sexta-feira, março 30, 2012

As confissões já não são o que eram

Tenho um colega que tem pena porque as confissões já não são o que eram. As pessoas já não se confessam. Dizia que já não têm noção de pecado. Antigamente toda a gente se confessava nesta altura do ano. Na Quaresma. O desabafo fazia algum sentido e tinha alguma razão de ser. Mas perguntei-lhe directamente porque é que as pessoas se confessavam pelo menos uma vez por ano. Como é um colega de normas e hábitos, respondeu com eles. Para comungar pelo menos uma vez por ano. Aquela resposta deixou-me quase congelado. Frio. A confissão não pode servir apenas para comungar. As pessoas não se devem confessar apenas para comungar. Devemo-nos confessar para ficarmos em graça. Claro que só quem está em graça deve comungar. Uma coisa leva à outra. Mas uma coisa não é a outra. Por isso temos cristãos que depois de comungar uma ou duas vezes, deixam de o fazer sem razão ou pecado grave aparente. Por isso temos cristãos que só se confessam com o exterior ou o descarregar dos pecados e continuam num pedaço falso de estado de graça. E por isso pecam com mais facilidade, pois o objectivo imediato da sua confissão é a comunhão. Não é nem o arrependimento nem a paz. Muito menos a graça.
Há dias, para as confissões quaresmais de uma paróquia nova, juntei as pessoas, celebrei a missa, fizemos um exame de consciência, coisa que nunca tinham feito, segundo afirmaram, e depois começaram as confissões. Expliquei o sentido daquela forma de agir. Para que percebessem que estão a preparar a Páscoa e não apenas a comunhão. Mas no final, duas ou três pessoas perguntaram-me se ainda ia dar a comunhão. Lá está. Está tudo dito.

segunda-feira, março 26, 2012

A rixa

As senhoras domingueiras estavam vestidas a rigor. Umas com mais preto. Outras com menos. Mas todas com muita vontade de se confessarem. Tanta vontade que armaram uma rixa para irem na frente umas das outras. As vozes confundiam-se, mas percebiam-se algumas palavras. Invejosas. Falta de educação. Têm a mania que são melhores que as outras. Os bancos eram arrastados com e como as palavras. Restava-me sorrir do caricato. O colega pároco abria os braços. Mas a vontade delas abafava os braços do padre e o meu sorriso. A hora do arrependimento e do exame de consciência deu lugar à hora das confissões e ponto final. O que interessa é confessarmo-nos, que é assim todos os anos. Eu sei que a paciência é um dom difícil de possuir ou alcançar. Sei o que custa esperar. Porém, é-me difícil entender que o perdão possa ser alcançado mais rápido à custa de uma certa forma de pecar.

quinta-feira, março 22, 2012

O Carlos que é meu sacristão

O Carlos é meu sacristão e tem uma pequena quinta. Tem algum vivo. Nos animais e na terra está grande parte da sua vida. Mas como não tem chovido, a sua vida está a secar. É um homem de fé. Olho para o seu rosto, e imagino que os santos são assim. Quanto mais o conheço, mais o admiro do fundo do meu coração e da minha fé. Mesmo que cometa algum erro, não consigo zangar-me com ele. Basta olhar o seu rosto para que a minha chamada de atenção passe a ser apenas um ensinamento acompanhado de um sorriso. O Carlos tem rezado para que chova. Disse-me que pedia a Deus que chovesse, mas também não se zangava com Ele por não chover. E no outro dia, contou-me, estava já na cama quando sentiu o cheiro de ar sem pó de quando acaba de chover. Levantou-se, ajoelhou-se ao lado da cama, e agradeceu a Deus. Foi um gesto muito pequeno e simples. Aliás, muito natural no Carlos. Mas eu logo pensei que não seria capaz de me levantar para me ajoelhar e para agradecer a Deus com esta simplicidade e ternura. Olhei novamente o seu rosto, e mais uma vez tive a certeza que os santos não estão todos nos altares.

quinta-feira, março 15, 2012

A gente não reza porque Deus existe, mas porque O ama

Foi quase uma discussão de café sem xícara. Sem açúcar e sem o amargo do café. Não estávamos diante de um balcão cheio de garrafas, mas numa sala normal onde as pessoas se ouvem. A senhora mais baixa falava de fé. Disse que acreditava em Deus. Que Ele existe e é todo-poderoso, todo-omnipotente, todo-omnipresente. Por isso tinha fé. As outras senhoras concordaram. A senhora mais alta, porém, achou que acreditar apenas que Deus existe não é ter fé. A gente não reza porque Deus existe, mas porque O ama. As outras ficaram caladas a ouvir. Ela não disse muito mais, e pediu para eu explicar melhor. Eu disse Pois é. Que é a forma que utilizamos quando não sabemos que dizer, ou como começar, ou temos muito para dizer. Era a terceira opção. Tentei resumir. Sabem, aqui há muitos crentes, mas poucos cristãos. Aqui mesmo, na nossa paróquia. Se calhar nesta sala. Não levem a mal. Acho que elas ficaram meio assustadas. Mas continuei. Ter fé é ver a vida com o mesmo olhar de Cristo. Fazer com as mesmas mãos de Cristo. Falar com a mesma boca de Cristo, até dizer como dizia São Paulo Já não sou eu que vivo. É Cristo que vive em mim. Não disse mais nada, para não estragar o que tinha dito.

quarta-feira, março 07, 2012

homens de Deus ou dos homens, ou então de Deus ou bons homens

Enquanto a bomba enchia o depósito do meu carro, a senhora da gasolineira, sem motivo aparente, falou do padre tal que era muito boa pessoa. Que era um bom homem. Há dias no café, outra pessoa tinha feito observação idêntica de um colega. E no Centro. E até na sacristia. A minha reação foi sempre igual. Sorrio e digo que fico contente por ouvir o que ouvi. E fico mesmo. Os padres gostamos que estas palavras existam na boca das pessoas para percebermos que afinal somos instrumentos de Deus necessários. Porém, hoje, depois do sorriso e de dizer que ficara contente, entrei no carro, liguei a ignição e comecei a magicar sobre o que gostaria que falassem de mim. Se por acaso falassem e quando um dia falassem, ou imaginando que até falassem. Ficaria feliz que dissessem que era um bom padre. Que era um homem de Deus. E depois veio-me à memória uma história verídica de padres para os lados de África que um dia ouvi. Falava de um grupo de padres que tinham feito muitas obras sociais e investimentos de progresso na missão. As pessoas gostavam muito deles e das suas obras. Deviam imenso àqueles padres. Aconteceu que no dia de uma inauguração importante de uma dessas obras em que estava presente o bispo, um senhor dos mais velhos, um ancião, dirigiu-se ao bispo e agradeceu do fundo do coração a obra dos padres. Que eram muito bons. Entretanto, conta a história que no final do agradecimento, o ancião acrescentou ao bispo mais ou menos isto. Agora que já estão concluídas estas obras, já nos podem falar de Deus, não é?