sexta-feira, dezembro 31, 2010

O instante que passa num instante

Cada ano é mais um ano. Disso ninguém duvida. Até aos dezoito somam-se numa lentidão que até custa. A partir dos dezoito, a velocidade é aquela que as multas permitem ou impedem. A partir de uma certa idade, que nem vale a pena explicar ou definir, os anos somam-se a correr. Já não olhamos o presente. Temos apenas olhos para o passado que já foi e o futuro que está tão perto. E depois ainda existem alguns dias do ano em que tudo passa com a velocidade do sol. São os dias que acabam e começam os anos. São aqueles dias em que agora é um ano e num instante, que é um segundo, já é outro ano. É aquele instante que teimamos em contar com doze segundos e doze passas. É aquele instante em que as doze passas têm de ser engolidas a correr e a saltar de alegria. Uma alegria que contrasta com a sensação de envelhecer. É aquele instante que passa num instante.
E é nesse instante que a vida passa na nossa frente cheia de desejos, de intenções, de vontades, de promessas, de esperanças. Não temos tempo suficiente para pensar na vida, mas cuido que ninguém ousa passar este instante sem pensar na sua vida. Recordo que no ano em que a minha mãe faleceu, passei vinte minutos em silêncio numa varanda aberta para as luzes da noite. O silêncio natural das lágrimas. Era com a minha mãe que costumava passar aquele instante famoso do agora é um ano e agora já é outro. Já lá vão umas décadas. A pele ainda era macia. Ainda não tinha sido endurecida pela vida. A penugem começava a parecer-se com uma barba. Devia ter uns dez, onze, doze anos. Já andava no Seminário. Já sabia muitas coisas e faltavam-me saber milhares. Mas levava tudo a sério. E recordo que na passagem de ano toda a gente lá de casa saía para a noite. Conhecia o significado da noite, pois também saíra algumas. Mas na passagem de ano não. Ficávamos apenas eu, meu pai e minha mãe. Uns minutos antes da hora marcada para mudar de ano, já a minha mãe estava na cama, sentada, passando as contas do terço. Nalgumas dessas ocasiões o meu pai também estava com ela. Eu vestia o meu pijama verde-claro, entrava dentro dos seus lençóis, e sentava-me a seu lado. Pegava no meu terço, igualmente verde-claro, aquele que no escuro ficava iluminado, e contava ave-marias com minha mãe. Passávamos aquele instante com a oração do terço. Não imaginam o que eu sentia. A alegria que era poder partilhar aquele instante com Deus e com a minha mãe. Parecia que o ano seguinte se enchia deles os dois. E com eles, os desejos, as intenções, as vontades, as promessas, as esperanças tornavam-se certezas.
Com os anos, aquela forma de passar aquele instante passou ao esquecimento, porque as passas dos amigos caíram-me nas mãos e deixei-me levar pela corrente do engole passas, berras naquele segundo, bates nos tachos, beijas toda a gente, ligas aos mais chegados, e ponto final.
Por isso hoje não vou pegar nas passas. Vou pegar nos amigos que estiverem ao meu lado. E vou levá-los comigo a rezar uma pequena oração. Talvez o Pai Nosso porque gosto muito dele. Preciso de um ano cheio de certezas.

terça-feira, dezembro 28, 2010

O Alcindo que não pode entrar no cemitério

O Alcindo é um bom rapaz. Pode não ir à missa, mas não falta aos funerais. Pode não querer nada com Deus. Mas faz tudo pelos amigos. Por isso não falta aos funerais. E costuma ir até ao cemitério, ficar perto da urna e só sai depois do caixão ter sido coberto com a terra. Faz parte do seu ritual. E que ninguém lhe diga que está errado. Pois é assim que ele sente. É assim que ele acha que Deus quer. É assim que ele julga que tem de ser a sua vida.
Porém, no dia treze, encontrei-o à saída do cemitério, depois das exéquias de um amigo. Eu vinha a sair e ele não ia a entrar. Estava estacionado ao portão. Cumprimentámo-nos. Como estamos à vontade um com o outro, indaguei. Então hoje ficas por aqui? Não entras? Nem pareces tu. Ao que ele respondeu com uma convicção que quase me convenceu, e com uma seriedade que ainda agora me perturba. Hoje não posso. Fui operado anteontem e não posso. Dizem que isto pode infectar. Perguntei-lhe se tinha sido proibido pelo médico e disse que não, padre. Toda a agente sabe disso. Respondi que eu não sabia. E preferia não saber. As coisas que as pessoas sabem e as coisas que não sabem!
Mas já que toda a gente sabe, alguém me pode dizer como aparece a infecção!

quinta-feira, dezembro 23, 2010

E o Menino fica esquecido entre as palhas de um presépio pequenino por debaixo de uma árvore grande enfeitada

Piscam as luzes. Piscam as vitrinas. Piscam os hiper-mercados. Piscam as árvores. Piscam as igrejas. Piscam as pessoas em correrias com sacos na mão. Piscam as frigideiras, as rabanadas, as filhoses. Tudo pisca à nossa volta em época de Natal. As cores misturam-se de uma maneira que não se vê durante todo o ano. As conversas são ligeiramente mais solidárias. Há sempre uma parte de nós que quer fazer algo de bom nesta altura. As prendas são disso exemplo. Apontamos no bloco de notas todas as pessoas a quem temos dever de comprar. Para não esquecer ninguém. É a época das mensagens de telemóvel. Toda a gente envia a toda a gente. Repetem-se as frases, os desejos, as brincadeiras. Há gente com pouca criatividade. Cá para mim, a TMN deve ter uns relações públicas a criar mensagens para esta altura. O açúcar esgota. O bacalhau quase esgota. O peru sai dos supermercados às toneladas. Este ano vou para a sogra. Este ano estaremos todos juntos. A irmã mais velha não pode vir. Trabalha até tarde. Todos querem sair mais cedo dos empregos. O patrão ofereceu um bolo-rei a cada um. Mais uma garrafa de vinho do Porto. Pai Natal nas varandas. Menino Jesus nas janelas. É um rebuliço que só se vê uma vez por ano. O Natal faz destas coisas.
E tudo isto porque um menino nasceu há cerca de dois mil anos. E tudo isto por causa deste Menino Deus que nos quer salvar. E tudo isto porque é mesmo Natal. No entanto, o rebuliço desta época encosta a um canto o Menino Deus. Diga-se. O rebuliço do Natal esconde o verdadeiro Natal. E o Menino fica esquecido entre as palhas de um presépio pequenino por debaixo de uma árvore grande enfeitada.
Por isso é que este ano pedi aos meus paroquianos para, no meio da azáfama da noite de Natal, pararem o rebuliço do Natal num breve minuto. E nesse instante rezarem em família, com os que estiverem ao seu lado, um Pai Nosso a agradecer a este Menino ter vindo ao mundo para salvar cada um de nós. É pouco. É apenas um Pai Nosso que dura um minuto. É apenas um minuto do verdadeiro Natal.
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Este é o meu desejo de Natal para todos vós: um Natal cheio de Jesus!

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Faltam personagens no presépio da paróquia _ sondagem

Na paróquia estão a faltar algumas personagens para o Presépio deste ano. Como não sabemos quem há-de fazer esses papeis, decidimos pedir-te auxílio. Destas figuras públicas que seleccionei sem grandes motivos de relevância, tentando apenas destacar alguns dos que se destacaram em 2010, ou que se destacam nas suas áreas de representação, a saber, Desporto, Música, Política, Igreja Católica, Cinema/teatro, Comunicação Social, Economia, mundo Vip, quais convidarias para fazer parte do nosso Presépio? Todos são portugueses, porque a língua que se vai usar no presépio é mesmo o português. Queres dar-nos ajuda? Então vota nas duas sondagens que encontras no sidebar, e indica-nos quem poderia ou deveria ser o "Menino Jesus" e o "Rei Herodes".
Claro que esta é uma brincadeira que não pretende ter consequências nocivas ou nefastas. Nem queremos denegrir a imagem destas figuras públicas. Muito menos ainda confundir coisas sérias. É tão só uma forma de sorrir!
Se acaso acharem que outras figuras públicas portuguesas deveriam constar nesta lista, façam favor de indicar num comentário. Nunca se sabe se ainda iremos precisar mais alguma personagem. Ouvi dizer que José estava tão ocupado na carpintaria que não tinha a certeza de poder ir. A estrela disse que também estava com frio. Só Maria garantiu que ia. Ela não podia faltar mesmo. Por isso, amigos, digam lá qualquer coisinha que o Natal está á porta.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

A terapia dos pobres

Numa hora estive com uma dezena de pessoas, mulheres de cabelo branco ou tapado com o escuro de véu à antiga. Gente cheia de problemas. Os problemas da idade e da vida que não teve oportunidade de ter mais oportunidades. Na sua maioria viveram toda uma vida na mesma terra, na mesma casa, com os mesmos vizinhos e familiares, com o mesmo quintal. Nem a televisão deixou passar outras vidas ou outras formas de vida. Mas precisam falar. Precisam mais falar que confessar-se. E falaram. Falaram. Tanta história cruzada com nomes que eu nunca iria fixar. A sua história numa conversa. Os seus conflitos interiores e exteriores. Os pequenos ou grandes problemas. As suas depressões, se é que sabem o que são ou que as têm. E depois de uma dezena de pessoas que só precisavam falar e sentir que tinham alguém que as escutasse, eu pensei para comigo. Será este o consultório de Deus, a terapia clínica dos pobres?

domingo, dezembro 12, 2010

Os padres também erram

Estou sentado, mas já remexi a cadeira umas poucas de vezes. Parece que não consigo estar nesta posição. Levantei-me três vezes e fui à janela. Fui procurar uma resposta para a minha atitude. Fui procurar a senhora no meio daquela nuvem escura que avisto daqui. Eu tinha o portão aberto. Estava com umas pessoas debaixo do telheiro, na entrada da porta que dá para o quintal. O quintal da casa paroquial é grande e rodeado por um muro alto. A altura que possa trazer alguma discrição ao padre. Não tenho nada semeado. Não tenho tempo nem jeito. A conversa estava interessante e, repito, o portão do quintal estava aberto. Seriam umas dezoito horas, as suficientes para que o escuro impedisse a boa visibilidade, mas permitisse que nos apercebêssemos do vulto que entrou pelo quintal adentro e estagnou diante das paredes do muro que ficavam no sentido inverso ao portão. Ninguém percebeu o que se passava, nem de quem se tratava. A conversa parou. Uma das pessoas ainda falou em receio ou medo. Não me lembro que termos utilizou e para quê. Recordo que pensei. Deve ter receio do que podem querer ali àquela hora. Mas agora penso que poderia querer referir-se a outra coisa. Ao receio do que podia acontecer ao vulto estranho do muro do quintal. Levantei a voz para que o vulto me ouvisse e nada. Não reagiu. Tive de aproximar-me. Era uma senhora de cabelo branco. Não consegui ver melhor e não a reconheci. Lembrei que podia ser do lar e estar perdida. Só podia. Lembro que me mostrou umas coisas e que disse que andava às flores. Àquela hora! Ela não estava boa. Agora é que penso nisso. Perguntei se estava no lar e disse que sim. Foi a única coisa que fez sentido na conversa. Por isso encaminhei-a para o portão e indiquei-lhe a direcção do lar que fica a uns vinte metros à direita. Tinha missa dali a instantes e tinha alguma pressa. Convenci-me que ela tomaria a direita. Nem confirmei a direcção. Fui à minha vida. Mas passada uma hora e meia soube que tinham encontrado uma senhora no cimo de vila, na estrada, perdida. Se porventura não a tivessem reconduzido ao lar, não se sabe o que teria sucedido. Pedi que me explicassem melhor a história e como era a senhora. E expliquei o que sucedera comigo. Bati no peito e contei repetidamente. Contei para as senhoras que estavam na sacristia. Mas acho que era sobretudo para eu me ouvir. Bati no peito. Ainda agora bato. Eu devia não penas tê-la conduzido ao portão, mas ao lar. Devia certificar-me de que ela lá chegava. Eu devia muitas coisas, mas não o fiz. E agora estou para aqui à procura da senhora e de mim. Os padres também erram. Se erram.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

A maior dificuldade da catequese hoje é _ resultados

Ultimamente não costumo postar as sondagens. Porém, achei oportuno postar esta, pois estou convicto que ela pode ajudar-nos a reflectir mais. Para mim a Catequese é o coração de uma paróquia. Do seu palpitar resulta a vida de toda a comunidade.

  1. a crise de fé na família: 70 (32%)
  2. a falta de formação dos catequistas 59 (27%)
  3. os pais não acompanham a catequese: 23 (10%)
  4. a catequese está desactualizada: 17 (7%)
  5. o esquema da catequese não funciona: 15 (6%)
  6. o comportamento dos miúdos: 8 (3%)
  7. são muitos anos de catequese: 7 (3%)
  8. os conteúdos são enfadonhos: 4 (1%)
  9. os miudos precisam mais incentivos: 4 (1%)
  10. é difícil arranjar catequistas: 3 (1%)
  11. excesso de actividades extra-curriculares: 2 (0%)
  12. outra: 2 (0%)
  13. os horários da catequese inadequados: 1 (0%)
  14. os catecismos não são apelativos: 1 (0%)
Considerações
  1. As opções mais destacadas são a crise de fé na família e a falta de formação dos catequistas. Isto demonstra como a formação dos cristãos é uma das maiores carências da nossa Igreja.
  2. A primeira opção (a crise de fé na família) e a terceira (os pais não acompanham a catequese ) mostram igualmente como o papel da família é sempre fundamental. Daí que muitas das apostas pastorais devam iniciar-se na família.
  3. A quarta (a catequese está desactualizada) e a quinta opções (o esquema da catequese não funciona) mostram como há ainda muito a reelaborar e a inculturar nos esquemas e nos conteúdos da catequese. Nos últimos anos, apesar de se terem renovado quase todos os catecismos, denota-se que há ainda muito a fazer nesta área.
  4. Partindo dos resultados obtidos, parece-me que as restantes opções são apenas circunstanciais. Umas mais que outras. Umas a terem-se mais em atenção que outras. Porém, não parecem ser fulcrais para o bom funcionamento ou bons resultados na catequese hodierna.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

A lição da São

A São, diminutivo de Purificação, é daquelas mulheres normais que numa paróquia tentam levar a fé a sério. Não falta a uma celebração, a uma oração do terço, a uma responsabilidade. Assume tudo como boa cristã. Eu penso que até é daquelas pessoas que tem sempre uma palavra a dizer e a ser ouvida. Levam-na a sério tantas vezes quantas a acham inoportuna. Poderá ser fruto da postura ou do incómodo. Mas acontece. E no dia dez veio a minha casa com a lágrima no canto do olho. Olhe, senhor padre, preciso desabafar. E desabafou. Começou numa história e cruzou-a com milhares de histórias. Já pelo final que tive de engendrar porque as histórias eram muitas, abordou-me sobre outra senhora que a tinha feito sofrer. Ela apresentava as suas razões. Eu ouvia. Ela falava. Eu escutava. Percebi que procurava respostas no meu rosto. Só percebi quais quando foi direita ao assunto. Ela fez-lhe queixinhas de mim, padre? É óbvio que, tivesse ou não feito, eu não iria revelar. Não é meu hábito, nem seria bom hábito para um padre, cuido. Não lhe respondi e ela insistiu. Já tinha a porta aberta quando ela quase afirmou que não saia sem eu lhe dizer. E foi nessa altura que aproveitei para dar uma lição de vida e de fé. Sabe, tal como eu nunca direi a ninguém o que a senhora me contou, também nunca direi a si o que outras pessoas me possam contar. Afinal, não é assim que um padre deve ser?