sexta-feira, julho 26, 2019

Não ter a certeza como será o caminho

Não sei viver esta vida sem sobressaltos. Não foram estas as palavras exactas que a Sofia utilizou para falar. Foi assim, porém, que as entendi e que as transportei comigo para casa. Também eu desejava viver uma vida sem sobressaltos, e não sei como fazê-lo. Penso que essa é a nossa condição humana. Uma vida que não tivesse sobressaltos seria uma vida conformada. 
Na altura não soube muito bem que dizer à Sofia. Devo ter, pelo menos, assumido que não tinha resposta para dar além daquilo que sentia. Também eu desejava o mesmo que ela. No entanto, imaginava que essas incertezas fazem parte da beleza de caminho. O bilhete foi-nos oferecido. Temos de subir no autocarro. Sabemos que o autocarro nos levará aonde havemos de chegar. E nunca teremos a certeza de como será o caminho.

segunda-feira, julho 22, 2019

amigos [poema 224]

Fui ontem visitar um amigo a casa
Com tudo o que possuía, tudo o que havia,
Notas verdadeiras, desconhecidas e falsas
Muitos talentos, muitas forças,
Muitos trajes, muitos disfarces,
Algum poder, alguma lisura,
Mas tanto tanto, que é muita coisa
que nem lembro
Outro tanto

O amigo estava em casa, que linda casa
Abriu a casa, fechou a casa, não deixou a casa
e lá ficou

Não quis morar entre tanto tanto
que é muita coisa
que nem lembro
Outro tanto

casa em ruínas
ali ficou

quarta-feira, julho 17, 2019

As três vezes de Pedro

Era amiga da falecida. Já haviam passado umas semanas. A amiga falecera com um cancro fulminante. O sofrimento durara apenas um mês. Desde que as dores apareceram até que no hospital a morfina a sossegou de vez, tardou um mês. Toda a gente na terra falava do assunto e da pena. Eu também. E a sua amiga precisava dizer o que sentia. Porque é que a sua amiga, que era, por sinal, muito boa, tivera uma morte tão arrepiante, tão injusta, tão não sei o quê? Então Deus não premeia os bons e castiga os maus? 
Há dias, o evangelho de João recordava-nos as respostas de Pedro a Jesus quando este lhe perguntou se o amava. Três vezes lhe deu uma resposta afirmativa. Tal, como uns dias antes, três vezes o negara. Mas o curioso é que, depois de Jesus lhe fazer a pergunta, vai também dar-lhe sinais do tipo de morte que lhe calharia em sorte. E como nós sabemos, foi a crucificação ao contrário, ou seja, de cabeça para baixo, porque Pedro não se achou digno de morrer tal e qual como o mestre. Recordo esta passagem, porque a sorte final de Pedro não lhe foi dada porque traíra Jesus, porque agira mal, porque o negara, mas porque o amava. Foi na sequência da certeza do seu amor, que Jesus lhe manifestou como ia padecer. Nós é que estamos habituados a catalogar as coisas e, de igual modo, catalogamos as coisas de Deus. Nunca teremos certezas absolutas da acção de Deus. A única coisa que saberemos é que, nas coisas de Deus, o que mais importa é o amor!

segunda-feira, julho 15, 2019

Zakchaios [poema 223]

No meu coração há uma árvore erguida
Cheia de frutas variadas todo o ano
Nela se abrigam as mais diferentes aves
As mais diversas penas

quarta-feira, julho 10, 2019

Quanto mais acredito, menos faço

Um padre amigo e sábio disse-me um dia que quanto mais acreditava, menos fazia. Eu estava ciente e seguro de que devia ser ao contrário. Que quanto mais motivados pela fé, mais entusiastas da acção deveríamos ser. Que tolice a minha. E não era exagero da juventude que possuía nesse tempo. Era a tolice de quem se convence que a sua acção vai salvar tudo o que encontrar pela frente. Como se essa salvação dependesse de nós. Tão tolo. Hoje percebo um pouco melhor a frase daquele meu amigo. Não a levo à letra. Nem conseguiria. Mas tento. Talvez no meu pouco que faço surja o muito de Deus. Talvez menos activo, eu não me confunda com a sociedade, relações e religiosidade consumistas. Sim, porque nós vivemos numa sociedade que consome bens, numa afectividade que consome pessoas e numa igreja que consuma ritos e gestos religiosos. Talvez a nossa melhor acção seja Ser. Ser para amar e ser amado por Deus.

sábado, julho 06, 2019

A resposta

Estava num retiro para sacerdotes, num momento especial, diante do Santíssimo Sacramento exposto. Com base numa passagem do evangelho de João, lá para o final do mesmo, quando Jesus pergunta insistentemente a Pedro se O amava, eu fazia ao Senhor a pergunta com que comecei este retiro. Que queres de mim, Senhor, quando eu próprio não sei bem, muitas vezes, o que quero? Confidencio, com pudor, que esta pergunta tem sido recorrente nos meus últimos tempos, cansados, inquietos, expectantes. Perguntava e tornava a perguntar ao Senhor, sem obter um sinal que me satisfizesse. As luzes não aumentavam nem diminuíam. Não havia sinais na rua. Nem coisas extraordinárias a acontecer. Só havia silêncio, sobretudo no meu coração. 
Nisto, um sacerdote, de idade avançada, dirigiu-se a mim, de entre os vários sacerdotes presentes, perguntando e pedindo se o podia confessar. Levantei-me prontamente e afastámo-nos os dois para um local mais recôndito. Não tem propriamente interesse o conteúdo desta confissão. Mas eu fui, durante a mesma e aos poucos, edificando-me com a virtude daquele homem que entregara a sua vida ao Senhor e que agora, com falta de saúde, em sofrimento, quando as capacidades já não lhe permitem muito, continuava a entregar-se de uma forma que eu não consigo explicar ou definir. Acabada a confissão, levantámo-nos e foi cada um para seu lado. Ele foi para diante do Santíssimo exposto e eu vim a correr para o quarto de modo a esconder as lágrimas no rosto. 
Não sei se foi a resposta do Senhor e ou se foi a resposta que eu esperava. A verdade é que me senti instrumento da misericórdia de Deus. No meio de muitos outros sacerdotes, com certeza mais dignos que eu, este padre escolhera-me a mim e eu fora um pequenino instrumento de Deus. Como disse, não tenho a certeza de que tenha sido a resposta à pergunta que, insistentemente, fazia ao Senhor. Ou até sei. Talvez não saiba como a dizer. Mas sempre posso dizer Obrigado, meu Senhor. Ofereço-te esta lágrima feita de amor.

quarta-feira, julho 03, 2019

Os padres das amazónias

Contaram-me que há uns anos, numa determinada região do nosso país e da nossa Igreja, um determinado bispo foi encontrar na diocese, em que tomou posse, uma série de padres que, segundo o mesmo, prevaricavam. Numa linguagem mais inteligível, eram padres que tinham uma senhora e seus filhos com eles. Pelo que me contaram, havia, inclusive, alguns testemunhos bonitos de padres que moravam com esta sua família, em condições muito humildes, tais como a sacristia. Então o determinado bispo achou por bem acabar com esta forma de vida sacerdotal, embora a maioria destes padres fossem estimados pelas suas gentes. Se assim o desejou, assim o fez. Restaram dezoito padres. E não se sabe ao certo se eram impecáveis ou mais empenhados que os outros. O que se sabe é que hoje é uma diocese abandonada pela fé. 
Não posso garantir que tenha ocorrido tal e qual como me contaram. O que se conta nem sempre é verdade. Ou tal e qual. Mas o sínodo da Amazónia, que vai ocorrer em Outubro próximo e que tem sido badalado na comunicação social, sobretudo religiosa, por causa da abertura que o documento preparatório deste sínodo tem feito em relação à hipotética ordenação de homens casados, nomeadamente indígenas, fez-me pensar que há muitos caminhos no caminho da fé ou do sacerdócio. Aliás, todos somos sacerdotes pelo nosso baptismo. Ou não?

segunda-feira, julho 01, 2019

Talvez [poema 222]

Talvez um dia desapareçam as horas e os ponteiros
Como ceifeiros que abandonaram o céu

Talvez um dia não haja mais noites
E os relentos sejam as paredes dos palácios

Talvez um dia as pessoas voem sem penas
E as criaturas não se distingam entre voos

Talvez um dia as palavras não precisem de voz
E as histórias reais sejam contos de fada
Mas reais

Talvez um dia não haja talvez