sexta-feira, novembro 26, 2010

A fissura do braço de Cristo

Ande cá, senhor padre, que lhe quero mostrar uma coisa. A Cidália não é mulher de intrigas. Por isso não fiquei intrigado. Somente curioso. Levou-me pela porta lateral da igreja. A porta costuma estar aberta para que o Senhor possa ser visitado pelos seus amigos. A Cidália tem uma hora certa para fazer a sua visita. A seguir ao almoço, que é uma hora de pausa na sua vida, mas não na sua forma de viver com Deus. Entrámos. Depois das devidas vénias em silêncio, encaminhou o meu olhar para a cruz que está num pedestal de granito. Repare no braço, senhor padre. O braço esquerdo de Jesus tinha uma fissura que ainda não dava para colocar um dedo que fosse. Mas era perceptível para quem estivesse mais que um minuto a contemplá-lo. Ficámos assim os dois. Pensei que a Cidália me queria chamar a atenção para o braço que necessitava uma conservação. Mas ela olhou para mim e disse Não lhe parece que Jesus quer desprender este braço? Diga-me, padre, se vê o mesmo que eu. Prendi-me, primeiro, na fissura. Depois no braço que, de facto, parecia querer deslocar-se. Por fim no rosto de Jesus que esboçava um sorriso e, ao mesmo tempo, um ar para o triste. E falei assim como quem está apenas a tentar raciocinar. Vejo um Cristo que se quer solidarizar com as vidas partidas das pessoas. E mais, padre, e mais. Insistiu. O mais da sua insistência e da repetição fez-me pensar que Jesus me ama, por mais que eu não queira prestar-lhe atenção. Ficámos mais dois minutos a olhar. Eu diria, a contemplar. Sabe, padre, a mim parece-me que este Jesus quer desprender o Seu braço para poder tocar-nos. Para afagar-nos. Para abraçar-nos. Para que sintamos que está vivo. Retirei o meu olhar do braço e pousei-o na Cidália. Ó Cidália, só os que amam podem dar conta do Amor de Cristo. Deixe-o ficar assim, respondeu-me. Não o mande arranjar. Eu preciso de sentir que este braço é para mim.
Coloquei o meu braço à volta do seu pescoço e pensei. Há tantos Cristos que não devíamos arranjar!

domingo, novembro 21, 2010

preservativo _ sondagem

Hoje acordei com uma notícia-sensação. Pelos vistos, o Papa vai dizer ou disse, pela primeira vez, que o preservativo pode ser um mal menor. Transcrevo:

Pela primeira vez um papa, Bento XVI, admitiu a utilização "em certos casos" do preservativo "para reduzir os riscos de contaminação" do vírus da SIDA, segundo um livro de entrevistas que será publicado terça-feira.
Segundo a AFP, à questão "A Igreja Católica não é fundamentalmente contra a utilização de preservativos?", o líder da Igreja Católica respondeu: "Em alguns casos, quando a intenção é de reduzir o risco de contaminação, isso poderá ser um primeiro passo para preparar o caminho para uma sexualidade mais humana".
(DN)

Pensei que a notícia trazia alguma novidade. Mas a novidade que a notícia me trouxe foi a comunicação social achar que era uma novidade. De facto a doutrina moral da Igreja tem dito, através dos seus "catedráticos", que o "preservativo" pode ser algo necessário numa relação matrimonial onde o bem maior da saúde de um dos parceiros esteja em causa. Recordo-me de o ouvir no meu tempo de estudante. Já lá vai algum tempo. Porém, quando o assunto vem à baila, há sempre quem destaque o aspecto negativo das afirmações ou não queira reflectir o essencial das mesmas. Por isso, achei interessante saber a opinião dos meus "penitentes". O que pensamos nós disto? Desta vez, coloco a reflexão em duas questões:
1. "Para ti, o preservativo é..."
2. "Para ti, o preservativo tem a ver com..."
A primeira pergunta serve para tratar o assunto em geral, e a segunda em particular.
Podem expor aqui as vossas opiniões, razões, argumentos, acrescentos ou emendas.

terça-feira, novembro 16, 2010

As histórias que são anedota

O padre faz parte das notícias que correm, de boca em boca, nas nossas terras. É um assunto que vende. Vende palavras, escritas ou faladas. Vende histórias. Vende anedotas. E há histórias que são verdadeiras anedotas. Anedotas no sentido em que não podem existir. Como quando dizes a alguém Tu és uma anedota. E no sentido do riso mais rasgado. Como quando não consegues suster a respiração e de tanto rir ficas com dores de costas ou de cabeça. A última trouxe-me essas dores. Da cabeça às costas, e chegou-me aos rins. Foram necessários os rins para a ouvir. O colega que a contou também teve a sua dose de dores de rins.
Sabes, dizia, incomoda-me que as pessoas deixem bancos vazios á frente da igreja durante a missa. O povo tem tendência a ocupar os últimos lugares e ponto final. Por isso, no início da Eucaristia, insisto e torno a insistir para se chegarem à frente. Digo-te que já o fiz umas quatro vezes. E algumas pessoas lá aceitam o meu pedido. Sobretudo mulheres. Pois são elas que mais vão à missa. Pois são elas que aceitam com mais facilidade estas coisas. E o que me chegou aos ouvidos nem ao menino Jesus lembra. Vê lá do que se lembraram para justificar a minha insistência. Então não é que agora comentam que o padre chama para a frente as pessoas para ver melhor as mulheres.
Ele há cada uma. Ele há cada argumento. Ele há cada anedota.

terça-feira, novembro 09, 2010

A estatura do verdadeiro amor

O senhor Emanuel anda na casa dos sessenta. Mas nos últimos tempos o rosto tem traçado anos atrás de anos, como se cada minuto fosse uma semana de vida e cada segundo lhe desenhasse uma ruga. Quem olha para aquele homem de pequena estatura, sem querer concentra-se apenas no rosto. Um rosto que anda na casa dos setenta.
A esposa tem estado fora, lá para os lados da capital, numa clínica. A saúde dela exige cuidados que o senhor Emanuel já não possui para dar. Aguentou enquanto as forças físicas o permitiram. Hoje restam-lhe as forças anímicas ou afectivas. A doença de Alzheimer faz destas coisas. Tira muita coisa a quem padece dela. Mas tira outras tantas a quem está próximo dela. Eu sei que o senhor Emanuel tornou-se incapaz de fazer mais do que sentir. E andava mais triste ainda porque ela estava longe.
Há dias encontrámo-nos no meio do acaso da rua e no meio da sorte de Deus. Correu para me contar. Padre, ela já está aqui no lar da paróquia vizinha. O sorriso era grande, e contrastava com o rosto que lhe conheço dos últimos tempos. Por isso lhe perguntei porque estava feliz. O sorriso alargou-se e respondeu que agora podia ir todos os dias vê-la. Fiquei contente pelo sorriso. Mas, como sabia que ela estava num já quase estado de inconsciência, a curiosidade levou-me a perguntar se ela ainda o reconhecia. O senhor Emanuel baixou a cabeça e abanou-a, respondendo que não. As rugas voltaram. A minha curiosidade aumentou e, por isso, insisti. Então se ela já não sabe bem quem é o seu marido, porque está tão feliz, senhor Emanuel? Não acha que, com tanta visita, ainda sofre mais? Ao que ele respondeu, levantando de novo a cabeça e o sorriso. Ela pode já não saber quem eu sou. Mas eu sei quem ela é.
Abraçámo-nos com verdade e eu fiquei a saber que o senhor Emanuel é um homem que, de pequeno, só tem a estatura.

quinta-feira, novembro 04, 2010

Água benta

Ó padre, deixei cair o meu frasquinho de água benta e agora preciso que me dê alguma. Pedia com lágrimas nos olhos e o rosto envolvido pelas minhas mãos. Para que precisa dela? Perguntei. Olhe que não é para bruxarias. É que já me caiu um pedaço da chaminé e eu não queria que caísse mais. Ande lá, senhor prior. Preciso dessa aguinha em minha casa para Deus me abençoar o lar. A senhora Carma, que é viúva há quase trinta anos e mora sozinha no cimo da paróquia, fez-me lembrar a Carina. A Carina era uma jovem que tinha muitas dores de barriga e se queixava imenso delas. A gente dava-lhe um copo com açúcar dissolvido. E a coisa passava.