sábado, setembro 29, 2012

Às vezes sinto que não escolhi o meu destino

Às vezes sinto que não escolhi o meu destino. E nessas ocasiões baixo os braços. Fico desarmado e entrego-me à vida. Deixo que ela conduza cada dia da minha vida. E passam os anos e sinto que a vida envelhece e que o que faço não foi escolhido por mim. Queria sentir-me dono de todas as minhas opções. Mas sou apenas dono daquilo que tenho de fazer. E sento-me no sofá a olhar para anteontem, desejando que as coisas pudessem ter sido uma escolha sempre minha. Desculpo-me com Deus. Quero ter a certeza que foi Deus que assim quis. Mas continuo a achar que são os homens que escolhem por mim. A paróquia. A pastoral. As pessoas ao meu cuidado. As igrejas. A Igreja. Os sacramentos que me pedem. Todos donos de mim. Todos donos da minha vida e das minhas opções. Tento encontrar o dedo de Deus em tudo, porque acredito que Ele está no cerne de tudo. Ele é tudo. E aceito que assim seja, porque quero ao menos ter a certeza de que essa opção é minha.

sábado, setembro 22, 2012

Sempre foi assim toda a vida

A capela tem um telheiro em frente, forrado a madeira de carvalho bonita. O Telheiro tem duas entradas laterais com dois degraus que, de tão suaves, quase não se sentem. Na delimitação do telheiro está um pequeno muro, com mais de meio metro de altura, que serve o descanso das pessoas que ali se sentam. O espaço é agradável. Muito agradável. Ontem foi festa e, como festa popular que é, lá se deu uma voltinha com o andor de Nossa Senhora pelo recinto. A procissão é curta, como eu gosto. Foi muito digna com oração e silêncios. Gostei. Porém, quando estávamos a entrar para debaixo do telheiro, por uma das laterais, alguém se lembrou de puxar o andor, juntamente com as senhoras que o carregavam, de forma que o mesmo entrasse pelo lado oposto à entrada da capela, isto é, por uma zona onde não há escadas e as pessoas podem magoar-se ou cair no muro que perfaz, como já disse, mais de meio metro, e onde o telheiro obriga a grandes manobras para que a imagem não seja degolada. As senhoras que carregavam o andor iam mesmo caindo, e eu, que estava logo atrás, disse que era melhor ter entrado por uma das laterais, ao que o senhor que puxara o andor me respondeu, com cara de poucos amigos e sem olhar para mim sequer, Sempre foi assim toda a vida. Uma das senhoras que carregava o andor olhou-me a sorrir e repetiu a frase do homem, como que a dizer O que temos de aturar, padre! Desta vez não me zanguei nem um pouco. Antes me diverti. Soltei uma gargalhada sem som. Sempre foi assim toda a vida, como se a vida de sempre fosse apenas um pedaço de tempo, uns anos. Assim como também sempre andámos de burro e agora andamos de carro. Mas sempre foi assim toda a vida, repetem. Vou-vos contar. Hoje nem me pareceu tratar-se de uma situação de falta de fé orientada. Antes me pareceu uma falta de orientação lógica, já para não dizer em palavras mais portuguesas e numa só, uma estupidez. Há tanta gente que… sempre foi assim toda a vida.

sexta-feira, setembro 14, 2012

Promessa é promessa

Param a procissão com uma conversa de meia idade que começa numa discussão e acaba em berros. Não conheço as senhoras nem propriamente a procissão. Contaram-me que o peso do andor ronda várias toneladas carregadas por quatro homens possantes que a procissão é longa e o peso pesa. As senhoras fazem parte de um grupo de cerca de dez que fizeram promessa de carregar o andor. Não são possantes, mas fizeram promessa. São mais que quatro, mas fizeram promessa. E não há quem as demova. O padre que lá está há vários anos já nem liga. Promessa é promessa. E as senhoras berravam uma com a outra parando a procissão. Porque eu fiz uma promessa. E eu também. Mas eu fiz já lá vão dez anos. E eu já lá vão uns vinte. Só faltou a estalada. Uma puxa pela ponta do andor. A outra puxa pela manga do casaco da outra. Tudo a olhar como se o espetáculo aprimorasse a procissão. Quer-me parecer que a promessa é mais uma forma de as pessoas se mostrarem devotas do que por serem devotas. Quer-me parecer que a promessa é mais para os outros verem do que para ser vivida. Mas quando é que esta gente promete ser boa e fazer o bem?

sexta-feira, setembro 07, 2012

Quem canta, seu mal espanta

A senhora Emília é a cantora mor numa das minhas comunidades. Inicia e orienta os cantos da liturgia. É muito prestável, mas já não é a primeira vez que na hora do pós-comunhão fica em silêncio. Pelos vistos estavam assim habituados. E não vem mal ao mundo que a acção de graças seja feita na intimidade própria do silêncio. Porém, como gosto de cantar, insisto que se cante. No último Sábado assim aconteceu. Como ela estava perto da cátedra onde me sento, insisti baixinho, mas de forma audível, para que cantassem. Nada. Fez-se ainda mais silêncio. Mas nisto alguém resolveu cantar do lado de fora da porta da capela. Estávamos nós no tal silêncio profundo quando se ouviu, como se fosse ali juntinho à porta, o senhor burro a zurrar. Gargalhada geral na capela. Mais sonora que o zurro do senhor burro. E o senhor padre não resistiu a comentar do altar. Ora, eu tenho dito para cantarem. Mas hoje alguém me ouviu, e já que não cantamos nós, que haja quem cante por nós. E saímos da eucaristia todos bem-dispostos, pois que, deixem passar a expressão, quem canta seu mal espanta.