segunda-feira, abril 30, 2007

A bela Bela

Tem uma série de filhos, ou filhos em série. Ainda é nova, mas a vida já trouxe demasiadas experiências à Bela. Porque quis, porque aceitou deitar-se em várias camas. Mas é boa rapariga. Por isso resta-lhe cuidar das crianças, arrumar a casa e passear pelas estradas. Há dias lembrou-se de baptizar dois, os mais novos. Eu gosto de os ver na Missa. Não faltam. A mais velha leva-os. Mas vem isto a propósito porque depois de combinarmos tudo, de conversarmos muito, de tomarmos decisões em conjunto, falou da sua pobreza e que, apesar de não pagar a tal côngrua, não podia também pagar os dois baptizados. Ó mulher de Deus, não pense nisso. Eu falo com o Conselho Económico. Que ninguém deixe de se aproximar de Deus por causa de dinheiros. Eu conhecia a maior parte das dificuldades. Ficou então assente. Seria tudo gratuito.
No dia marcado, na missa marcada, obviamente, aparece toda aperaltada. Estava bonita. O resto das crianças menos mal, mas alegres. E os dois miúdos. E um ou dois amigos. E os padrinhos. E mais a avó e um que outro tio. E mais uma máquina fotográfica enorme com um indivíduo por detrás. Espanto meu. Era um dos fotógrafos profissionais da zona. E mais máquina de filmar. De espanto em espanto, não resisti em perguntar ao fotógrafo se era amigo, se fazia o trabalho de graça ou se alguém o pagaria pela Bela. Respondeu a tudo que não. Que tinha sido um contrato, umas tantas fotografias, e mais algumas na festa que vai dar com todo o aprumo, um filme do essencial do baptizado e em troca umas tantas notas. Espanto meu, espanto meu, que devo fazer eu? Aviso que este nada tem a ver com a pessoa, mas com a situação. Que todos têm direito a festas semelhantes. Ninguém é mais que ninguém. E quem tem poucas, deve aproveitar bem as que tem. Mas que haja a lucidez necessária para a coerência necessária. Que se faça com a mesma igualdade que se exige. Eu sou pobre e não posso pagar a cerimónia. Mas quero ter uma festa rija, para não dizer rica. Não bastavam as máquinas ainda vem a festança… que podia ser uma simples festinha com a mesma força da festança!
A cerimónia do baptismo não é o parente pobre mas o motivo da festa, a festa. O resto é embrulho.
O espanto maior aconteceu quando perguntei preços. Só das máquinas era o quadruplo do preço da cerimónia. Nem quis saber do resto. Nem o Conselho Económico. Toda a gente ficou mais que admirada, abismada.

quinta-feira, abril 26, 2007

A senhora da Côngrua

No final da Eucaristia veio desenfreada buscar a certidão de baptismo do filho. Tinha-a pedido faz duas semanas, no mesmo despacho. Vai casar-se, padre. Ainda sorri, como se ela tivesse feito ponto de interrogação no fim da frase. Pediram isso. Explicou e compreendi. Imaginei despacho para tudo. A certidão estava passada faz duas semanas menos um dia. Igualmente me despacho, para não esquecer nada de importante. Há muito uso bloco onde aponto tudo o que há a fazer. Só assim não esqueço. Ou melhor, o bloco lembra. Porque eu esqueço. No final perguntou se não era preciso mais nada. Eu respondi que não. Se pagava a côngrua, era gratuito. Explico melhor. Para facilitar a organização da paróquia, quem paga a côngrua tem tudo gratuito, sacramentos, papeladas. Contribuem com o que podem. Mas contribuam. Quem não paga, seja por esquecimento, por pertencer a outra paróquia ou por falta de generosidade, paga emolumentos. É assim que se chamam. Paga-se à paróquia. Não é ao padre. Trabalha-se com a justiça dos homens, reconheço. A de Deus é gratuita em todos os casos.
Estavam presentes mais dois elementos do Conselho Económico, e ela respondeu como habitualmente. Com despacho. Eu pago, pois claro. Tão claro como um dos presentes que exclamou. Não me parece. Deixa ver. Eles têm fichas organizadas. Desde 2000 que não há registo de qualquer contribuição tua. Ah, disse ela, corando e gesticulando desenfreada. Eu pensava que sim. Acreditem que ela vai sempre à missa e que ouve todos os avisos, porque só sai depois de ouvir o que, porventura, se avisa, não vá ser alguma coisa interessante. Pediu desculpas, prometeu e virou costas, despachadamente e envergonhada. Eu fiz de conta que nem assisti. E o do Conselho Económico acrescentou. Já da outra vez fez o mesmo, padre. Não lembra? Eu não lembrava. Não tinha apontado no bloco. Não aponto coisas menos importantes. Aproveitei para distrair da situação com umas graçolas.
Incomoda-me mais saber das coisas das pessoas que saber que essas coisas existem. Só lembram Santa Bárbara quando os trovões batem á porta. De resto, que trovejem para outros lados, que o meu lado não é esse.

segunda-feira, abril 23, 2007

Só fico a pensar… como seria

Dum lado está uma senhora, ou menina. Tem uma voz jovem. Não consigo ver através dos buracos do confessionário. Também não interessa. Conta-me coisas do arco-da-velha. A confissão parece demorar uma eternidade. E fico assim. A pensar. E volto para casa a pensar. Como será? Como seria? Ter uma família, uma esposa, um par ou dois de filhos? Não estou a fazer prosa. Às vezes penso como seria. Quando decidi definitivamente ser sacerdote, ser padre – andava já em teologia – disse para mim mesmo. Por muito que amasses uma mulher, amarias sempre mais a Deus. Considero que essa não era uma desculpa para nada. Era o que sentia. É o que ainda sinto. Mas, por vezes, pergunto como seria. Se calhar não estava tantas vezes sozinho, sem vontade de, inclusivamente, falar comigo. Não falava com paredes, com televisões ou com a almofada. Continuaria a dar tudo e a amar os meus paroquianos, os que Deus me entregasse ao cuidado. E não podia ser bígamo amando Deus e a minha esposa? E não é isso que Deus quer? Que amemos todos, em especial os que escolhemos para viverem connosco, e igualmente O amemos a Ele? Não sei. Não sei mesmo. Provavelmente tenho assim, sozinho, mais disponibilidade para os outros, para os meter no meu coração. Quantos lá caberão? E sou mais imparcial no que toca à vida dos outros. Estou desprendido até da família. Mas às vezes penso. Não é mal pensar. Nem é pecado. É só um pensamento. Não fico doente. Nem atrofiado. Nem castrado. Nem obcecado. Nem desequilibrado. Nem angustiado. Nem com pena. Ou remorsos. Ou saudade. Ou outras coisas parecidas. Só fico a pensar… como seria.

quarta-feira, abril 18, 2007

Cinquenta anos

Faziam cinquenta anos de casamento. Bateu-me à porta apenas ela e uma amiga. Que ele não entrava nestas coisas. Queriam marcar uma festa de aniversário com missa. Aqui há uns anos evitava-as, por causa dos transtornos. Simplificava as coisas com uma cerimónia simples. Até na casa dos interessados. Hoje reconheço que é mais meritório um aniversário que o próprio casamento. Não é que seja mais válido, mas certifica o amor verdadeiro. O casamento deixa sempre, hoje, uma dúvida. E este certificava cinquenta anos. Insisti na ideia da Eucaristia dominical. Comunidade presente para celebrar o amor. Foram pensar, mas a resposta foi não. E assim foi no passado sábado.
Dezassete pessoas, comigo dezoito. Missa bastante silenciosa. Incomodava apenas o tlink e o tlonk de cada máquina, pois haviam-se esquecido de as colocar no modo de silêncio. Cerca de dez flashes, entre câmaras de filmar e câmaras de fotografar. Não deu tempo para refilar com palavras. Fiz um ou dois trejeitos, mas também não eram óbvios. Respondiam pouco. Era mais um diálogo entre mim e mim. Pelo menos eu não ouvia, e, pelo hábito, eu até tremia com receio de mandar duas ao lado. Mas se não respondiam, como foram comungar? Sim, porque pelo menos metade comungou. Estranho. Mais tarde imaginei que eles estavam como eu, respondendo baixinho com receio de mandar duas ao lado.
Ele confessou-se antes da missa, para comungar nessa missa. A última foi há 25 anos. Imagino que aos 75 se vai confessar de novo. Festejassem cada ano e era todos os anos.
Bonito foi o rosto dos noivos. Estavam bonitos e frescos. Aparentavam menos uns 25. Ainda lhes exigi um “Eu amo-te” cara a cara e olhos quase nos olhos, porque foi rápido e a fugir, com o decoro da pureza e da vida nestas idades. Insisti que eram palavras bonitas e a utilizar toda a vida. Festa do amor. Mas fiquei com uma sensação de que não se festejou propriamente o matrimónio religioso. Isso só Deus sabe. A minha certeza induz-me apenas à festa do amor de dois cônjuges após cinquenta anos. Já não é mal, pois Deus devia estar agradado. E tlink. E tlonk.

sexta-feira, abril 13, 2007

Prometi uma missa a Nossa Senhora do Ó

Acercou-se a coçar barba. Olhou-me de esguelha. Tipo, não sei se é este! Mas deve ser, pelo jeito. E disse baixinho, como se não conviesse que mais alguém ouvisse: “Senhor padre, prometi uma missa em acção de graças à Senhora do Ó. Quando é que o senhor padre a podia ir lá dizer à capela?” Para entender melhor, esta capela é um local afastado da paróquia. Em primeiro lugar não sei se alguém se disponibilizaria para ir lá ouvir-me ou ver-me. Só costumo lá celebrar uma vez por ano, na altura da festa. Ele queria por força que fosse lá celebrar. Num tem uma meia horita? Não é essa a questão. Há uma pastoral organizada e um local apropriado para celebrar as eucaristias. Se fosse aceder a este tipo de pedidos, não fazia outra vida. Tinham de inventar-se muitas mais capelas!
Mas o pior é que eu não posso ser obrigado a cumprir as promessas dos outros. E disse-lhe: Então a sua promessa é para ser cumprida por mim?
Essas promessas são mesmo boas. São para os outros.
Mais grave ainda foi aquela senhora que há uns anos me veio dizer que tinha uma promessa a cumprir. Uma procissão de velas. A rir, para que também não se assustasse muito, disse-lhe: Minha senhora, pegue numa vela e comece a dar a volta à paróquia. Ela fez olhar de desconfiada. E acrescentei: Então a senhora quer que toda a paróquia cumpra a sua promessa!
Nunca gostei muito de promessas e cuido que Deus também não gostará. Porque é que não prometemos, pura e simplesmente, ser melhores?

terça-feira, abril 10, 2007

Preciso uns óculos novos

De facto o senhor Manuel não trazia óculos. Magro. Sempre com a piadita nos lábios. Mesmo assim. Resmas de folhas nos braços. E não trazia óculos. Conversámos durante algum tempo. Assuntos lá do Centro. Ambos entusiasmados com a conversa. Depois palavra puxa palavra e chegámos à fábrica. Há sete meses que não pagam os salários. Cinco que deixaram as máquinas. Mais de cem no desemprego. À espera. Alguns casais. Fico triste. Não baixo a cabeça porque é necessário dar coragem a esta gente. Mas quando chego a casa fico a pensar. Não tenho como ajudar. Não conheço ninguém que possa resolver. Nem as minhas cunhas servem. O problema começa a generalizar-se. O estado do país é alarmante. As contas ainda mais. Anda tudo desconfiado. Um dos casais que mais colabora com a paróquia está sem receber desde Janeiro. Trabalhavam os dois na fábrica. Têm um filho no Seminário. Dói-me a situação. Dói-me não poder fazer muito. Só confortar. Ouvir. Expressar esperança. Há dias ofereci a minha casa para uma família de cinco. O conforto de saberem que tinham onde recorrer deu-lhes ânimo. Estavam com medo de perder a casa e não ter onde abrigar os filhos. Foi saboroso uns dias depois saber que pelo menos desta estavam safos. Conversava assim com os meus pensamentos enquanto ouvia o senhor Manuel. Que não tem conseguido dormir. Só com calmantes. Nem apetite. Só à força. Pesadelos. Contas para gerir. Uma criança com dez mesitos. O pior veio depois. E só dei pela falta dos óculos nesse momento. Estraguei a haste dos meus óculos. Meti fita-cola. Mas agora foi no meio, senhor padre. Preciso uns óculos novos. Mas não vou lá porque o dinheiro pode faltar para comer.
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PS. Este post de arquivo aconteceu em 2005. A fábrica faliu. Há muita gente ainda no desemprego. As famílias apresentadas estão a tentar sobreviver. Uma delas conseguiu, embora o casal tivesse de separar-se por mais de 300 quilómetros. A outra está mais complicado. A separação é de milhares de quilómetros e ainda ñão se vê luz ao fundo do túnel. Mas o senhor Manuel teve direito a óculos novos.

quarta-feira, abril 04, 2007

Uma confissão bem amiga

Já não se confessava há muito, disse. Um tipo desportivo. Dread. Calças largas e quase ao fundo do dito cujo. Senta-se de forma bem larga. Sorri para tudo. Eu também. E depois um desenrolar normal do sacramento. Diálogo que não transcrevo. Tinha estado fora do país. Achara oportuno confessar-se. Nada de estranho. A mãe tinha dito. Ele achara por bem. Quer dizer, acho. Rosto amigável. Cabelo de gel. Simpático. Mesmo mesmo. Atribuí a penitencia que supus adequada. Costumo indicar algo que tenha a ver com os pecados confessados e para melhorar. Tipo, se murmurou, peço para rezar pelas pessoas com quem ou por quem murmurou. E agora diga o acto de contrição. Não lembro, padre. Não tem mal. Eu ajudo. Balbucio aos poucos e aos arranques e ele repete. No final, elevo a minha mão direita para a absolvição e bênção finais. Ele olha para mim. Sorri. Eu ia fechar os olhos, como costumo fazer, mas hesito. Não fecho. Imaginei que lhe tivesse recordado algo. Como ele vinha da Alemanha pensei até nos gestos hitlerianos. Safa, que não cabe qualquer comparação! Aqui trata do perdão e por lá da falta do mesmo. Mas não. Ele continua com o sorriso amigo, eleva também a mão direita. Vai buscar a minha quase à sua cabeça. Agarra-a. Cumprimenta-a. E a mim. Baixa as duas. Eu aceno que não. Ele insiste. Obrigado por tudo, padre. Sorri. Expliquei com calma. Abriu a boca e deixou que eu o absolvesse. Ficámos ambos descompostos. Ambos com uma para contar, sem malícia nem apimentado. E isto já me aconteceu mais vezes, tipo, uma ou duas por ano. Torna-se engraçada ou formativa a distracção ou falta de formação.
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Aproveito para desejar a todos uma Páscoa cheia de Alegria e de Vida!