segunda-feira, março 29, 2010

As lágrimas da vida

Há lágrimas que descem do rosto, percorrendo alguns sinais da cara, dos lábios, do queixo. E há aquelas que descem do mesmo rosto, caem na nossa mão, e chegam ao mais íntimo de nós. Há lágrimas que se moldam e nunca as tocamos, por mais que gostemos de quem as deita. E há lágrimas de pessoas que quase nada nos dizem, mas que tocamos como se fossem nossas. Há ainda outros tipos de lágrimas. As que mostram dor. As que escondem emoções. As que são apenas formas de dizer coisas, boas ou más. Há tantos tipos de lágrimas quantas pessoas existem no mundo. E cada lágrima conta uma vida ou uma forma de viver. As lágrimas são a sombra de quem vive. Andam sempre atrás, mais discretas. Têm a mesma silhueta das pessoas. Mas são mais escuras. Só aparecem por detrás do sol ou da luz. Estão sempre lá.
Falo delas porque hoje não as tenho, mas vejo-as. Porque ontem vi-as e fizeram-me pensar na forma como subsistem, como teimam em congelar-se a toda a hora e em desfazer-se nas horas mais partilhadas, nas horas em que se desfazem máscaras de vida, como é o exemplo das horas das confissões, sejam elas da vida ou do sacramento.
As lágrimas mais dolorosas são aquelas que se vêem no rosto de alguém que não a consegue limpar ou de alguém a quem não se consegue limpar. Tenho-me sentido muito tocado com dezenas de lágrimas que não consigo limpar do rosto de muitas pessoas que tenho confessado. Há dias foi-me mais fácil contabilizar as pessoas que as conseguiam suster do que aquelas que não o conseguiram. Senti cada uma delas, impotente, tocando-me o mais próximo possível do coração. Como se me restasse apenas beber cada uma delas, participar delas, e não pudesse secar a fonte de onde elas brotam. Quisera eu ser uma outra fonte ou ser sinal de outra fonte, a Fonte da Vida. Há tanta gente que precisa dela. Porque fizeste as lágrimas, meu Deus?

terça-feira, março 23, 2010

A faladeira

Falou. Falou. Falou. Ouvi. Acenei que sim. Que não. Sorri. Sorri mais aberto. Concordei que sim ou que não. Quase me limitei a ouvir. E foi assim que aquela confissão começou, se desenvolveu e acabou. Aliás, quase não acabava, porque a sua vontade de falar, contar, explicar, era tanta que se não fosse o adiantado da hora e da espera, ali permaneceríamos, emissor completo e receptor atento. Era o que precisava a senhora de lenço ao pescoço. Doutorada. Culta. Utilizava expressões medidas. Utilizava-as com educação, mas com a mesma vontade dos outros que têm menor educação. Faz parte daquele grupo de pessoas que usam a confissão, não porque tenham pecados para confessar, graça para obter, perdão para alcançar, mas porque não têm com quem falar verdadeiramente de si, sem esconder e mentir, sem resguardar ou esquivar. Faz parte daquele grupo de pessoas que precisam de falar ou de ser ouvidas. Faz parte daquele grupo de pessoas anónimas, que vivem anónimas e não conseguem ser anónimas. Faz parte daquela sociedade que tem tempo para tudo menos para as pessoas. Faz parte daquele grupo enorme de pessoas que aparecem nas nossas igrejas, nas nossas confissões e para as quais a nossa resposta quase nunca consegue ser diferente da resposta da sociedade, porque também nós, padres, fazemos muitas vezes parte desses grupos e dessas sociedades.
Meu Deus, temos tanto para aprender com estas conversas sem tempo e horas!

O que pensas quando pensas na Páscoa?

Está é a nova sondagem do Confessionário. E aqui podes comentar as tuas respostas ou as votações que forem surgindo! Aproveita para reflectir na tua Páscoa!

quinta-feira, março 18, 2010

Os bens que se têm ou não

Conheço uma senhora simpática. Bem arranjada. Cabelo sempre pintado e escovado. Mora numa casa grande, de pedra. Granito, para ser mais correcto. Daquele granito que se herda. Daquele granito que guarda as mobílias século dezanove ou quase. Daquele granito que protege as jóias da avó e da bisavó. Uma senhora simpática, bem arranjada, e que participa activamente na comunidade. Uma senhora que não se dedica apenas a ir ao hábito da missa, mas que activamente a vive ou tenta viver, desde o início, passando pela homilia, e continuando depois do fim.
Há dias ralhei na homilia com as pessoas que têm muito. Barafustei umas verdades que Jesus um dia barafustou. Referia-me àqueles que vivem para ter e para ter mais. Expliquei que me referia a esses. Mas a senhora simpática ficou com uma nódoa no seu entendimento, e decidiu que só eu a poderia limpar. Padre, aquilo que falou hoje inquietou-me. E fiquei a pensar que toda a gente estava a olhar para mim. Eu, pelo menos, olhei. O senhor conhece-me. Acha que eu sou dessas pessoas que precisa rever o que tem? A conversa realizou-se na sacristia, mas separada do sacristão e dos habituais amigos das risadas após a missa. Mesmo assim decidi escrever, porque aquilo que se escreve fica guardado na mão e esta pode abrir-se as vezes que quisermos, ao passo que aquilo que se diz nem sempre tem onde ficar guardado. Peguei numa caneta. Rasguei uma folha do meu bloco de apontamentos e escrevi. Não interessa os bens que tens, mas o que fazes com eles. A pessoa de fé vive com o que tem, valoriza o que tem. A pessoa que não tem fé vive com o que lhe falta, valoriza o que os outros têm.

sexta-feira, março 12, 2010

As cores de Deus

Dispostos uns atrás dos outros, sentados, com o bispo à frente, contava uns trinta padres. O tema da palestra era Fidelidade a Deus. Nada melhor para pensar na minha fidelidade ao Deus que amo. Enquanto o homem falava, eu pensava. Devia pensar no que ele gesticulava. Mas reconheço que pensava apenas no significado das roupas dos padres. Nas cores dos padres. Nas cores de Deus. Estava nos bancos do meio, mais para o fundo que para o cimo. Dava para ter um panorama geral do ambiente e da sua cor. Cinzas, pretos, azuis-escuros, um branco ou outro. Suponho que destoava com o meu vermelho. Desta vez não quis pensar mal dos que vestiam diferente de mim. Afinal eu é que era o diferente. Quis pensar que cada um veste como quer. Quis respeitar as cores diferentes da minha. Quis pensar que cada um deve ser ele próprio. Que devemos viver à nossa maneira. Mas não consegui deixar de me perguntar sobre as cores de Deus. Quais Lhe agradariam. Quais vestiria. A quais daria mais brilho. Quais teria escolhido para serem mais vida, mais alegria, mais amor, mais esperança, mais ressurreição, mais verdade. Imaginei o céu de cor cinza. Não resultava. Preto só à noite. Por isso a noite é noite. Do branco lembrei a Ressurreição. Mas à Sua volta, num céu brilhante, apenas consegui vislumbrar as cores do arco-íris, bem vivas, a sorrirem umas para as outras. E depois apresentamos esse mesmo céu, essa mesma vida, essa mesma Ressurreição, envergados de cores cinzas, pretos, escuros. Ainda desculpei os escuros, porque no meio da cor passam despercebidos e dão lugar à cor mais brilhante. Ainda desculpei os escuros com a humildade, o desprendimento, a austeridade. Mas desculpem-me estas desculpas. O Deus que eu amo pode até ser discreto, mas não se esconde no escuro. Pode ser humilde e desprendido, mas é também aquele que dá a felicidade plena ao homem. Aquele que vive uma eternidade para dar a felicidade ao homem. E não o deve fazer com pouca cor. Se Ele criou tantas cores, porque teremos nós, seus ministros, de as apagar?

terça-feira, março 09, 2010

O olhar ferido

A Manuela é catequista do terceiro ano. Boa catequista e boa mãe. Simples. Tímida. Mas nas coisas da catequese sente-se a fazer algo de Deus e por isso entusiasma-se. Ontem estranhei a sua pressa em falar-me. Preciso desabafar consigo. Imaginei que viria repetir-me aquelas que ultimamente são as reclamações habituais dos meus catequistas. Os miúdos estão insuportáveis. Não querem nada. Não os vemos na missa. Faltam muito. Distraem-se e faltam ao respeito. Usam tudo para implicar connosco. As reclamações dos catequistas estão como o tempo. Frias. Ásperas. Caem como chuva, a desoras e em enxurradas. Mesmo as pequenas tempestades, de abundantes, soam a grandes temporais. Tento pensar que é ocasional. Que a seguir vem lá o sol e que esqueceremos depressa este frio. Por isso dispus-me, com alguma displicência, a ouvir a Manuela. Como estava com as mãos ocupadas, continuei a movimentá-las, seguindo-as com os olhos. Sabe, padre, ontem uma mãe veio ter comigo com um ar muito zangado, e a primeira coisa que me disse foi A senhora feriu o meu filho!
As minhas mãos pararam e eu parei também. Continuei com os olhos nelas. Mas o pensamento voou para a Manuela. Que teria acontecido? Perguntei. Ela respondeu com a pergunta que fez à dita mãe. Como, se eu nem lhe toquei? Ao que se seguiu a resposta da mãe. Feriu-o com o olhar.
Neste momento, os meus olhos e o meu olhar deixaram as mãos e voltaram-se completamente para a Manuela. As mãos ficaram desamparadas. Não sei sequer onde as coloquei, de tão estranha me ter parecido a reclamação daquela mãe. Aos tempos a que chegámos, onde já nem com o olhar podemos fazer educação!
Garanto que a Manuela é boa catequista e não vai desistir de olhar quem quer que seja. Mas são muitas as pessoas que querem fechar os olhos ou mantê-los fechados.

quarta-feira, março 03, 2010

A senhora do xaile

O confessionário era de madeira de carvalho. Uma cortina vermelha separava-me da realidade fria da Igreja. O padre José convidara-me para confessar e acedi com amizade. O que não sabia é que me enviaria para dentro da madeira de carvalho. De cada lado estavam uns buraquinhos para se ouvir a confissão, e pouco mais. Da pessoa que ficava do lado de fora apenas se percebiam escassas formas de rosto. Nem a idade se percebia, a não ser pelo teor da confissão. Confesso que prefiro um cara a cara. Mas a experiência não estava a ser má, até que chegou uma senhora da qual percebi apenas a silhueta de um xaile pela cabeça. Começámos. Mas a senhora falava extremamente alto, de forma que a dez metros seria possível perceber cada palavra que proferia. Pedi três vezes para baixar o volume da voz. Mas a senhora do xaile possuia, supostamente, uma audição fraca ou exígua. Por isso decidi, com toda a amabilidade e caridade possíveis, até para evitar comentários impróprios dos outros penitentes, sair do confessionário e abordar a senhora cara a cara, que é como quem diz, boca a a ouvido. Assim fiz. Dei a volta. Aproximei-me dela. Toquei-lhe no ombro. Ela virou-se. Olhou-me com ar mais zangado que espantado, e prontamente falou num tom de voz ainda mais elevado. Tenha paciência. Espere pela sua vez, que agora estou eu a confessar-me. Ora uma destas!