segunda-feira, junho 26, 2006

Levar com alegria o sofrimento?

Foi um dos meus Ministros Extraordinários que me abordou. Um doente amigo chegara do Hospital, mas não queria comungar sem antes eu passar por lá para lhe dar uma forcinha. Foi mais ou menos assim que falou.
Encontrei-o sentado. Olhos vidrados, no espaço, na dor, na vida. Amarelos, como o resto da face. Pijama vestido. Sofrimento vestido. A olhar para mim com uma alegria estranha, no mínimo, porque o sorriso era distante. No meio da conversa difícil pelos monossílabos constantes, a dor estava sempre presente. Não aguento. Bem peço a Deus, mas não aguento. Que hei-de fazer? Diga-me, padre. Eu respondi, primeiro em silêncio. Depois com coragem. Que hei-de eu dizer? Que se pode dizer? Não tenho muitas palavras. O que pudesse dizer não lhe retiraria as dores. Mas de uma coisa estou convencido, disse. Tudo na vida se leva melhor com alegria. Será mais fácil levar o sofrimento com alegria. Pesa menos. A alegria retira uns quilos de falta de força. Eu costumo dizer que devemos procurar a felicidade com o que temos. A felicidade que se procura com o que queremos ter é mais difícil alcançar. Se Jesus nos quer ver felizes e nos permite sofrer, é porque no meio do sofrimento também podemos ser felizes. Imagino que seja difícil. Mas penso que é possível. Vai tentar? Vou, respondeu, passado um tempinho de reflexão. Ficou melhor? Fiquei. Mais rápido respondeu.
No final, ficou a brincar com um coração de borracha que alguém lhe tinha oferecido.

quinta-feira, junho 22, 2006

Chama-se Jesus

Eu, dum lado da estrada, à saída de casa. Eles, do outro lado. Mando um Boa tarde e um aceno. De lá respondem quase mecanicamente igual. O Diogo corria de um para o outro lado. Não da estrada, mas do espaço possível que a mãe lhe concedia a medo. Quatro anitos, se não me engano. Meto-me com ele. Insisto. Nada, que a correria era mais interessante. Já se sabe como são as mães, e esta pergunta. Sabes quem é que está além? Sabes quem te está a falar? Resposta pronta e certeira: Jesus. Depois continua a brincadeira como se fosse o mais natural fazer aquela afirmação. A mãe insiste. Não vês que é o senhor padre. Não. É o Jesus. Parecia aquela passagem de Jesus com Pedro, e sempre a mesma resposta. A mãe desistiu. E enquanto isto se dá, nuns segundos que me pareceram dias, a minha boca permaneceu bem aberta e a mão a tapá-la. Quase ia chorando emocionado quando entrei no carro. É claro que eu sei o que dizem os pais quando levam os filhos à missa: Vamos ao Jesus. E a pessoa que ele encontra sou eu. Mas não resisto a pensar alto o que pensei na altura. De facto, quando procuramos a todo o custo descobrir o modelo de padre para os nossos tempos, uma criança ensina que deve ser Jesus, e que deve descobrir-se na Eucaristia. Ela vê no padre, durante a Eucaristia, o próprio Jesus. Pode não ter sido o seu raciocínio. Nem sei se foi raciocínio. Mas foi o meu. E naquele dia dormi bem.

quarta-feira, junho 14, 2006

Uma benção especial de alianças

Óculos fundo de garrafa. Cabelos desgrenhados. Pode parecer que já estou a induzir numa imagem. Mas foi-me trazida desta forma ao fundo do adro. Simplicidade ou desalinho. Também não interessa propriamente porque todos são filhos de Deus e eu vejo-os como tal. Estava a sair do carro. Meio fora meio dentro. Uma mão a segurar a porta. Outra, a segurar-me a mim. Senhor padre. Nem me deixava sair do carro. Desliguei o som do cd para ouvir melhor. Levantei-me. Ficámos separados pela porta. Olhe, sabe, a minha filha... aquela... vai para fora do país. O senhor já sabe. Ela casou pelo civil. Ainda temos de baptizar a menina. Eu recordo o caso vagamente. Casar à pressa. Afirmei que sim, que a baptizávamos. Mas que poderíamos falar primeiro sobre o casamento religioso, por exemplo. Não que eu quisesse obrigar a decisões mais precipitadas ainda. Mas podíamos conversar. Até porque querer um sacramento e não querer outro parece um contra-senso. É contra-senso. E estava a explicar-lhe isto, questionando-a porque não tinha vindo a própria, a filha, quando explicou. Sabe, padre, não queria que ela fosse para o estrangeiro sem benzer as alianças. Eu abri bem os olhos. Desenhei algumas rugas na testa. E perguntei: Como?! E porque não casar? Ela não quer, pelo menos para já. E acrescentou, na sua inocência, que era mesmo só benzê-las. Não era preciso nenhuma cerimónia. Que em qualquer altura eles apareciam para eu o fazer. Ela até se dispunha a trazer as alianças. Eu afirmei. Se é contra-senso querer um sacramento e não querer outro, não lhe parece mais contra-senso pedir uma bênção e não querer o sacramento que abençoa as alianças?! Ahh, mas não pode fazer esse favor, padre? Fechei a porta e comecei a andar, respondendo-lhe como quem não tem tempo para mais perda de tempo: vamos primeiro falar sobre o casamento. Fale com ela sobre isso. A bênção fácil não resolve nada. Nem superstições. Ela pense no que quer de Deus. Depois falamos. E ainda não falámos. Quando me ajoelhei na Igreja, rezei por ela, por eles, os três. Os quatro. Ainda me veio à ideia uma questão económica. Não sei. Podia ser. Mas ainda não falámos.

quinta-feira, junho 08, 2006

Dois funerais, uma história

Nos funerais há sempre histórias. Não sei bem porquê, mas há. Imagino que seja porque nessas horas as máscaras caem. Ficam as rugas, os sinais, as marcas, a verdade, visíveis. As pessoas próximas do falecido ou falecida ficam sem defesas. Os sentimentos apagam as defesas. Por isso sofremos muito quando sentimos, seja o que for. Porque caem as defesas. Foi assim. Funeral às 10.00 horas. Marcado quase na véspera da véspera, por causa dos filhos. Certo. Nada difícil. Segundo funeral. Mesma paróquia. Todos entendem. Já sabem que são dois em um. A paróquia toda entende. Menos a senhora do segundo defunto. Ela é que manda. Mas e se o padre tem missas a essa hora? Pergunta o cangalheiro. Ele vem para aqui mandar?! O padre pensa que manda, mas não manda. O homem é meu. Eu supus que ela devia estar descontrolada. Apesar do marido estar doente faz muito, estar a sofrer muito, não estava convencida desta hora final. Eu sei o que afirmo porque o visitei uma semana antes deste acontecimento. Quis crer que era uma questão de aproveitar todo o tempo que podia para estar mais tempo com o seu cadáver. Digo-o, porque a hora escolhida era desora. 19.00horas. Mas e o outro defunto? Pergunta o cangalheiro. Não obteve resposta. Naquele momento só interessa ela, a sua forma egoísta de amar, de sentir. Inconsciente, mas prejudicial. Lembro que telefonem aos filhos para a fazerem chegar à razão. Boa ideia, respondem-me. Pior. Parceria com a mãe, e até oferecem dinheiro. Pagam o que for preciso. Indigno-me. Pergunto-me se querem mesmo um padre no funeral! Mais tarde soube que a resposta a esta minha pergunta no silêncio tinha sido dada pela senhora. Se não for com este padre, até vai sem padre. Pior foi o que me contaram que a mãe da senhora, a sogra do defunto, gritara para quem quis ouvir na sala onde jazia o morto. Para a nossa terra só vem a pior merda. Digo a palavra porque não é minha nem a uso como minha. O cangalheiro sofria. Os meus nervos subiam. Não pretendia fazer sofrer mais os familiares do outro funeral. Que esses ainda não tinham perdido a cabeça. Decisão final. Dois funerais. O primeiro, à hora marcada, que não têm culpa de nada. Missa. O Segundo, às 19.00 horas, sem missa nem distribuição de Sagrada Comunhão. Não é permitido haver duas missas na mesma paróquia sem motivo de força maior. Esta era menor. Não é permitido distribuir a Comunhão fora da eucaristia depois de ter havido uma na paróquia. Ao fim e ao cabo, quem fez o segundo foi um colega amigo depois de ouvir o meu desabafo. Obrigado a este.
Hoje, olho a dita senhora e surgem-me dois pensamentos. Primeiro. Pena, porque, até pela fidelidade à Igreja demonstrada noutras ocasiões, argumento que ela se passou da cabeça. Digo fidelidade em vez de fé, pois tenho medo de a utilizar indevidamente. Segundo. Retracção, porque estou a tentar perdoar e ainda não consegui.

segunda-feira, junho 05, 2006

Quer vir jantar connosco?

O telefonema chegou de manhã, de um dos lares de uma das paróquias. Que faz mais logo, à noite? Quer vir jantar connosco? Eu acedi, como acedo muitas vezes. Assim não janto sozinho. Mas, perguntei, qual é o motivo? Há algum motivo especial? Para comer não há motivos especiais. Mas algo me fez desconfiar. Nomeadamente a resposta murmurada, ou as sílabas esquisitas que ouvi mas não percebi. Fui. Estávamos nos finais de Maio, mês de Nossa Senhora. Estava à mesa outra família da paróquia. Depois da refeição, a surpresa adivinhada. Vamos rezar o terço. Convidámo-lo para rezarmos em família. Para rezar connosco. Foi uma noite de família e de oração. Assim sim.