segunda-feira, abril 29, 2024

As categorias tridentinas

Têm aumentando os estudos sobre a crise religiosa e as urgentes reformas da Igreja, mas os agentes pastorais principais, sobretudo os que têm algum poder de decisão, continuam com dificuldade em arriscar e em repensar posturas, mentalidades, pastorais e estruturas cristãs. Entretanto, as pessoas abandonam os bancos das igrejas, os baptismos diminuem, os casamentos religiosos estão em queda livre, as vocações à vida consagrada definham, os seminários estão vazios e os padres abandonam o ministério ou adoecem com esgotamento. A pastoral continua praticamente concentrada na “paróquia” onde permanecem os mesmos ritmos, as mesmas iniciativas, os mesmos métodos de há muitos anos. Mesmo depois do concílio Vaticano II ter aberto portas a uma Igreja mais comunhão e mais missionária, há uma dificuldade enorme em sair do “sempre se fez assim”. Nem mesmo uma pandemia que interrompeu durante meses o trabalho pastoral e que foi vista como uma oportunidade para reler o tecido eclesial e as estruturas paroquiais e pastorais, conseguiu esse objectivo. O cristianismo mudou de forma muitas vezes na história. Por que persistimos em não ler os sinais dos tempos e em enterrar a cabeça na areia, propondo uma vida de fé que parece seguir essencialmente as categorias tridentinas, com alguns acréscimos e atualizações do século XIX e algumas estruturas do século XX? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As dicas e tricas de uma paróquia"

sábado, abril 20, 2024

a droga

Na aldeia toda a gente se conhece e toda a gente sabe tudo de todos. Toda a gente se mete na vida de toda a gente. Ninguém é indiferente a ninguém, para o bem e para o mal. Quando o filho da Antónia, de nome António por amor da mãe, entrou para o Seminário, não faltaram as murmuradoras e os murmuradores da aldeia nas conversas da rua. Mas uns vizinhos, que se achavam mais próximos da Antónia, já que mais não seja pela distância geográfica, bateram à porta para tirar nabos do púcaro. Ó Antónia, é verdade que o teu Antoninho foi para o Seminário? Dizem para aí que ele foi. E a Antónia, que não tinha nada a esconder, respondeu que sim. Sim, foi na outra semana. O rapaz quer ser padre e a gente não lho refuta. O que ela queria era que o filho fosse o que quisesse ser e que fosse feliz. E a resposta dos vizinhos não se fez esperar, pois que o assunto o merecia. Ó Antónia, não te aflijas mulher, sempre é melhor isso que meter-se na droga! 
 

quinta-feira, abril 18, 2024

peixe e pão [poema 386]

o peixe na brasa, o pão 
indizível 

as mãos que acenam são as pessoas a pedir 
há uma multidão por detrás das coisas 

é o milagre que acontece 
quando o peixe sai da água e vive 
quando a farinha se amassa e é carne 

as mãos agarram-se umas às outras sem desfecho 
e o peixe espera na brasa 
por mim

segunda-feira, abril 15, 2024

a Clara e as experiências da fé

A Clara participou num encontro religioso que mudou a sua vida. Pelo menos mudou a sua relação com Deus. Fez-lhe muito bem. Saiu daquele encontro, tal como a maioria dos jovens que nele participara, cheia de Deus, como me dizia. E notava-se abundantemente no seu rosto, que era muito mais descoberto e aberto que outrora. Senhor padre, quando houver mais coisas assim, lembre-se de mim. Lembre-se de me informar. E lembro. E ela participa. Faz-lhe bem. Mas fica nesse consumo de experiências. E a fé não vive de um conjunto de experiências de fé. A fé não se consome. Vive-se. É um processo de vida. É um caminhar constante, mesmo por entre altos e baixos, entre momentos mágicos e momentos sem magia. É um caminho para fazer diariamente e para se alimentar da correnteza do dia, da normalidade das coisas, da quotidianidade da vida. Não lhe chega o acumular de experiências marcantes. Porque o dia a dia, mesmo por dentro do consciente, marca muito mais quem somos e quem nos fazemos, para onde vamos e como vamos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não há caminhos certos"

sexta-feira, abril 12, 2024

faltas [poema 385]

falta-me o tempo da noite, 
como corrente de água que se aquieta 
 
faltam-me as construções das letras 
como pedras que têm pés e têm asas 
 
falta-me o papel, sim o papel 
de embrulho para deitar as palavras 
e abraçá-las 
 
faltam-me as forças porque se escondem 
entre os dias que são árvores a crescer para dentro 
 
faltas-me tu e falto-me eu

terça-feira, abril 09, 2024

A operação do Micael

O Micael é o terceiro filho de uma família que reza. É um pequeno que tem a especialidade de falar as coisas de um modo puro. Diz o que sente sem maldade e sem medir consequências. Tem a pureza das crianças de um modo muito apurado. E há dias precisou de uma intervenção cirúrgica. Não era complicada, mas tinha as suas exigências, cautelas e perigos. A mãe tentou explicar-lhe algumas coisas, mas a médica de serviço sentou-se na sua frente e dispôs-se carinhosamente a responder a todas as suas questões e dúvidas. O Micael não fez muitas. Parecia muito confiante. A conversa que, apesar de curta, foi sobejamente interessante, terminou com a médica a dizer-lhe que confiasse que tudo ia correr bem. Ao que o Marco respondeu que já o sabia. Sabia que tudo ia correr muito bem porque de manhã cedo todos tinham rezado por ela. Todos tinham rezado lá em casa pela médica que o ia operar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A senhora vai à missa"