medo. A tristeza. Não podemos ser luz quando prescindimos da luz. Então não iluminamos nada. Nem a nossa vida. Então perdemos a nossa essência e deixamos de ser aquilo que deveríamos ser, um espelho da luz.
O meu colega não contara assim, e eu próprio não tenho bem a certeza de me ter explicado bem. É que isto de pecado não é lá muito fácil de falar.

quarta-feira, março 09, 2011

quadragésima.com 2011

O tempo da Quaresma é um tempo de descoberta da nossa identidade como cristãos. É um tempo de encontro connosco próprios e com Deus. É um tempo especial de introspecção e reflexão. Porque não havemos de o fazer aqui, na net, e de uma forma mais comunitária, ajudando-nos uns aos outros?! Deste objectivo nasceu em 2008 esta proposta, a “quadragésima.com”. Este ano julguei oportuno lançá-la de novo, em moldes ligeiramente diferentes.

Regras da quadragésima.com:

  1. Ao receber a “quadragésima.com” o blogger deve reflectir na sua relação com Deus e descobrir uma frase bíblica que a defina
    1.1- só se admitem frases retiradas, com citação, da Bíblia;
    1.2- as frases devem ser o mais curtas possíveis;
  2. Depois de o fazer deve re-escrever num post estas regras, as frases já assinaladas pelos anteriores bloggers (com o respectivo link), e escrever a sua;
  3. No post deve incluir quem deseja convidar (pode e deve manifestá-lo no blog da pessoa convidada);
  4. Não é permitido fazer mais que um convite ao mesmo tempo;
  5. O blogger que, recebendo a “quadragésima.com”, não estiver interessado em aceitá-la, deve indicá-lo ao seu emissário para que este lhe dê seguimento através de outro blogger;
  6. Não podem aceitar mais que uma vez a “quadragésima.com”; se o convite aparecer, mesmo vindo de outra “frente”, devem igualmente informar o emissário do segundo convite;
  7. Baseada nalgumas das principais figuras da liturgia da Quaresma, a “quadragésima.com” realiza-se em 3 frentes: frente “Adão” (I Domingo); frente “Abraão” (II Domingo); frente “David” (IV Domingo); estas frentes funcionarão quase como equipas, para tentar chegar ao maior número de bloggers possível (não se trata de encontrar vencedores, mas empenhados)
  8. A “quadragésima.com” será encerrada na Sexta-feira Santa, dia 22 de Abril, pelas 12.00 horas, hora em que o último blogger receptor deve endereçá-la, já com a sua frase, a este endereço, para publicitarmos todas as frases que definem a nossa relação com Deus nesta Quaresma de 2011.
  9. Os “anónimos” interessados em participar nesta “quadragésima.com”, podem escrever as suas frases no sítio do Confessionário dum Padre, aqui, identificando-se.

Obrigado por aceitares a "quadragésima.com"

E a minha frase deste ano é:
“E tu, quem dizes que Eu sou?” Mc 8, 28 - Confessionário dum padre

Convido para a frente “Adão” a Fá Menor, das “Partilhas em Fá Menor

Convido para a frente “Abraão” a Maria, do "Jardim de Luz"

Convido para a frente “David” a Vilma, de "Coisas de Mim"

domingo, março 06, 2011

Quando vais à Missa?

Na sequência do post anterior, pareceu-me oportuno lançar esta nova sondagem com o objectivo de perceber como nos relacionamos com a Eucaristia, como a procuramos, como nos esforçamos para participar nela, cumprindo ou não o preceito que a Igreja nos propõe de participar na Eucaristia, pelo menos, no dia do Senhor, ao Domingo, e nas festas de "guarda".
Aliás, quando faço referência ao Domingo estou também a querer referir-me aos dias de "guarda", os chamados dias santos.
A 2ª e a 5ª opção podem também confundir-se, mas na 2ª estou sobretudo a referir-me a uma participação dominical mais um dia ou dois da semana, e na 5ª estou a referir à participação dominical mais o maior número possível de Eucaristias durante a semana.
Convém ainda fazer uma chamada de atenção ou realce para a utilização da forma verbal "posso". É obvio que ela pode ter diferentes interpretações. Uns podem pensar que se refere às possibilidades ou disponibilidades inerentes ao emprego. Outros, podem incluir nesta opção algumas ocupações de casa, ou algum passeio ou outra ocupação similar. E ainda pode haver quem entenda que a vontade ou a preguiça podem incluir-se nestas opções. Cada um reverá a sua consciência neste assunto. Eu queria referir-me quase exclusivamente à primeira situação. Mas cada um saberá. Aliás, podem e devem sempre explicar a sua opção aqui, nos coments.

terça-feira, março 01, 2011

O Américo faltou à missa

O Américo faltou à missa. Estava doente e faltou à missa. Em vinte e oito anos nunca faltara à missa. E veio ter comigo à sacristia no final da missa para me contar o seu problema. Padre, faltei à missa. Aquilo que eu entendia como dificuldade, ele via como problema. Não consigo definir o seu olhar em mim. Triste como a noite, se é que a noite é triste. Mas a noite traz a solidão e por isso deve ser triste. Em pouco mais de três palavras, o Américo deixara cair três lágrimas. Padre, estive doente e não pude vir à missa. É claro que o Américo já sabe que, por doença, ficamos isentos de cumprir o preceito de ir à missa. Bem basta a pessoa estar doente. Eu costumo dizer que Deus sabe o quanto custa aceitar a dor, para saber que não lhe deve acrescentar mais dores por causa de não poder ir à missa. Mas o Américo deixava cair lágrimas atrás de lágrimas, mesmo depois de lhe ter feito esta observação. Ele não estava incomodado com a doença. Estava incomodado por ter faltado. E depois rematou. Padre, é a primeira vez em vinte e oito anos que falto à missa. Parecia que o problema estava não só na falta, mas no ter quebrado o recorde. Se eu não conhecesse o Américo faria essa afirmação. Mas como o conheço, sei porque estava aflito. E sei também que ele não quer faltar não por medo de Deus, mas por amor a Deus. Por isso precisava uma consolação minha, mais que outra coisa. Precisava sentir que Deus, apesar dessa falha, ainda o ama. Foi isso mesmo que lhe falei. E que não desse mais importância ao assunto. Importante é que agora estava ali e já não estava doente. Também tinha de assumir a doença que Deus lhe dera. Tinha de assumir a incapacidade de ir à missa que Deus lhe dera. O Américo perguntou-me se era para perceber ainda melhor a falta que lhe fazia a missa, e eu respondi que sim. Também podia servir para isso. Ele começou a sorrir. Falámos ainda mais umas coisas, mas não acho importante relatar aqui. Conto apenas que o Américo, quando me virou as costas, já não tinha lágrimas no rosto e notava-se mais aliviado. Quando saiu pela porta da sacristia é que eu pensei nos nossos cristãos que têm uma facilidade enorme de faltar à missa. Peguei nas minhas coisas e saí também. O Américo já estava a uma distância considerável. Entrei no carro. Liguei a ignição. E foi nesse momento que me ocorreu outro pensamento. A verdade é que também há muita gente que nunca falta à missa, mas por hábito.