sexta-feira, setembro 25, 2009

A fugitiva

Ia calçada acima e ela vinha calçada abaixo. Estranhei que viesse caminho abaixo àquela hora. Iria passear? Mas a idade não lhe permitia grandes passeios. Estranhei muito. Por isso parei. Cumprimentei. Então que anda a fazer? Vou-me embora, padre. Vou para minha casa. Vinha do Lar e, com a bengala, esperava chegar junto da praça de táxis para apanhar um e fugir para a sua casa que é numa paróquia vizinha. Fugia. Ninguém sabia que ela se ausentara do lar, explicou com palavras dela. Ainda bem que o encontro, senhor prior. Não aguento mais lá estar naquela sala. Já pedi para me tirarem de ao pé daquela senhora no quarto. Não me ouvem. Fazem que não ouvem. Eu nunca quis ir para o lar. Obrigaram-me. Sofro muito. E os seus filhos? Perguntei. Sabem? Foram eles que lá me meteram. Já desde Abril que pedi à minha São que me tire de lá e nada. Ninguém quer saber de mim. Ontem a minha filha veio ver-me e eu estava a chorar à janela. E disse-lhe que ia para minha casa. Sabe que me respondeu? Que fizesse o que quisesse. Chorei tanto. Por isso vou para minha casinha. Lá é que estou bem.
Não sabia que dizer-lhe, pois nas minhas poucas visitas aos lares desta zona, fico sempre triste, apesar de saber que os funcionários fazem o melhor que sabem e podem. Mas é sempre uma mudança de vida numa altura em que já não se sabe viver. É sempre um estar dependente. É sempre uma prisão de pensamentos e de histórias que os nossos lares contam.
Então e de que vai viver? Quem a vai tratar? Respondeu-me que o centro de dia da terra. E os seus filhos? Não era melhor conversar com eles? Pois eles vêm aí por estes dias, é verdade. E eles disseram-me que ficavam mais descansados, sobretudo à noite, sabendo que estava num lar. Está a ver. Eu se fosse seu filho também ficava mais descansado. Nunca se sabe o que pode acontecer. Mas sofro tanto, senhor prior. Imagino que sim. Mas nada lhe garante que não sofresse mais lá em casa. Ali sempre tem quem lhe faça o que precisa. Comida, higiene, limpezas, medicação. Ora pense lá. Vai fugir e isso não é muito correcto. Devia falar com seus filhos e depois resolver tudo com calma.
Eu nem tinha a certeza se queria que ela fugisse ou voltasse atrás, porque um lar faz-me sempre pensar no lado de lá e no lado de cá. Mas falei pelo menos para o melhor no momento. E com uma lágrima no rosto ela respondeu. Obrigado, senhor prior. Vou voltar atrás. Tem razão. Vou pensar melhor, e vou esperar pelos meus filhos.
Despedimo-nos e, como quase sempre no final destas conversas, voltei para casa confuso. Confuso com a vida e com a minha missão.

domingo, setembro 06, 2009

O motor

Mora sozinha numa casa de pedra e a sua idade gastou-se com o tempo, como as pedras. Pequena, curvada, de lenço preto na cabeça. Mas nem a idade nem a aparência a impedem de ainda fazer uns trabalhos na quinta.
Foi com essa genica que veio ao meu encontro antes da missa. Padre, peça pelo meu motor na missa. Eu não entendi e perguntei o que pretendia. Respondeu que queria colocar nas intenções da missa o seu motor. Nem imaginem a contenção do meu riso despregado. Expliquei que não era um pedido comum. Continuou. O malandro, não tem funcionado. Por isso peço ao senhor que faça com que ele funcione. Respondi que o que ele precisava não era da missa, mas do mecânico. Que o levasse a compor. Disse que já o tinha feito e que nada. Trabalhou apenas uns dois dias. Então que comprasse um novo ou que o levasse de novo ao mecânico. Que não. Que era muito caro e naquela idade já não valia a pena. Que já tinha posto duas velas aos santinhos. Ia colocar a terceira. Mas nada. Devem estar distraídos, concluiu. Agora recorria à missa. Só eu lhe podia valer. Faça lá isso, padre, por alminha da sua mãe, que eu preciso do meu motor.
Eu ri da situação. Ela riu de satisfação. Mas o motor ainda deve estar parado. Será que Deus também se riu?
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Amigos, vou de férias. Estive no Simpósio do Clero, em Fátima, o que me fez muito bem, e agora vou descansar algum tempo. Se vos lembrardes, fazei uma pequena oração por este servo de Deus. Em breve voltarei. Até lá, que a vida seja uma alegria. Por isso sorriam. Por isso vos deixo este texto. Um grande abraço.