quinta-feira, dezembro 30, 2021

Na tua opinião, qual foi a acção mais marcante de Francisco em 2021?

Já há muito tempo que não colocávamos uma sondagem à vossa participação. Decidimos terminar este ano do "Confessionário dum Padre" com uma sondagem sobre o pontificado de Francisco no ano de 2021. Encontra a sondagem no sidebar deste espaço.
Escolhemos as dez acções que nos pareceram mais importantes. No entanto, poderão aqui deixar outra opinião nos comentários. Agradecemos a quem esclarecer a sua escolha!
 
Aproveitamos para desejar um ano de 2022 cheio de Esperança!

sexta-feira, dezembro 24, 2021

Natal da Esperança

O nascimento de Jesus, já lá vão mais de dois mil anos, não ocorreu em circunstâncias muito cómodas e favoráveis. Dizem as Sagradas Escrituras que nasceu num estábulo porque não havia lugar para ele nas hospedarias. O cheiro nauseabundo do estrume e as palhas da manjedoura serviram o nascimento de Deus entre os homens. As poucas visitas que teve imediatamente a seguir ao nascimento, são de pastores que por ali andavam a trabalhar. Não teve festa nem holofotes. Aliás, não demorou muito para que os seus pais, procurados pelas autoridades policiais do tempo, tivessem de fugir com ele, clandestinos, cruzando fronteiras, para se colocarem a salvo. Se fosse filho do imperador e nascesse nos palácios do reino, no meio das centenas de criados e escravos, não seria uma boa notícia num mundo em que os fracos são vítimas de todos os tipos de abuso! 
Embora na sociedade e época em que vivemos, o Natal possa parecer um conto de fadas alimentado com muitas luzes, canções festivas, manjares suculentos e prendas à mistura, a verdade é que Deus encarnou num ambiente paupérrimo, sem parteiros, desalojado pela sociedade, acompanhado apenas por alguns dos seres mais periféricos, os pastores e os animais. Mas é o Salvador de que precisamos. Nele se instaura a esperança de uma vida com sentido, apesar da debilidade e das adversidades. 
Hoje, mais do que nunca, no meio de tantas crises sociais e de uma crise sanitária sem precedentes, vale a pena recordar como Deus veio ao Mundo para que a nossa esperança fosse a verdadeira Esperança! Voltemos às raízes da nossa fé. Busquemos a Deus onde ele encarnou. Num mundo em desesperança, aí encontraremos a Esperança! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nasceu numa humilde casa"

terça-feira, dezembro 21, 2021

Cancelar o Natal

Este ano não se ouviu falar muito das habituais polémicas pré-natalícias sobre a abolição das palavras, dos cantos e dos símbolos cristãos nas escolas ou em outros lugares públicos. No entanto, pelos vistos, a ideologia que quer abolir com as nossas origens cristãs europeias, anda por aí e não dorme. A União Europeia apresentou em 26 de outubro, através da sua comissão para uma Comunicação Inclusiva, um documento interno de trinta e duas páginas intitulado #UnionOfEquality, no qual recomendava, entre outras diretrizes, alegadamente com o objectivo de promover a “igualdade”, que os funcionários da Comissão Europeia evitassem usar a palavra “Natal” e a substituíssem por “festividades”. 
Depois de ter sido bastante criticada como uma "tentativa de cancelar o Natal", a proposta foi, entretanto, retirada. Mas o ataque à verdade da fé, disfarçado de opção pela inclusão, anda aí. Como se a história de cada um não tivesse um passado e não fosse o resultado de um sem número de dons recebidos, existe hoje um entendimento que é contrário a tudo o que não for imediato e satisfatório. Em nome de minorias que devem, supostamente, ser aceites, existe um grupo de pseudo-intelectuais que defende um entendimento que de inclusivo só tem o nome. Pregam a tolerância, mas apenas para as suas opções e opiniões que acabam sendo, geralmente, intolerantes. 
O Natal e toda a sua envolvência, se não quisermos ser hipócritas, tem um nome e uma história: Jesus Cristo! Não se acredita nisso? Evidentemente que ninguém é obrigado a acreditar. Mas pelo menos que não se cancele a verdade do Natal! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Há gente para quem o Natal é só uma data"

quinta-feira, dezembro 16, 2021

as tradições que se perdem

Era a primeira reunião do novo pároco e juntara umas dezenas de pessoas, entre aqueles que mais colaboravam na paróquia e aqueloutros que gostam de marcar presença para falar com o novo padre. As dez paróquias, e suas respectivas anexas, eram conduzidas, até ali, por outros dois padres. Como o número indicia, é natural que o novo pároco não possa concretizar todas as vontades e hábitos. Não por má vontade, mas porque é humanamente impossível. E as pessoas, pelos vistos, até compreendem. Ele terá de encontrar prioridades e caminhos novos. E falava-se disso na reunião. Mas, às tantas, um senhor que fazia parte de uma comissão não sei das quantas que tratava da tradição não sei das quantas que ocorria depois da missa no dia tal, pediu permissão para usar da palavra, e usou-a para perguntar como seria e a que horas seria cumprida a tradição. E embora esta possa ser uma tradição culturalmente importante para as pessoas, que nela se identificam, tratava-se de uma tradição mais pagã que cristã, onde a presença do pároco nem sequer era imprescindível. Naturalmente que o novo padre não consegue celebrar dez missas num dia e cumprir dez vezes a tradição de que eles tanto gostam. E como explicou a sua dificuldade, o mesmo senhor usou das palavras para se lamentar e dizer Assim acabamos com todas as tradições. E o novo padre respondeu no mesmo tom e com argúcia. Por esse motivo, caro amigo, é que eu ando aqui a tentar não acabar com uma Tradição que já vem de há muito mais tempo e com a qual, pelos vistos, as pessoas se preocupam cada vez menos, a Eucaristia. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A tradição da procissão de Páscoa"

segunda-feira, dezembro 13, 2021

o padre e o casado

O que aconteceu com este padre, acontece com quase todos os padres, sobretudo quando estes entram num café ou estão num convívio ameno com as pessoas. Convidado por um indivíduo que estava ao balcão, com uma cerveja na mão, o padre ouviu aquela do “O padre só é padre na Igreja. Aqui é um homem como os outros”. 
Faz-me confusão pensar que, quando um padre está em ambiente descontraído de convívio, as pessoas possam ter a sensação de que naquele momento o padre não está a ser padre. Como se o mundo do padre, como padre, fosse um mundo à parte. O mundo aparte das pessoas comuns. Que o padre não é comum. Não é bem homem como os homens que não são padres. 
Mas este colega respondeu-lhe à letra. Olhe uma coisa, o senhor, que é casado, só é casado quando está com a sua esposa? O senhor, que é pai, deixa de ser pai quando não está com os seus filhos? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A ideia que as crianças fazem dos padres"

quinta-feira, dezembro 09, 2021

um dia [poema 343]

um dia vou escrever nas nuvens, com o pó 
com o pó agarrado à samarra que me cobre 
me engole 
 
sou apenas mais um pássaro que não sabe voar 
que apenas pia. 
voa a piar
 
por isso um dia vou escrever nas nuvens, com o pó que sobrar 
do meu olhar

segunda-feira, dezembro 06, 2021

Mudança de época!

As nossas eucaristias dão conta, indirectamente, de uma mudança de época na Igreja. Os bancos estão cada vez mais vazios, e quem se senta neles é, em grande parte, gente reformada. Ou gente com uma idade a quem o passado pesa mais que o futuro. O número de jovens é exíguo. As crianças vão só nas festas da catequese. Os pais delas igual. Os grandes ajuntamentos são porta fora. Em funerais sobretudo. Mas também em casamentos, batizados e festas da catequese. Ainda me lembra do outro moço que queria sair da igreja logo depois de o senhor bispo lhe ter colocado na fronte o óleo do Crisma ou aquele pai que foi comungar com a filha que fazia a primeira comunhão e logo de seguida saiu da Igreja, porque já tinha cumprido o que o padre sugerira aos pais. 
A manter-se sacramentalizadora, como uma estação de serviços, em breve a Igreja fechará portas atrás de portas, porque o número dos que pedem esses serviços também têm diminuído. Em tempos a Igreja passou por uma mudança de época que a tornou mais mística. O que agora desejo é que se torne mais missionária. Como nos primeiros tempos. Como quando ouvir falar de Jesus era sempre uma novidade que não deixava ninguém indiferente e apaixonava ao ponto de o seguir. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O que eu espero de um padre"

quinta-feira, dezembro 02, 2021

missa sem missa

E ela falava abertamente como se fosse a mais culta no assunto. Pois, sim senhor, eu casei-me numa missa sem missa. Que a diferença é ser muito mais curta e não fazer os convidados aguentar tanto tempo na missa. Só não tem a parte da comunhão e do ofertório. Txaraaaaaaaaaan! Disse, como se tivesse destapado a mais curiosa verdade que a Igreja permite. Quer dizer, pelo menos nalguns lados, dizia. Assim como a possibilidade de casar sem estar baptizado. Que isso dependia de padre para padre. Pois ela casou com um não baptizado. Bem vistas as coisas, a Igreja até está mais moderna do que alguns pensam, dizia. E dizia e dizia, e dizia mais coisas como se tivesse tirado um curso de sacramentologia. O que ela não sabia é que a missa sem missa, a que ela se referia, não era uma missa. Era uma celebração da Palavra. E que a grande diferença entre a primeira e a segunda, é que esta última não tem o momento da consagração. Na verdade até pode ter distribuição da comunhão. E também não sabia que já há muitos, mas muitos anos, a Igreja prevê a possibilidade de casamentos mistos ou com disparidade de culto. Ela casou como se a Igreja fosse uma boutique ou um híper-mercado, isso é que foi. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Casamentos sem missa"

segunda-feira, novembro 29, 2021

à procura de freiras

Um padre ia a passar numa rua movimentada quando viu ao longe um grupo de adolescentes a conversar, distraídos. Mas falavam alto o suficiente para se conseguir escutar. A gritaria típica das hormonas aos saltos. Mas o inimaginável é que falavam da catequese e riam-se muito. Contavam algo engraçado a uma amiga que não ia à catequese, porque esta dizia que tinha de ir lá espreitar a catequista. Quando o padre, ao passar, os cumprimentou e lhes perguntou de que falavam ao falar da catequese, aceleraram o passo com risinhos mais contidos. Ao menos disseram algo parecido com um olá boa tarde. E já se encontravam a uma distância considerável quando a colega perguntou. Este é que é o padre? E que anda ele a fazer na rua? E ela mesma respondeu. Deve andar à procura de freiras. E os risinhos aumentaram de tom. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Como é que o stor aguenta?"

terça-feira, novembro 23, 2021

igrejas em saída

Tenho um colega que gosta muito de estar com as pessoas. E faz muito bem. Tem jeito para uns dedos de conversa no café e uma suecada. Tem gosto por falar até mais não no meio dos homens da aldeia e uns copitos. E diz que assim está a fazer o que o Papa Francisco diz da Igreja em saída. E tem alguma razão este meu colega. Estar com as pessoas nas suas vidas, mesmo os momentos de lazer, é sair um pouco de nós para estar com o outro. 
No entanto, este meu colega, sem desprimor algum do que escrevi até aqui, faz também parte daquele grupo de colegas que vive encerrado nos ritos e preceitos do “sempre se fez assim”. Fica-se nas missas a correr e a multiplicar. Talvez lhe falte um pouco mais para entender a profundidade do convite do Papa. Porque a Igreja em saída é ainda mais do que estar com as pessoas em amenas cavaqueiras. Para além de estar com o outro, é sair de nós mesmos e dos nossos comodismos. É deixar de nos colocarmos no centro para colocarmos o outro no centro, a começar pelo nosso modo de assumir o ministério sacerdotal. Ou o modo de ser Igreja. A Igreja em saída é a Igreja que deixa de viver bloqueada por ritos e normativas de séculos passados, como dizia o teólogo espanhol José Maria Castillo. É a Igreja que vive para humanizar este mundo desumanizado. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "As freiras missionárias"

quinta-feira, novembro 18, 2021

Confundir o símbolo com o simbolizado

Aquela imagem é que era. Aquela imagem de Nossa Senhora é que era tudo para a senhora Almerinda. Pedia-me para a benzer. Mas sem estragar a pintura. E abraçava-a. Tinha mais amor à sua Nossa Senhora de barro do que à sua filha que morava na casa dos trinta e lhe dava muitos problemas. Devo estar a exagerar. Mas não tanto como ela. E como ela tantos outros cristãos que confundem os símbolos com o simbolizado, confundem o símbolo com a realidade que este quer simbolizar. Não vejo mal que alguém beije uma foto de um ente que ama e partiu ou que está longe há muito tempo. Contudo não é a mesma coisa. Não podemos confundir a foto com a pessoa. Não podemos confundir o dedo apontado com aquilo que o dedo aponta. Grande parte dos fundamentalismos nascem deste modo. Como dizia Tomas Halik, “não se pode confundir o dedo que aponta para a lua com a própria lua”. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quinze maças especiais"

segunda-feira, novembro 15, 2021

O Antoninho das flores e das almas

No domingo passado, o petiz foi com a mãe a uma paróquia vizinha limpar e cuidar das campas dos avós paternos da mãe. Foi no fim-de-semana dos finados e das romagens. De manhã cedo, o Antoninho, que tem a idade de quem entrou este ano na escola, acompanhou a mãe com entusiasmo. Ele gosta de ajudá-la. Ao chegarem junto da igreja, quis ir ao cemitério antigo, que quase pega com as paredes da igreja. Ao entrar, reparou que eram muito poucas as campas arranjadas com flores. Achou estranho porque no outro cemitério havia muitas flores por todo o lado. Por isso perguntou à mãe. Mamã, estas alminhas não foram muito amadas pois não? A mãe explicou que já não deviam ter quem cuidasse das suas campas. Ele fez um silêncio do tamanho dele, isto é, pequenino, e disse. E nós, porque não as amamos? Podíamos trazer algumas flores para estas também. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A chaveira"

quinta-feira, novembro 11, 2021

pedra por pedra [poema 342]

e se a pedra removida te convidar a entrar 
e fores uma pedra que não se sabe remover 
 
e se a entrada for escura enquanto não entrares 
e fores o escuro que não sabe por onde ir 
 
e se o corpo não estiver na mesa, 
e a mesa estiver dentro de ti 
 
entra

segunda-feira, novembro 08, 2021

O senhor padre não me deixa

Deixou a catequese no último ano do itinerário proposto. Deixou porque quis ir estudar para outras paragens. Para outras oportunidades. Na altura o assunto da catequese ficou encerrado. Não se pensou em alternativas à catequese. Não mais houve preocupação com estas coisas, até agora. Agora que há crisma, abriu-se de novo. Argumento principal: tive de sair para estudar fora. Não pensou foi que era nessa altura que se deveria ter tratado o assunto. Mas agora o senhor padre é que não deixa fazer o crisma. Ou seja, ele fez as opções que quis e como quis, não deu importância à catequese que lhe faltava. Sabia os requisitos. Ele não os tinha todos. Mas nunca pensou em dizer às pessoas que gostam imenso de falar na vida alheia que não podia crismar-se porque, afinal não tinha todos os requisitos necessários, em comparação com os seus antigos colegas que cumpriram o itinerário da Catequese. Só se lembrou de dizer e repetir que o senhor padre não o deixava. Como se eu tivesse alguma coisa a ver com o assunto. Eu queria muito que ele se crismasse. Não sei é se ele queria tanto como eu! 
 

terça-feira, novembro 02, 2021

O lindo Jesus do pequeno Mateus

Tenho visto o pequeno Mateus crescer para o Senhor de um modo encantador. A mãe vai-me contando as peripécias deste petiz que tem uma relação muito bonita com as coisas de Deus e que gosta muito de Jesus. Entrou este ano na escola e na catequese. Quando chegou a casa da primeira sessão de catequese, à pergunta da mãe sobre como havia sido, respondeu que fora fantástico. Quando chegou a casa da segunda sessão, imediatamente perguntou à mãe se poderia fazer um desenho de Jesus. E depois de o fazer, perguntou-lhe se o podia enviar ao Pai Natal e ao senhor padre, com este pedido: diz-lhes que fiz um Jesus com os braços abertos bem compridos para dar abraços muito bons. E fez mesmo. O desenho estava lindíssimo. Por fora e por dentro. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A catequista e o menino"

sexta-feira, outubro 29, 2021

a(s) palavra(s) [poema 341]

procuro as palavras no meio das coisas, em cima, da mesa, 
volumes de coisas espalhadas sem morada, 
não as escolho, colho-as sem esperar as vindimas,
 
vão para dentro de uma caixa onde caibo por inteiro 
em poucas palavras, 
 
pequenina caixa onde a história se esconde e termina 
quando as portas se abrem para, de novo, em cima, da mesa, 
as colher

segunda-feira, outubro 25, 2021

uma Igreja mais corresponsável

Numa diocese da Suíça, a diocese de Lausanne, Genebra e Friburgo (LGF) o bispo Charles Morerod, ao dar conta das igrejas vazias, facto que a pandemia acelerara, decidiu mexer na estrutura em que estava montada a sua diocese, que tem mais de 700.000 pessoas, e encetou o que chamou de um “salto de fé”. A maior novidade das suas decisões foi a entrega de algumas comunidades ao governo de alguns leigos. 
Algo parecido tenciona fazer o arcebispo de Lima, no Perú, Carlos Castillo. Afirmou-o publicamente, e já foi a Roma tentar perceber a real possibilidade de que famílias, casais, grupos de esposos ou leigos adultos mais velhos possam assumir a liderança de paróquias. Não ficariam sem eucaristia, porque os padres iriam passando para as celebrar. 
Esta última notícia encontrei-a, por acaso, partilhada numa rede social e, imaginem, a maioria dos comentários era contra a ideia do prelado. Até diziam que estava louco. 
Nos próximos tempos creio que será difícil dar este tipo de passos, porque o clericalismo ainda está muito presente, e as leis da Igreja também não o facilitam. O Código de Direito Canónico no cânone 515 refere: “a paróquia é uma certa comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura pastoral, sob a autoridade do Bispo diocesano, está confiada ao pároco, como a seu pastor próprio”. Ainda assim, li e vi estas notícias pelo lado mais positivo. Quem sabe um dia, a verdadeira Igreja de Cristo, apesar de se esvaziar de pessoas, vá crescendo na sua essência, como corresponsabilidade de discípulos de Cristo, como comunhão de irmãos com igual dignidade, como corpo de Cristo do qual a cabeça é somente Cristo. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja que não é de um Papa"

quarta-feira, outubro 20, 2021

getsémani [poema 340]

enquanto me levas pela mão ao jardim 
vejo os que arrastas entre nós 
não te reconheço, a escuridão levou-nos e desatou 
os nós 
 
e os demais que ficam são horas de pavor 
a sós 
 
vais para o lado onde me escondo com medo 
tocas-me e os olhos são flores do jardim 
 
grito para dentro, como te ouço em mim 
leva-me as mãos, e os pés ficam aqui 
não sei como ser tão teu como sou meu

quinta-feira, outubro 14, 2021

As dúvidas e a fé

Senhor padre, tenho sempre tantas dúvidas! disse a Joana. 
A história é recorrente. É comum. É a história de tanta gente sincera que quer ter fé, mas acha que as dúvidas atrapalham essa fé. Foi sincera comigo. Senhor padre, ainda estou muito longe de Deus. Tenho muitos momentos de dúvidas! 
Joana, precisamos da dialética entre fé e dúvida, respondi. Ela é essencial para quem quer fazer o caminho da fé. Não tanto com as dúvidas sobre Deus, mas com as dúvidas sobre o nosso conceito de Deus, sobre o que esperamos d’Ele e sobre a nossa relação com Ele. Não devemos esperar da fé que ela forneça respostas para todas as nossas perguntas, embora ela ajude a encontrar muitas respostas. Antes, devemos encontrar nela a coragem de entrar no mistério e levar connosco as muitas perguntas que temos. A fé não deve deixar de procurar e fazer perguntas. Não é um dado adquirido de uma vez por todas. Não se deve petrificar, como li algures, numa ideologia fechada e encerrada. 
Aliás, uma fé sem pensamento crítico pode levar ao fanatismo e à intolerância. E é o que tem acontecido numa facção da Igreja que advoga dogmatismos e certezas por tudo e por nada, como se fosse dona da fé. A fé não é uma posse. A fé é um dom de Deus e é uma resposta consciente a esse amor. Mas é uma resposta diária, que se diz todos os dias, e que se renova. Tal como o amor em duas pessoas que se amam está sempre a crescer, a fé também deve estar sempre a crescer. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Tenho fé, mas também tenho medo, senhor padre"

segunda-feira, outubro 11, 2021

ex-votos [poema 339]

é o lugar destinado do passado das pessoas que passam 
são desenhos feitos no amor das tintas e das mãos que tremem 
são graças das desgraças 
e eu vejo os passantes a passar como as fotos na parede 
retalhos de vidas retalhadas, passado que já não existe, apenas é 
a história que por ali passou e ali 
ficou

sexta-feira, outubro 08, 2021

o pequeno Francisco

Vai entrar este ano para a escola e chama-se Francisco como o Papa. O pai até tem receio que o pequeno queira ser padre porque, de vez em quando, diz ou faz coisas que o fazem pensar nessa eventualidade. Tanto que já manifestou o receio à mãe do Francisco, sua esposa, embora esta responda que o mais importante é ele ser feliz. 
Há umas semanas atrás este pai receoso teve um acidente de mota algo grave, apesar de não ter sido necessário internamento hospitalar. Ao final do dia, quando chegou a casa, foi recebido pelo Francisco banhado em lágrimas. Agarrado ao pai como quem se agarra ao mais sagrado do mundo, o Francisco pedia-lhe mil desculpas porque a culpa tinha sido dele, uma vez que naquele dia se esquecera de rezar a Jesus a pedir que protegesse o seu pai querido. Nunca se esquecia, mas naquele dia esquecera. 
Claro que ele não teve qualquer tipo de culpa e foi necessário explicar-lho. Contudo, o que nos chamou particularmente a atenção a mim e à avó que mo contou, foi a confiança de amor que este pequeno Francisco deposita diariamente em Jesus e como diariamente fala com Ele. Assim se entende melhor o que Jesus dizia das crianças e do reino dos Céus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A catequista Lucinda"

quarta-feira, outubro 06, 2021

a bela [poema 338]

se fosses a flor mais bela do canteiro 
ou o canteiro mais belo do jardim 
ou o jardim mais belo da floresta 
ou a floresta mais bela da criação 
ou a criação mais bela do criador 
serias a flor mais bela do canteiro

segunda-feira, outubro 04, 2021

A minha multidão

No episódio daquela mulher que há doze anos sofria de um fluxo de sangue, existe uma multidão que toca Jesus de todos os lados, que o aperta, que o faz encolher e, permitam dizê-lo, quase desaparecer no meio de tão grande amontoado de corpos ou de pessoas. Essa multidão esconde Jesus. Sabe-se que vai a passar, porque a multidão vai ali. Sabe-se que está por perto porque as pessoas falam dele. É como se ele se manifestasse discretamente no que se diz acerca dele. Até nisto me prende o coração. Só que a multidão falava dele por arrasto. O arrasto das multidões que repetem o que os outros repetem e se deixam arrastar com o que os outros repetem. 
Uma multidão é feita de muitas pessoas e cada pessoa é única. Creio, porém, que cada uma das pessoas que faziam parte desta multidão que tocava Jesus, o fazia por fora. Somente uma o tocou por dentro. E era uma doente, uma impura, uma morta que vivia deambulando sem vida para viver. Fazia parte do grupo dos que não podiam ser multidão. Nem de longe. Não podia ser como os outros, porque ela era única na sua miséria. E a multidão não a deixava acercar-se do Senhor. Porque ela não era multidão nem era digna de o ser. Por todos os motivos e mais alguns ela não conseguia tocar o Senhor, nem ao de leve. E aquela multidão era uma muralha. Uma muralha entre Deus e os homens. Era uma multidão que tocava Jesus mas não o tocava. Era uma multidão que falava dele mas não falava com ele. Era uma multidão longe dele. Era uma multidão sem ele, mesmo falando dele. Era uma multidão que ocupava o lugar dele. E hoje sei que eu sou a multidão que tantas vezes me impede de tocar, mesmo ao de leve, no Senhor. Sou eu a minha multidão. 
 
Revisitar Mc 5, 21-43

sexta-feira, outubro 01, 2021

sou a multidão [poema 337]

sou a minha multidão, que me arrasta e me relenta 
as vozes que ouço na cabeça e não distingo, em mim 
 
sou a muralha que cresce à espera de uma enxada 
e do grande lavrador que venha com a sementeira, eco em mim, 
repito em mim 
 
mas ouço gente que é toda a gente, e repetem 
em mim, sou uma multidão 
à espera, oh sim 
 
e me faça ser só eu no meio de toda a multidão 
que sou 
 
Mc 5, 21-43

quinta-feira, setembro 30, 2021

Os tempos das coisas

No encontro de preparação do baptismo do seu filho pequeno, à pergunta sobre o motivo pelo que tinha decidido baptizar o filho, o pai do Manelito, respondeu com honestidade que o fazia por tradição e porque a mãe, ou seja, a avó do Manelito, lhe chateava a cabeça para o fazer. Ipsis verbis. Ia baptizar o filho por ser uma tradição e porque, de certo modo, seguia o hereditário desejo dos seus antepassados. 
Esteve atento e foi dialogando quanto baste. Não estava muito interessado no encontro, mas também não estava lá como se não estivesse. E no final, fez a pergunta natural de quem está mais preocupado com outras coisas: quanto tempo vai demorar a coisa? Porque as coisas demoram tempo, porque o tempo de Deus é sempre diferente do nosso e porque ele precisava ouvir a minha resposta tal como lha dei, disse O tempo que for necessário. Os tempos das coisas são sempre os tempos necessários. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Deus de folga"

terça-feira, setembro 28, 2021

enxurrada de pessoas [poema 336]

e a enxurrada trouxe as pessoas arrastadas, 
e agarradas, umas nas outras, 
apenas as mãos seguradas 
 
e os outros somos nós, quando chegam 
as últimas chuvas, na vida que se apresenta 
como eterna primavera na tormenta 
 
a enxurrada 
lenta

sexta-feira, setembro 24, 2021

futuro sem pessoas

Numa sondagem realizada este ano a jovens entre os dezoito e os vinte anos, pelo instituto Noto Sondaggi e encomendada pela fundação Donat-Cattin, em itália, concluiu-se que 51% dos jovens entrevistados não se imaginam como pais. Não querem sê-lo. Uma pesquisa realizada em 2018 no Brasil, pelo Nube – Núcleo Brasileiro de Estágios - perguntou a 41.389 pessoas, na faixa etária de 15 a 26 anos, se pretendiam ter filhos, e 28,3% dessas pessoas revelaram não considerar a ideia de ter filhos. Outra pesquisa americana, do Instituto PEW, realizada nesse mesmo ano, constatou que cresce o número de americanos que declaram não querer ter filhos no futuro. E o Census 2021 em Portugal revelou uma perda total de 214 286 habitantes em 10 anos. 
Pelos vistos, as novas gerações não querem formar família ou ter filhos. Não querem ser fecundos. Não querem este tipo de compromissos. Como muitos outros tipos de compromisso que lhes criem exigências para além do suposto bem-estar. É muito estranho, uma vez que a felicidade acontece pelo amor e o verdadeiro amor é fecundo, isto é, saí de si para os outros e espelha-se ou espalha-se nos outros. Nós somos potencialmente felizes porque temos a oportunidade de amar. Por isso, os solitários têm dificuldade em serem felizes. 
A continuar assim, o mundo terá cada vez menos pessoas, tanto no sentido demográfico como no sentido antropológico. As pessoas não querem mais pessoas! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O senhor que agradece tudo"

terça-feira, setembro 21, 2021

uma instituição vazía, ainda que cheia de actividades

Pode-se afirmar que a Igreja sempre foi prolífera em iniciativas pastorais. Nos últimos anos,  desde o Concílio Vaticano II, esta forma de se viver em Igreja cresceu exponencialmente. A denominada Nova Evangelização, ideia bastante interessante na sua génese mas parca na sua prática, incrementou a criatividade pastoral. E estes tempos pós-modernos, voláteis, líquidos e plurais, são tempos que privilegiam, mesmo social e culturalmente, o excesso de actividade e de comunicação. A Igreja apenas vai na onda e por isso - desde as Igrejas particulares à Igreja universal representada pelo Vaticano - vive envolta de livros, notas pastorais, congressos, palestras, eventos religiosos e afins. 
No meio de tanta iniciativa pastoral, sobra pouco espaço para se viver aquilo que se prega. Sobra pouco espaço para o testemunho, essa acção discreta, diária e simples de mostrar que Cristo é a razão de viver por excelência. Dizia Paulo VI que “O ser humano moderno precisa de ver como se vive, mais que ouvir dizer como se deve viver”. 
A Igreja do futuro ou será uma “Igreja Testemunho” ou será cada vez mais uma instituição vazía, ainda que cheia de actividades. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Quer ser padrinho"

quinta-feira, setembro 16, 2021

in-definição [poema 335]

vejo-me em ti, na penumbra dos dias que são noites 
sinto os teus passos pelo toque silencioso do soalho 
perco-me como se fosses apenas minhas entranhas 
há um misto de terror, medo e entusiasmo pelas dúvidas 
serás tu ou serei eu a caminhar por mim adentro? 
serei eu a tua presença nas coisas que desconheço? 
serás tu a noite que parece não querer acordar? 
serei eu a réstia do que sobrou da criação? 
 
vejo-me em todo o lado, como tu és a habitação do mundo, 
nascem arrepios e não é frio. É mesmo não saber nada de ti 
e saber que este nada saber és tu, sempre, mas sempre 
em mim

domingo, setembro 12, 2021

Nunca pensei em ser padre para ser um padre

Nunca pensei em ser padre para ser um padre. É certo que a imagem do padre da minha terra, um homem carinhoso e com algum carisma, marcava os meus tempos de criança. Hoje, porém, não lhe sei mais as feições nem as marcas. Recordo que na catequese me distinguia por ser um petiz que sabia coisas e gostava de saber, que dizia coisas de coração sem as pesar. E dizia coisas bonitas de Deus que começava a amar. Aliás, que tinha começado a amar em casa. Recordo também que olhava para os padres como se todos fossem santos. Como se não existisse neles nenhuma marca de impureza. Ainda me lembro – e agora rio-me - de ter pensado que os padres não iam à casa de banho, porque esse era um lugar de imundície. Muito menos os bispos. E o papa seria imaculado. Contudo, nada disto me iludiu a ser padre. Nunca quis ser padre para ser assim. Foi apenas uma voz que ouvi por dentro e que não sei definir. Muito menos na altura. E essa voz era fantástica. Queria-me e pronto. Uns anos depois dei-lhe o nome de vocação. E aceitei que assim fosse nos tempos de Seminário, à procura da voz e da vontade que, tinha a certeza, vinha de cima. Ainda não sabia os meandros do clero, que fui descobrindo aos poucos. Sempre gostei mais da voz. Muito mais. Sempre a achei mais verdadeira que tudo o resto. E ainda acho. Ou tenho a certeza. Ao longo da minha história a caminho, o que sempre quis foi fazer a vontade dessa voz. Desse por onde desse. Como padre ou como ela quisesse. Hoje, olhando para trás, dou por mim a magicar a certeza de que decidi ser padre, não para ser padre somente, como algo que se faz, como uma função, como um emprego ou ganha-pão, mas como a forma de escutar constantemente a voz que me diz que me quer e pronto. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Ser padre como um cireneu"

quarta-feira, setembro 08, 2021

As paróquias deixarão de ser paróquias!

Mais de oitenta por cento das paróquias a meu encargo não chegam a duas centenas de habitantes. Duas delas têm no máximo três dezenas de habitantes. No censos de 2021 constatou-se um decréscimo assinalável. A mesma realidade encontramos em muitos outros locais, sobretudo no interior do país desertificado. As pequenas dimensões de algumas comunidades paroquiais e uma prática cristã reduzida em muitas outras, impedem-nas de ter os dinamismos necessários a uma comunidade activa ou confrontam-nas com a falta de meios e recursos humanos e materiais para sobreviverem com a qualidade necessária. Além disso, a sua ação tem sido quase exclusivamente sacramentalizadora, sem grandes conversões de coração, envolvimento na comunidade, encontro com Cristo, ou fé esclarecida e amadurecida. 
A paróquia, que tem vindo a deixar de ser o centro de vida das pessoas e a deixar de ter exclusividade para a caminhada de fé dos cristãos, não deveria pensar-se como um território ou um aglomerado social de indivíduos batizados, uma instituição puramente jurídico-administrativa, ou uma simples estação de serviços religiosos. Assim como, naturalmente, não há comunidades sem pessoas, também não têm futuro as comunidades cristãs com estruturas estáticas, centralizadas em párocos, pouco colegiais e fechadas a serviços mais partilhados. 
É capaz de ser necessário ultrapassar o modelo feudal das paróquias e de uma Igreja em que o único eixo ou o principal eixo sejam as paróquias. O modelo tridentino do sacerdócio e de organização da Igreja, para além de fazer cada vez menos sentido, na prática, não está a ser possível. A corda esticada está já muito esticada e quase a rebentar! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As paróquias que estão a morrer"

sábado, setembro 04, 2021

os padres santos XII

Conheço padres que são autênticos democráticos. Não fazem nada sem ouvir as opiniões todas. Parece que têm medo de assumir as consequências das suas opções. São muito bons a escutar os outros. A precisar dos outros. A viver não sendo o centro. Mas às vezes não conseguem ser coordenadores. Apenas fazem listas de opiniões e de escolhas. Ao menos são democráticos sem serem políticos no sentido que vivem para ter maiorias. Contudo, vivem a indecisão como uma sombra. E depressa são apagados pelas dezenas de leigos que são mais decididos e se impõem. Claro que isso não tem verdadeiro mal. O mal existe apenas quando se deixam ir na corrente. E são santos também na medida em que, tal como Deus, não se querem impor. Vivem para o que os outros quiserem. 
 

terça-feira, agosto 31, 2021

homens inacabados [poema 334]

dizem-me que existem homens inacabados e que morreram assim 
como aves que não levantam voo ou peixes que não sabem nadar 
 
são homens de barrigas proeminentes, sentados sobre o que são 
montes de desperdícios ou descartes, são descartados como 
flores fora do jardim ou perfumes sem odor, são homens 
que nunca nascem de verdade, são só corpos a viver 
 
Ah, quem me dera voltar a ser homem inacabado 
para um dia poder ser

sábado, agosto 28, 2021

A missa do Centro de Preparação para o Matrimónio, vulgo CPM

Navegava, há dias, pela net, à procura de uns dados sobre o CPM, Centro de Preparação para o Matrimónio, quando, às tantas, numa página, dei por mim a ler comentários de noivos que já tinham participado ou iam participar no CPM. Um deles chamou-me particularmente a atenção, porque dizia: Nós já fizemos, até gostámos, mas depois tivemos de ir à missa. 
Notou-se bem o tom de fastio, mesmo sem ser assinalado. Porque o “tivemos de ir à missa” surge depois do “até gostámos, mas”. Ou seja, duas pessoas que decidem casar pela Igreja, provavelmente depois de exigirem ao padre missa no casamento - mas isso sou eu que posso estar a exagerar -, e depois ficam algo descontentes ou esmorecidos no seu contentamento, porque no final do encontro de preparação para o seu matrimónio católico tiveram de ir à missa. 
 

terça-feira, agosto 24, 2021

Uma Igreja sem fé

A generalidade dos baptizados que fazemos são pedidos por e para gente sem fé. Os casamentos igual. A catequese da infância e adolescência está estruturada como se os seus destinatários fossem pessoas com fé. Promovemos acções pastorais e eventos religiosos para pessoas que não têm fé e que apenas vão precisando da Igreja para necessidades pessoais ligadas a sacramentos, festas e funerais como eventos sócio-culturais arreigados. Gastamo-nos numa acção eclesial para gente sem fé, convencidos de que têm fé. Ou pelo menos estruturamos e executamos a nossa acção pastoral e cultual como se fosse para pessoas com fé. E as consequências estão à vista. Os agentes pastorais, a começar pelos sacerdotes, desgastam-se a fazer actividades inconsequentes e que, em muitas ocasiões, fomentam problemas e conflitos que doem a quem se dedica com zelo e que, às vezes, ainda afastam mais do encontro com Cristo. 
Uma Igreja constituída maioritariamente por gente sem fé que se agrega, mais ou menos, a ela como instituição sócio-cultural não tem futuro. E se a nossa Igreja, que queremos mais missionária, não se focar especialmente no primeiro anúncio, essa experiência de encontro com Cristo que leva à conversão, será, dentro em breve, uma Igreja mais vazia ainda. Vazia sobretudo da fé. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Gostava de esvaziar a minha igreja"

sábado, agosto 21, 2021

o inverno [poema 333]

e o inverno chegou no meio da primavera 
as flores pararam sem secar, os animais deixaram de se ouvir 
falavam para dentro, tudo falava para dentro, mesmo as casas 
de pedra encavalitada e encavalitadas umas nas outras 
não houve outono nesse ano de inverno 
 
o tempo que nasce dentro de cada um 
 
… gosto de começar os poemas como se viessem de trás e terminassem no início, em mim. Eles crescem onde começa o que não tem início, e terminam no que não tem fim.

quarta-feira, agosto 18, 2021

Deus ama-me como sou

Escreve esta frase até te cansares de escrever ou o papel acabar ou a tinta se gastar. Na verdade, ninguém quer saber da tua história senão Ele. Ou Ele acima de todos os outros. Porque só sabe de nós quem nos ama e nós existimos enquanto somos amados. Mesmo que a morte nos separe, ficamos no coração de quem nos ama. E Deus ama-nos muito para além da morte. O seu amor é mais que eterno, porque quanto mais vive na eternidade, mais intenso vive. Ninguém te conhece como Ele. Sem filtros. Na verdade toda. Inteira. Na manhã que cresce e no dia que anoitece. E mesmo assim, ama-te. Porque o amor nasce nele e o amor não ama porque se merece. 
Escreve a frase. Gasta-te nela. Escreve-a como se não precisasses de escrever mais nada. Dorme nela. E quando já não tiveres força no braço para a escrever, deixa que ela seja escrita pelo teu coração e ali gravada. É que esta é a verdade que mais sentido dá a tudo o que vives e quiseres viver. Deus ama-me como sou. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Como te amo, Senhor?" ou "A fissura do braço de Cristo"

sábado, agosto 14, 2021

os padres santos XI

Conheço muitos padres cansados. Parecem a maioria. Acordam cansados porque já estão cansados de se levantar. Porque acham sempre que a vida lhes deve alguma coisa. E toda a gente deve algo. E toda a Igreja deve algo. E esgotam-se nesse cansaço. No cansaço das correrias que ainda nem sequer fizeram. Nas muitas viagens que fazem com os pensamentos. São os padres para quem qualquer dedo apontado é em forma de cruz. Qualquer problema é insolúvel. Qualquer coisa que façam tem um peso que não sabem carregar. E vivem no limite da depressão ou do burnout. Vivem nessa tensão, como uma corda pronta a rebentar. Ou a enforcar. São santos nessa fragilidade de viverem esgotados por Deus ou por sua causa ou por causas que parecem relacionadas com Deus. 
 

quarta-feira, agosto 11, 2021

A geração digital e a fé sem interesse

Durante largos anos, a Igreja, como “sociedade perfeita”, colocava o acento na firmeza e rigor doutrinal para dar credibilidade a si mesma. Nos últimos anos, porém, surgiu uma visão no sentido oposto, uma visão mais atenta aos sinais dos tempos. Por isso tem havido um esforço, e bem, para melhorar e modernizar a comunicação. No entanto, estamos a dirigir-nos para uma comunicação sem real comunicação. 
As novas gerações vivem na internet. Vivem nas redes sociais, visualizam influencer’s e gastam o tempo a receber comunicação que seleccionam nos seus interesses. E se nunca houve uma comunicação tão global como agora, também nunca houve tanta dificuldade em nos fazermos escutar. Tudo parece ruido. E no meio do ruído, até o que não o é, parece somente um ruído. 
É certo que hoje não se conseguiria chegar às novas gerações se a nossa comunicação fosse apenas como era antigamente. O problema, porém, persiste, porque o digital não cria interesse se este não existe. E para existir interesse, este tem de se suscitar no meio de milhares de interesses que se confundem. É bastante difícil transmitir a fé em tempos de uma confusão global de comunicações maioritariamente virtuais. A fé é sobretudo relacional, e no mundo virtual o relacional é mais fictício que verdadeiro lugar de afectos. 
Parece-me que a Igreja, neste sentido e como um todo, tem-se vindo a deparar com grandes dificuldades em fazer passar uma mensagem que não seja light, porque quer agradar, ou enfadonha, porque demasiado agreste. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Amizades especiais"

segunda-feira, agosto 09, 2021

Sara [poema 332]

Envelheci a ver o tempo passar sem amanhã 
A loucura chegou arrastada pelo meu querer 
A luta contra os deuses em meu redor 
Sem mim 
 
Não sei que nome dar ao meu lamento 
O menino cresce nas veias e no tormento 
A espera não nasce, não é semeada 
 
Ai que dor me consome por fora e por dentro 
Pelo amor de deus que se esqueceu 
E o ai volta cada vez que resolve ir 
Debruçada, agarrada, colada em mim 
 
Até que o sorriso de Deus veio e ficou 

Gen 18 e 20

sexta-feira, agosto 06, 2021

amizades e aniversários

Completei uma linda idade que não quero para aqui chamar. A idade vem por si mesma e por isso não é preciso chamá-la. Entretanto, o meu aniversário de há um dia ou dois ainda me leva a receber mensagens de pessoas que querem manifestar a sua amizade, porém envergonhadas por terem deixado passar a data. E eu sinto-me na vontade genuína de tranquilizar as pessoas, pois estou certo de que, na verdade, a amizade não acontece porque as pessoas se lembram do nosso aniversário, mas porque se lembram de nós. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha avozinha"

quarta-feira, agosto 04, 2021

Homens do caminho

Quem não caminha está parado. E quem está parado, fica-se. Não passa dali. Em contrapartida, quem não quer estagnar, não pode deixar de caminhar. Quem vive a caminhar, nunca tem o caminho feito. Tem sempre caminho para andar. E como todos somos seres inacabados, somos, por natureza, caminhantes. Ou deveríamos ser. 
Nós, os padres, somos caminhantes, tanto por natureza como por missão. Por natureza, porque somos iguais aos outros no caminhar. Na necessidade de fazer o caminho. Por missão, porque o Senhor nos convida a ajudar a caminhar, a auxiliar quem caminha. Não me refiro àquele tipo de caminhante que acha que deve ir à frente para ensinar o caminho. Pois ele também não sabe o caminho. Sabe que o caminho é Cristo. Mas não sabe como percorrê-lo sem o percorrer. Por isso ele tanto poderá ir à frente, como atrás, como simplesmente ao lado. O ir é já ajudar a caminhar. Se Jesus nos convidou a tomar o seu jugo, como quem carrega connosco a nossa vida, também quem continua a sua missão deve pegar na canga e carregar quem caminha ao seu lado. 
Nós, os padres, somos essencialmente, ou seja, por essência, homens do caminho. 
 
revisitar Lc 24 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O António caído" ou "Padres que não sabem que caminham"

domingo, agosto 01, 2021

pecadora [poema 321]

vai e não voltes como a onda 
vai, leva os cabelos e a escova 
os perfumes e o teu sabor 
 
irei com a tua mágoa, e a história de saberes 
que um dia vieste como onda 
e foste como mar 
 
Lc 7, 36-50

quinta-feira, julho 29, 2021

a Igreja que se quer reorganizar na mesma organização

Numa reunião de padres, o bispo daquela diocese decidiu entregar uma folha a cada um dos presentes com algumas propostas, desenhadas a regra e esquadro, de supostas e futuras unidades pastorais. No entanto, o que ele apresentou, pese embora a boa intenção, não era mais do que uma reajuste do que já existe, realinhando as paróquias de cada pároco. Por isso não foi de estranhar que a conversa girasse à volta do “esta é para ti e não para mim”, “ai eu não quero esta”, “eu não aceito mais paróquias”. E assim uma reflexão que deveria ser séria transformou-se num mais do mesmo, inconsequente e vazia. E assim vai a Igreja que se quer reorganizar na mesma organização. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Gostava de esvaziar a minha igreja"

domingo, julho 25, 2021

As 'avós da fé' ou 'catequistas dos tempos modernos'

Num dos grupos de catequese do primeiro ano, a catequista perguntou aos meninos se já tinham ido alguma vez à missa ou se já sabiam alguma oração. Com as respostas dos meninos, que nestas idades ainda não sabem mentir com facilidade, constatou que os poucos que sabiam alguma oração a tinham aprendido com a avó, e que muitos dos que já tinham ido à missa tinham ido com a avó. 
Lamentações e saudosismos à parte, pode-se dizer, portanto, que a transmissão da fé já não se faz de geração em geração entendida como uma transmissão de pais para filhos. Mas, por enquanto e enquanto tivermos avós destas, ainda não se poderá afirmar categoricamente que essa transmissão terminou. Podemos apenas dizer que se interrompeu. 
Assim tivéssemos os netos mais tempo com as suas avós, essas mulheres ‘avós da fé’ ou ‘catequistas dos tempos modernos’. Que linda missão eclesial a destas avós!
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Nem Pai-nosso nem Avé-maria"

quinta-feira, julho 22, 2021

hemorroisa [poema 320]

há tantos anos que a história é sempre a mesma 
contada pela mesma mulher, de saias ao vento 
 
impura, impura, três vezes impura
 
outras tantas à procura 
 
há muitos anos que a história é sempre a mesma 
muda o vento, muda a mulher 
 
não muda a ternura 
que a tocou e a fez ser 
quem era 
 
Mc 5, 21-43

terça-feira, julho 20, 2021

contributos a meio por inteiro

Nasci no local, nas circunstâncias e na família que Deus quis. Repito isto até à saciedade para, no meu inconformismo, aceitar que as muitas coisas para as que gostaria de ainda contribuir, podem não estar nos desígnios de Deus a meu respeito. Sinto que o meu contributo vai a meio. No entanto, o que para mim é o meu meio, talvez seja o inteiro para Deus. Não sei. O que sei é que as medidas de Deus nunca são as nossas. E o que Ele nos pede nem sempre coincide com aquilo que gostaríamos de dar. Pede-nos que nos demos por inteiro, mas o que é esse inteiro? Como se mede? Como se quantifica? Queixo-me para dentro e tento sossegar o meu querer. Nada depende de ti, digo. Deus é que sabe. Se assim é, é porque tem de ser. O que Deus espera de ti é a santidade e não a glória. É a felicidade e não o sucesso. Ele quer-te mais a ti que ao teu contributo. 
Sobra-me aquele afã de outros tempos, os tempos da juventude, em que uma barreira era um trampolim. Não é uma desculpa, mas a maturidade ensina-nos que a vida é efémera e que as marcas que permanecem são apenas as de Deus. Não são as nossas. Que as nossas serão sempre efémeras. É bonito ansiar por mais e aceitar o menos. É bom descobrir que os desígnios de Deus são insondáveis e que o que nos ultrapassa há-de ter sentido um dia! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre é o 'tem de'"

sábado, julho 17, 2021

"A pecadora da cidade"

Era conhecida na cidade como a pecadora. Era portanto o símbolo, a presença, a essência do mal na cidade. Ser conhecido como pecador sem nome é o mesmo que ser conhecido pelo pecado. A encarnação do pecado. Não interessa a intensidade ou a qualidade do pecado, porque na cidade o que importava era como a conheciam. A pecadora. A sociedade, aqui representada na “cidade”, é demasiadas vezes aquilo que nos fasta de Deus e de nós próprios. Porque passamos a ser o que parecemos e passamos a sentir-nos ausentes de quem somos de verdade. Mesmo diante de Deus, numa humanidade sofrida em que pesa a indignidade de amor por parte do senhor do amor. Vivemos apenas a nossa humanidade frágil. 
Não gosto das cidades que não se importam com quem nelas moram. As cidades indiferentes. Mas gosto ainda menos das cidades que vivem a apontar dedos. Já lá dizia Bernanos que a mediocridade era o pior mal da sociedade. Os medíocres, para não sentirem que o são, apequenam os que conseguem apequenar. Fazem da sociedade um lugar apequenado. Apequenado porque todos os seus habitantes são, por motivos diferentes e paradoxais, cada vez mais pequenos. 
Gosto, porém, do modo como Jesus deixa que esta mulher o toque na sua impureza e pecado. Que leve até ele a condição de pecadora. Mesmo os adereços. Tudo o que levou com ela era o que usava com outros homens. Menos os beijos de verdade. E o que fez Jesus? Mandou-a em paz. Na paz que brota de saber-se amado por Deus. E ela foi. Imaginamos que foi, porque o relato do evangelho não nos diz para onde foi nem como foi. Nem se voltou à vida pecadora de antes. Certo que deve ter continuado a ser conhecida como a pecadora. Mas o que interessa isso, quando nos sabemos amados por Deus? 
 
revisitar Lc 7, 36-50
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre tem de saber perdoar"

quinta-feira, julho 15, 2021

Bater no peito

Hoje a minha meditação embalou-se com a oração do publicano e do fariseu. Enquanto o segundo se achava dono da sua oração, o primeiro batia no peito e pedia compaixão. Numa primeira vista, quem lê este texto, facilmente olha de soslaio o fariseu, porque faz uma oração de autojustificação, centrada nele mesmo, nos seus méritos e merecimentos. Tomamos o partido da compaixão e por isso tomamos o lugar de Deus, mesmo sem dar conta que, nessa opção, tomamos um lugar que não é nosso. Julgamos como se fôssemos o Senhor Deus. Mas o que mais me intrigou foi o bater no peito do publicano. Bater no peito é o símbolo do reconhecimento da nossa fragilidade. Batemos no peito quando nos achamos culpados e, ao mesmo tempo, indignos da compaixão do Senhor. E imaginei aquele homem sincero a bater no peito insistente e repetidamente. Como se quanto mais batesse, mais precisasse do Senhor e da sua mão. O problema é que passar a vida a bater no peito é uma atitude muito semelhante à do fariseu que estava centrado em si mesmo. Quando passamos a vida a bater no peito, é como se estivéssemos voltados sobre nós próprios e sobre a nossa fragilidade, erro ou pecado, o que ainda é pior. Onde abundou o pecado, superabundou a graça. Gostava muito que esta passagem terminasse com o publicano a sair do templo com um sorriso a transbordar da graça de Deus e de mãos dadas com Ele. Gostava muito. 
 
revisitar Lc 18, 9-14
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pássaro ferido, mas a voar"

terça-feira, julho 13, 2021

adentro neste retiro

Entro como quem adentra. Se mete por dentro. Não deixo nada para trás, porque trago tudo o que sou e me faz ser. O meu corpo, mas também a minha história e todos os pensamentos e sentimentos que tenho colectado e que vêm colados na pele, por dentro. Trago muitas pessoas, porque são parte desta história e desta vida. Não as trago como um peso. Nem quero pensar muito nelas. Quero apenas estar por inteiro. 
A entrada da casa de pedra antiga era exígua. Apertada. O carro a encolher. Mas passou. Entrámos os dois de modo igual. Também eu me encolhi para poder entrar e adentrar-me neste momento que quero viver como um retiro espiritual. Não quero nada para mim. Venho cheio de inquietações e interpelações que gostava de abrir e, ao mesmo tempo, fechar. Mas não venho por mim. Nem para encontrar respostas ou fazer descobertas. Venho, como sou, à espera do que Ele tem para mim. Não quero nada neste retiro senão o que Ele queira. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Na lareira 1"

domingo, julho 11, 2021

A igreja que não cativa

“Mas depois o padre é que não quis, e a igreja não cativa, e os padres queixam-se que as pessoas não vão à igreja mas não deixam as pessoas fazer as coisas à sua maneira... Haja paciência!” Merece um comentário a observação que li algures, também não interessa bem aonde, a propósito de alguém que queria um sacramento muito particular, com demasiados itens ao lado, bem ao lado, daquilo que era esse sacramento. 
Claro que os designados como leigos devem ter, a meu ver, uma voz ouvida, aceite e partilhada. Mas o que a pessoa pretendia era como querer dançar sem música. Ou brilhar sem luz. Fazer de algo aquilo que esse algo não é, embora pareça ser. Queria que o seu sacramento fosse tão apenas seu, que pudesse fazer com ele o que quisesse, mesmo que se tornasse um não-sacramento. 
E o problema são sempre os padres, que deviam dedicar o seu tempo a encher as igrejas com gente que vem a pedir estas coisas, que depois não volta lá, mas mesmo assim dá-se o ar de que até se era capaz de lá voltar. Não. Não estou preocupado com números, embora os números possam parecer preocupantes. Eu quero preocupar-me com as pessoas. Com a fé das pessoas. Faz recordar aquela passagem de Jesus a expulsar os vendilhões do templo, pouco preocupado se deixavam de lá ir ou não. Mas deveras interessado em devolver a sua casa de oração. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Quer ser padrinho"

quarta-feira, julho 07, 2021

tornas a morrer [poema 319]

é cansativo ver como morrem as pedras, porque doem 
a história que as esconde também as prolonga 
é engraçado como o passado é sempre a sombra dos dias 
e é eterno como o presente tenta ser. 
é até cansativo ver como as árvores morrem de pé 
ou as flores morrem depois de as olharmos 
só o cansaço não morre como tu, porque tornas a morrer 
nas pedras mortas, nas árvores de pé e nas flores 
e só morres porque estás sempre a viver

segunda-feira, julho 05, 2021

as opiniões que não podem sê-lo

Os bispos da União Europeia criticaram a aprovação, no Parlamento Europeu, do chamado ‘Relatório Matic’, que restringe a objeção de consciência e promove o direito ao aborto nos Estados-membros. Diz logo uma senhora entendida, daquelas que está convencida que nada a pode impedir de dar a sua opinião: vivemos no século XXI e em estados democráticos. E tinha razão. Por esse motivo é que os bispos têm direito a dar a sua opinião, acção que não lhe agrada e que critica vorazmente, segura de ter toda a razão. Ou seja, tanto ela como os que pensam como ela podem dar a sua opinião. Só quem pensa diferente dela é que não pode dar. E assim vai a sociedade que transforma opiniões em verdades e verdades em meras opiniões. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Vejo um padre como alguém que manda na paróquia"

sexta-feira, julho 02, 2021

preocupado com a eucaristia

Num diálogo sobre estes tempos de pandemia e pós-confinamentos, um colega mostrava a sua preocupação com a frequência ou participação nas eucaristias. Tinha-lhe sido pedido que falasse sobre as suas dificuldades paroquiais e falava com paixão e, ao mesmo tempo, com alguma tristeza, sobre os dados. Contudo, não falou senão sobre as eucaristias. Como se o anúncio da Boa Nova da Salvação se resumisse à Eucaristia e a fé se medisse por este sacramento. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Todas as semanas têm um domingo"

terça-feira, junho 29, 2021

flores [poema 318]

Podes colher as flores em mim, confesso que as reguei 
Com o teu olhar e me apaixonei 
Por elas, pois nelas se hospedou o teu olhar 
 
Deixo-te que as colhas até ao fim, fica sempre perfumado 
Tudo o que tocas e, mesmo sem flores, é um jardim 
 
Peço que não leves os espinhos ou os cardos 
São só meus e são memória
das flores que a ti te dei de mim 
 
grato por tudo o que fazes em mim, Senhor!

domingo, junho 27, 2021

A comunidade cristã eficaz

Senhor padre, o senhor é que havia de nos ensaiar os cânticos, disse a senhora Alcinda, uma das cantoras do grupo paroquial. Mas esse não é o meu ministério, respondi. Mas olhe que há padres que o fazem, assinalou. As comparações deste teor nunca são o mais produtivo de um diálogo. Eu até conheço colegas que saem do altar para tocar o harmónio ou para gesticular os compassos à frente do coro. Só que eu não gosto das comunidades clericalizadas ao ponto de o padre ter de estar em tudo e presidir a tudo. Disse-lhe que eu até poderia cantar toda a missa sozinho. Assim como dar toda a catequese. E adornar os altares. E ler as leituras, que é para referir o mais comum dos serviços de uma paróquia. A comunidade cristã eficaz não é aquela que faz tudo bem, mas aquela que é mesmo uma comunidade! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: " "Há paróquias e paróquias"

quinta-feira, junho 24, 2021

A bola de garrafa

Chegam à catequese desvairados, diz-me uma catequista. E a verdade é que estava uma garrafa de água em local estratégico, dentro do centro pastoral, para ser levada para outro lado, e este grupo de miúdos, como se fosse a coisa mais natural do mundo, serviram-se dela como se de uma bola se tratasse. Nem há pandemia nem há nada que resista. E tudo começa em casa. É o que temos. Por isso entendo como é que as catequistas têm tanta dificuldade em cumprir a sua missão. Porque não são apenas as garrafas de águas que são bolas nos pés de alguns miúdos. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta Igreja é uma treta"

domingo, junho 20, 2021

os padres santos X

Conheço padres que vivem na culpa, com medo da culpa. Vivem para a culpa. Batem no peito e obrigam a bater no peito. Nunca vêm o lado bom da vida nem das coisas. Nunca vêem o coração bom das pessoas, porque só enxergam a maldade que está em todo o lado. E é verdade que está. Mas também está a seu lado a bondade. Porque todos temos algo de bom e de menos bom. Viver na culpa atrofia o nosso viver. E há padres que vivem atrofiados e a atrofiar. Porque vivem mais a culpa que a vida. Vivem mais a vida como pecado original que como graça de Deus. Mas lutam. Lutam constantemente contra o fantasma da culpa. E sofrem nessa luta. São sofredores por natureza. E só por isso, são santos. São santos no sofrimento. 
 

sexta-feira, junho 18, 2021

Também te amo muito

Depois de meia hora sem sinal, numa manifesta apatia, e depois de rezar várias vezes a oração do Pai-nosso a olhar para ele (o pai que me trouxe à vida e que está agora numa Unidade de Cuidados Continuados), disse-lhe que o amava muito. E pela primeira vez nessa visita, deixou de olhar o vazio, sorriu a olhar para mim, e disse 'Também me amo muito, meu filho'. Depois voltou à apatia. E não mais segurei as lágrimas. Nem as seguro agora. Porque não quero, como não queria que fosse assim. Sei que há palavras que dizem tudo e não precisam de outras palavras. Mas também há coisas que ultrapassam as nossas forças e só as lágrimas conseguem ter força suficiente para fazer alguma coisa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO (desta vez imensamente a propósito): "Feliz dia do pai"

quarta-feira, junho 16, 2021

Desidentificado

O desabafo iniciou com os olhos lacrimejantes. Depois com o rosto macerado e inclinado para baixo. A olhar para dentro. Não me identifico com esta Igreja. Com esta forma de ser Igreja acorrentada ao sacramental e ao sempre se fez assim. Olho a construção do reino e o anúncio da Boa Nova como os pilares da missão da Igreja, como um todo, e da minha própria missão como sacerdote. Não sei tudo. Mas sei que estamos a ir pelos caminhos errados. E esta pandemia veio desvelar o equívoco. Olho para o meu bispo e para os meus colegas padres e sinto-me estranho. Por mais diálogos que faça, soam-me a monólogos. As discussões pastorais destes tempos de pandemia circulam à volta do mesmo de sempre, na busca de um novo modo de fazer o mesmo de sempre. A manutenção. A conservação. Estou cansado. Saturado. Desidentificado. O colega para quem estava a desabafar ouviu sem interromper. No final do desabafo, este lembrou-o de que ele não tinha que se identificar com o bispo, os colegas ou a Igreja, mas sim com Cristo. Com Cristo é que tens de te identificar, disse. Os olhos levantaram-se para o escutar com o olhar, e a pedir que repetisse. Com Cristo é que tens de te identificar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Rezar na verdade da dor"

quinta-feira, junho 10, 2021

os padres santos IX

Conheço padres que permitem tudo. Só não permitem que os impeçam de permitir. Ou que ponham em causa o facto de serem permissivos. Acham sempre que a Igreja só cresce porque se faz a vontade às pessoas. Ou porque se tornaram populares no meio das pessoas por acederem aos seus pedidos, sejam para a direita ou para a esquerda. Vivem entre um certo proselitismo barato e a imagem de uma Igreja ainda mais barata. Entre o agradar e o ser agradável. Não passam dali. Por isso tudo neles é um pouco leve. Tudo muito líquido, como água que vai como vai no recipiente em que estiver. São bastante voláteis. São do ‘sim’ constante ou dos ‘não’ que acabam sendo sins. Não sei se são sérios ou não. Mas sei que não sabem que fazem mal à própria Igreja, na medida em que a enformam às necessidades. Deles e sobejamente suas. Talvez sejam o rosto do sim constante de Deus. E nisso devem ser santos. 
 

sábado, junho 05, 2021

Porque foste comungar?

Estavam os dois lado a lado, em pé, ao fundo da igreja, por ocasião de uma festa de catequese dos filhos, quando o ministro extraordinário se acercou para distribuir a Sagrada Comunhão. Um destes dois amigos, aquele que só costuma ir à missa em festas deste género e pouco mais, colocou-se na fila para a comunhão. Como os outros. E comungou o Senhor. Como os outros que estavam na fila. Regressou com um grande sorriso nos lábios. Como a maioria dos outros da fila. No entanto, embora a comunhão seja um enorme motivo de alegria para os cristãos, quem o observasse com atenção diria que era um sorriso excessivo. Assim que se colocou no lugar onde estava antes, ao lado do outro amigo, este último, sabendo que ele não estava propriamente em condições de comungar, isto é, em graça, até porque quase nunca vai à missa, voltou-se para ele e perguntou-lhe porque fora comungar. E o outro respondeu com um sorriso ainda maior, que tinha ido comungar porque tinha fome. Assim, em tom de troça. 
Assim ele tivesse verdadeira fome de Deus! 
 

terça-feira, junho 01, 2021

A esperança é a última a morrer

A expressão “a esperança é a última a morrer” incomoda-me, porque a verdadeira esperança está muito para além de nós. E é essa que pode dar sentido à nossa vida e à nossa mortalidade. Temos de viver em confiança. Mas em confiança da realidade. Temos de viver em esperança. Mas em esperança do que há-de vir e que Deus nos tem preparado. O João, em poucos dias, em poucas semanas, regrediu na doença que pensara ter superado há uma década. Agora anda de médico em médico e de exame em exame, assustado. E dizia-me que a esperança era a última a morrer. Como se a esperança fosse a última coisa a morrer nele ou morresse ele primeiro que ela. 
Apesar de não gostar muito da expressão também eu a usei e continuo a usar muitas vezes. Mas agora, e no meio desta pandemia que nunca mais parece querer deixar-nos, começo a não gostar muito de frases feitas que me parecem um kitsch. E esta tem esse sabor agridoce de quem quer dizer a alguém que a coisa está mal, mas que não se deixe levar pela coisa. E cada vez mais penso que a verdadeira esperança só pode brotar da realidade, isto é, a esperança surge em nós, no meio das dores da vida, tanto quanto consigamos encarar com naturalidade a vida tal como ela nos é dado viver em cada momento e tal como quem a criou a projectou. Não será uma esperança balofa. Será uma esperança ancorada na certeza de que Deus tem, não só um projecto de vida magnífico para nós vivermos, como uma vida eterna de amor à nossa espera. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "É que me lembrei da esperança"

sexta-feira, maio 28, 2021

os padres santos VIII

Conheço padres que acham que mandam no mundo. Pelo menos o mundo à sua volta. O mundo que conhecem. E também acham que têm um contacto privilegiado com Deus. O Deus que conhecem como ninguém. São aquele tipo de padres que vivem ainda no tempo de Trento e no clericalismo a que se habituaram sem maldade. Acham que a paróquia anda à sua roda. Aliás, ali nem o bispo manda mais que eles. Ninguém pode discordar. Ninguém pode falar mais alto. E o púlpito serve, muitas vezes, para desmascarar aqueles que não vão à Igreja e para cansar os que lá vão. Mas são genuínos. E muitas vezes não sabem que poderiam ser de outro modo. Ou que conseguiriam. Eu imagino-os a caminho da santidade como santos que suportam muito peso. Até porque recai sobre eles a crise da Igreja clericalizada. 
 

terça-feira, maio 25, 2021

os padres santos VII

Conheço padres que são muito frágeis. Frágeis no sentido de não serem tão fortes como gostariam. Ou de se deixarem enredar no meio das fragilidades humanas. Que os padres também são naturalmente humanos. E tanto querem ir mais além, como não sabem se devem ir. Ou têm dificuldade em ir. Tanto querem ser fiéis, como querem viver sem o ser. E vivem no paradoxo dos dias e das vidas. Às vezes conseguem viver com essas mágoas. Outras vezes, desenganam-se no engano das mágoas. Mas quem vive na humildade da fragilidade, ao menos é santo porque não se arroga o poder de não ser frágil. Não há padres impecáveis, isto é, sem pecado. O próprio Jesus disse um dia que tinha vindo para os pecadores. E o céu deve estar cheio deles. 
 

sábado, maio 22, 2021

Ó senhor padre, tem de ser que eu não tenho outra data

Ó senhor padre, tem de ser que eu não tenho outra data. Já está tudo marcado com o restaurante, os músicos e o fotógrafo. Depois da necessária suspensão por causa da pandemia, reagendaram a data do seu casamento para um domingo, e até querem manter a hora porque os convidados já estão informados. Ou seja, o último a saber da decisão e da remarcação é aquele que supostamente vai presidir à celebração. E tem de ser, porque já está tudo marcado, senhor padre. Olhe que eu até pensei que era mais fácil por ser ao domingo. Pois, os padres ao domingo estão, ironicamente, muito mais disponíveis, de facto. Não há outro padre? Sim, há padres aos magotes, que, ironicamente, nem têm de celebrar eucaristias dominicais nas suas paróquias. E é isto que andamos a alimentar nesta Igreja-supermercado de sacramentos de ‘vista’. Eu bem sei que estes noivos, como tantos outros, sofreram imenso com a suspensão do seu casamento. Mas é preciso haver, na mesma, uma santa paciência e um jogo grande de cintura para encontrar uma solução para o ‘tem de ser’ e manter um sorriso nos dentes quando nos apetece usá-los de outro modo. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Mais um Manuel e uma Maria vão casar pela Igreja"

quarta-feira, maio 19, 2021

a catequese das festas

Depois de dois anos de uma catequese incipiente e quase inexistente, o que preocupa os pais dos meninos que frequentam o terceiro ano da catequese é ‘quando fazem a festa da primeira comunhão’. Os mesmos pais que têm consciência que a catequese foi e está a ser insuficiente. Os mesmos pais que pouco ou nunca vão à eucaristia e que agora até têm a desculpa da pandemia. Não são, contudo, os únicos a fazer perguntas do género. Também os pais dos que estão para crismar ou para fazer a Profissão de Fé, entre outras festas da catequese. A catequese pouco importa. Ter feito ou não ter feito um itinerário de fé pouco importa. O que importa são as festas. 
Este tipo de catequese para festas tem de acabar, com o risco de andarmos a gastar as poucas energias de uma Igreja que se desgasta com a manutenção do que é impossível manter. A pandemia só veio deixar isso ainda mais claro. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nem Pai-nosso nem Avé-maria"

segunda-feira, maio 17, 2021

três é a conta que Deus fez [poema 317]

era há bocado e o tempo urge 
três vezes não ouço os galos, não posso ouvir 
de olhos fechados ninguém consegue escutar 
a multidão dos olhares que me olharam 
 
era há bocado e vou sair de lá 
tacteio nas paredes para entrar nelas 
e me esconder de ti 
 
e quando entro, dou conta que és tu 
outra vez dentro de tudo o que é fuga 
carne ou sangue, morte ou vida 
em mim

sexta-feira, maio 14, 2021

as minhas paróquias vacinadas

No final da missa, e porque do Centro de Saúde me tinham pedido para dar algumas informações úteis sobre a vacinação contra o novo coronavírus, achei que fazia sentido, e não fazia mal, perguntar quem é que já tinha levado a vacina, fosse uma ou duas doses. E quase toda a gente levantou o braço, sobretudo nas comunidades mais pequenas. Fiquei muito contente. Significa que nestas comunidades estamos a progredir a bom ritmo no caminho da imunidade. E congratulei-me com eles e por eles. Bastante. Pese embora o facto de muitos deles já terem levado a vacina ter outra interpretação óbvia: são comunidades envelhecidas. Bastante. 
 

terça-feira, maio 11, 2021

os padres santos VI

Conheço padres que se acham indignos de tudo. E até certo ponto são, porque todos somos indignos de tudo. Mas somos igualmente dignos de tudo, porque a dignidade nos é dada pelo próprio Deus. Vivem, porém, enclausurados nos preconceitos e na meticulosidade das acções. Na precisão dos pecados e nos erros que possam cometer. Em tudo olham para Deus com um certo medo. Que até podia ser temor. Mas é receio de não estarem a cumprir a vontade de Deus no caminho da santidade e de não estarem a ajudar os outros a ser santos com o seu exemplo. A meu ver, deveriam escutar mais a misericórdia divina que o juízo divino. Mas costumam ser tão bons estes padres! De certo modo, buscam a perfeição e por isso são santos. 
 

domingo, maio 09, 2021

versos tentados [poema 316]

Tenho vergonha destas palavras 
Que são pequenas e o tamanho diminui de hora em hora 
Pergunto se é um velho a nascer 
Ou uma árvore a minguar 
Se é uma casa a ruir 
Ou a minha vida a crescer. 
 
Vou tímido pelo passeio das palavras que me ensinaram 
A dizer, e que escrevo como se as soubesse dizer por dentro. 
 
E a vergonha entra desavergonhadamente em casa 
E não sei onde dorme, para me deitar com ela.