quinta-feira, janeiro 16, 2025

O último beijo

Lembro-me bem do teu último beijo. Foi o último dos teus murmúrios de beijo. Tirei-te a máscara de oxigénio, encostei a minha cara nos teus lábios e tu moveste-os na direcção dela. Só isso. Mas tanto e sem medida. Mentiria se não dissesse que guardava cada beijo com receio que fosse o último. Fazia por guardar cada milésimo de segundo do movimento de cada beijo em ralentando. Era a minha forma de lidar com o adeus a qualquer hora. É difícil desmistificar as partidas, desconstruir a vida humana num segundo de morte que se arrasta. É difícil viver a pensar nisso. E não obstante, é a sequência natural da vida. E depois lembro esse beijo. Lembro-o bem. Lembro que fechei os olhos ao aproximar-me dos teus lábios. Foi o gesto natural de quem queria encerrar o beijo por dentro para o poder ir buscar sempre que precisasse. Como agora. Na altura fui o filho mais feliz do mundo. Desde que ficaras a oxigénio que apertavam as saudades dos teus murmúrios de beijo. Por isso fui o mais feliz dos filhos. A felicidade não cabia em mim. Foi o último beijo. Tinha quase a certeza que o seria. E hoje fui buscá-lo. E de olhos abertos, cai uma lágrima, sem que a consiga guardar dentro de mim… como guardei esse beijo. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Feliz dia do pai" e "O beijo do meu pai"

quinta-feira, janeiro 09, 2025

Os funerais religiosos do futuro

O padre que presidiu ao funeral faz muitos funerais. A terra não tem muita gente, mas já teve e é hábito regressarem à terra para se despedirem dela. O falecido, depois das cerimónias religiosas, ia ser cremado. Cada vez é mais comum a cremação. De entre as cerca de trinta pessoas presentes, só uma sabia as respostas da missa. Os outros assistiam sem abrir a boca. Não havia ninguém para ler e o padre viu-se obrigado a fazer apenas a proclamação do evangelho. Muito menos havia quem cantasse. Nem o padre tem voz para tanto. Para comungar apenas uma pessoa se aproximou. Era a colaboradora da paróquia que prepara as coisas para a missa e que respondia aos diálogos. O padre, que não conhecia senão a colaboradora, foi empático tanto quanto possível. Embora tenha sentido falta de alguma fé na celebração, ao menos rezou pelo falecido e encomendou a sua alma. Cumpriu o seu papel de funcionário do religioso.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os funerais fazem-me dor de estômago"

segunda-feira, janeiro 06, 2025

Best post 2024

Nos últimos anos, por esta altura, costumo colocar os textos de todo o ano a uma votação. Embora sabendo que não é o mais importante, é uma boa desculpa para revermos e relermos um ano que passou. Peço novamente a vossa ajuda para seleccionar aqueles textos/prosa que considerais ou considerastes como os melhores, os mais tocantes ou interessantes em 2024. 

Indiquem nos comentários o título ou títulos dos vossos preferidos. Deixo algumas sugestões, de acordo com a minha apreciação particular e tendo em conta alguns dos que foram mais visualizados, mas podem indicar outros que aqui não se encontrem linkados. Depois colocarei os 10 mais apontados a uma votação.  

 

Agradeço desde já a vossa participação e colaboração. A mim fez-me bem relê-los. Pode ser que faça bem a mais alguém.

 

Nota que os poemas não entram nesta sondagem.
Quem quiser dar uma espreitadela aos "best post" de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023 clique AQUI.

Janeiro

Onde estava Deus?

As homilias 

A eucaristia dos abraços

 

 Fevereiro

A nossa língua          

 

Março

O futuro da Igreja ou a Igreja do futuro          

 

Abril

As categorias tridentinas

a droga

a Clara e as experiências da fé

 

Maio

As promessas e as despromessas

Leigos a presidir eucaristias?

Também te amo

O dia de Páscoa

 

Junho

Os avós, esses evangelizadores modernos

a Igreja e o 'um aqui e um ali'

Dou por mim muitas vezes a não dar por ti, Senhor

 

 Julho

Uma Igreja que se quer sinodal, mas na mesma

 

Agosto

A santinha

vir à missa

 

· Setembro

A senhora que não quis crismar-se, de modo algum

O milagre da morte

 

· Outubro

as romagens que tiram a religião às pessoas

O canto a meio

· 

Novembro

A camisa de cabeção

A celebração litúrgica pouco sinodal

 

Dezembro

Chegou a Hora do meu pai...

 

sexta-feira, janeiro 03, 2025

A filha que berra

Tem cinco filhos e já não sai da cadeira de rodas sem ajuda. Embora esteja muito consciente de tudo, ali fica à mercê de quem a ajude. Não é muito velha. Apenas tem uma doença que a impede de fazer as coisas mais básicas sem ajuda. Tem cinco filhos, todos eles muito bons, senhor padre. É o que me diz. Só se queixa de uma filha. Diz que ela é uma força da natureza e é quem cuida de mim, senhor padre. Mas também diz que ela tem um feitio muito difícil. Os outros quatro não. No entanto, quando lhe pergunto se os outros eram capazes de estar ali com ela diariamente a cuidar das suas necessidades, a tratá-la, olha para mim com olhos de quem está a pensar no assunto pela primeira vez e diz que, na realidade, é capaz de ser muito difícil. Ora, portanto, a filha que vive sempre preocupada com ela e que a cuida, é a mesma que, às vezes, lhe berra porque não tem paciência quando a mãe não faz o que lhe pede. É certo que, às vezes, a ameaça de a colocar num lar. Mas também é aquela que está sempre ali e que a mãe tem de ouvir. Porque está ali. Porque se esforça. Porque se preocupa. Porque, com certeza, a ama. Olhe, sugeri, diga-lhe muitas vezes que a ama.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A pequena Sónia e a sua mãe doente, em Fátima"

terça-feira, dezembro 31, 2024

a carta dos nomes [poema 397]

a carta que te envio num envelope branco
tem o teu e o meu nome, tem todos e cada nome 
que o teu nome no meu...
contém

não procures nele palavras para além dos nomes, não as encontrarás.
o envelope branco vai aberto, como aberto vai meu coração 
e as palavras são livres, só os nomes é que não. 
estão presos numa espécie de... 
mão na mão ou mãos na mão.

o carteiro disse-me que tinhas a porta aberta, e não entrou 
tua cabana não estava vazia, estava lotada
com centenas de cartas que te enviou 
alguém 

com um nome que tem todos e cada nome
que o teu nome no meu...
contém

sábado, dezembro 21, 2024

O chefe do Pai Natal

Na missa de Natal da catequese, durante a homilia, no meio do diálogo com as crianças, ao perguntar se já tinham o presépio montado em casa, uma das crianças lembrou que também já tinha colocado o Pai Natal na chaminé. A assembleia riu-se e eu também. Foi, aliás, uma boa ocasião para lhes lembrar como “nasceu” o Pai Natal. Estávamos no século III, por volta do ano 260, quando nasceu, na Turquia, Nicolau, um bom homem que se tornou bispo de Myra, hoje a cidade de Demre, também no mesmo país, onde acabou por morrer a 6 de dezembro de 343, dia em que o santo é assinalado no calendário cristão. Como passava grande parte da sua vida a ajudar os outros, em particular as crianças pobres, não passou despercebido, ao ponto da sua figura se ligar às tradições de Natal nos países nórdicos, sobretudo, na Holanda, onde se começou a festejar o Sinterklaas, mais tarde Santa Claus no Novo Continente, a América, para onde foi levado pelos holandeses. Embora mantivesse alguma ligação a S. Nicolau, o Sinterklaas apresentava-se com barbas brancas, mais de roupas verdes que encarnadas, com um livro na mão onde tinha registado o nome das crianças que receberiam um presente. Já nos Estados Unidos e no século XIX, as grandes lojas passaram a comercializar a figura de Santa Claus, até que nos anos 30 do século XX, surgiu o pai Natal da Coca-Cola. O publicitário Haddon Sundblom inspirou-se no poema “Uma visita de São Nicolau”, de Clement Moore, para criar a figura do homem de barbas brancas, vestido de encarnado, com a gargalhada singular ho-ho-ho, de saco às costas para distribuir presentes pelas crianças de todo o mundo, voando num trenó puxado a renas. Já faz parte do imaginário do Natal e, desde que não ofusque a verdade e essência do Natal, creio que não vem mal ao mundo. Comentava, mais ou menos, estas coisas, quando uma das crianças, convicta e corajosa, levanta o braço e diz: Senhor padre, Jesus é o chefe do Pai Natal. Seguiu-se uma risada geral e as restantes crianças concordaram com ela. Ao menos isso. Que se perceba que o Pai Natal só existe porque o Menino Deus encarnou e nasceu para morar em nós e fazer do mundo um lugar mais feliz.


Aproveito para vos desejar um Santo Natal e um Feliz Ano Novo: Que o nosso coração tenha a porta aberta para Ele fazer aí sua morada! 

domingo, dezembro 15, 2024

Chegou a Hora do meu pai...

Chegou a hora do meu pai. Chegou a hora de passar da condição mortal à condição de imortalidade na vida eterna. Quero dizê-lo com H grande e digo, aproveitando para colocar outra maiúscula no meu pai. Chegou a Hora do meu Pai. Não quero esconder os dias difíceis que atrasaram os meus afazeres, mas não atrasaram o meu coração. Muito pelo contrário. Acompanhei os últimos tempos do seu sofrimento, para que lhe pesasse um pouco menos. Ele ficava mais tranquilo quando eu estava, e estive tanto quanto me deixaram estar. E eu também tranquilizava. Esgotei-me por dentro e por fora. Porém, em tudo consegui ir vendo o dedo de Deus. A festa da partida foi muito bonita. Foi uma grande festa de acção de graças. Não tinha ainda contado aqui, mas meu pai era diácono permanente. Por isso, o meu bispo acabou por presidir à Eucaristia. A homilia foi minha. As leituras da minha família. O canto dos meus amigos. Igreja cheia. Cheia com antigos e novos paroquianos. Cheia de testemunhos de gente que, como diziam, fora meu pai que os levara à fé. Chorei tanto quanto consegui. E sorri ainda mais. Quem nos conhece e conhece a relação de pai e filho que tínhamos, sabe que éramos muito cúmplices. Sempre o fomos. Entretanto, a partida da minha mãe fez-nos viver estes vinte e três anos muito mais um para o outro. Até porque a fé e o modo de entender Deus nos unia imenso. Assim como o ministério ordenado. Diziam as minhas manas que quando lhe faziam uma proposta, obtinham sempre a mesma resposta. Tenho que falar com o vosso mano. Por isso não admira que tivéssemos passado juntos grande parte dos últimos dias antes da partida. Muito rezámos juntos também. Ou eu rezava e ele acompanhava-me. Eu rezava e ele tentava respirar a custo a minha oração. Devo-lhe a ele e à minha saudosa mãe, não só a vida, como grande parte da fé e da vocação. Só posso estar grato a Deus pelos pais que tive. Por isso foram muitas horas de acção de graças, que ainda se prolongam hoje. Para que meus paroquianos compreendam porque ando alegre, explico que não sou super-homem e que sofro como qualquer ser humano sofre na partida de quem ama. Mas a fé é muito mais forte que a dor. O meu pai partiu, mas vem constantemente ao pensamento. E eu sou feliz. Sou feliz pelo pai que tive na terra e que ainda tenho no coração.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Feliz dia do pai" e "Obrigado pela fé que me destes"

segunda-feira, novembro 25, 2024

eu grito [poema 396]

grito para dentro e o eco faz-se na cabeça, percorre a espinha 
e aloja-se no coração. Grito, berro, grito berros que são gritos 

são um grito com milhares de palavras sem percepção, com o sentido 
da tua direcção, 

e as palavras deixam de ser palavras no caminho, porque são

são infinitas, são desditas, são minhas e são palavras sem letras, 
porque são do coração 

quinta-feira, novembro 21, 2024

Não tive tempo de me despedir

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O pai estivera com ele na mesa de jantar na noite anterior. De manhã ligaram-lhe para dizer que o pai partira. Não teve tempo para esperar a partida. Não teve tempo para o ver partir. O pai sempre lhe dissera que gostaria de morrer de repente e sem dor, e Deus ouvira o seu pedido. Mas o filho não tivera tempo para dizer adeus ao pai. E isto desesperava-o. Não tive tempo de me despedir, padre. Não tive. E repetia. Não tive. Mas teve. E tive de o recordar que teve. O senhor teve cinquenta e dois anos, tantos quanto a idade que tem, para se despedir dele. Os dias começam e acabam todos os dias. Cada dia é mais um dia para mostrarmos uns aos outros como nos amamos. Cada dia é um dia de amor e despedida. 
Já lá vão uns três anos desde que tivemos este diálogo. Eu nem me recordava. Mas há dias fez questão de mo recordar, porque, dizia ele, não sabe as vezes que eu tenho dito as mesmas palavras a outras pessoas tal como o senhor padre mas disse a mim! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"