quinta-feira, maio 26, 2011

O preto pousou sobre eles sem licença

A mãe do Joaquim, que é a esposa do senhor Manuel e a sogra da Rosa, faleceu há coisa de um mês. O preto pousou sobre eles sem licença. O preto amargo que nos cobre e nos fecha a cadeado. Ela era fácil de se amar, e por isso o preto, neste caso, fez-se mais teimoso. Sou amigo da casa e custa-me ver aqueles rostos da cor das roupas. Já por umas seis vezes que falámos no assunto. Eles pedem-me tempo e eu dou. Eu falo que é minha obrigação e eles dizem obrigado. E falamos sempre. O luto faz-se, acontece e, às vezes os sentimentos das pessoas escurecem e escondem o sol ou as suas réstias ou raios de luz. É como se fizéssemos do dia noite. Eu não quero tornar-me incómodo, mas abordo esse sol, que não se pode apagar para não ser sempre de noite, e dou tempo. Eles agradecem por isso. Por lhes lembrar o sol, por lhes dar tempo, e por me lembrar deles. Três coisas que, cuido, devemos atender ao lidar com quem está escuro como o luto.
Há dias soube que o senhor Manuel vai todos os dias, ao final da tarde, até ao cemitério que não fica longe de casa. O Joaquim vai também a maior parte das vezes. A Rosa vai só quando o Joaquim vai a horas que ela pode. Fazem-no porque não sabem o que fazer. Fiz-lhes essa pergunta e não souberam responder. Foi mais ou menos um Não sabemos porque fazemos, mas temos de fazer, padre. Perguntei-lhes, numa só frase, sobre o sentido desse luto e dessa forma de agir. Não me souberam responder. Ao que respondi, questionando, que se algo não tem sentido, porque há-de fazer-se?
Olharam para mim de uma forma aberta e eu pensei. Estão a pensar que o que disse é importante. O Joaquim foi o mais expressivo. Mas as expressões enganam e às vezes uma expressão aberta pode significar só isso. Que ouvimos mas isso não importa ou não é importante. A nossa vida fica aqui, está presa aqui, neste luto e neste escuro e nesta noite. Amanhã será outro dia. Ou não.
As pessoas que estão escuras precisam que alguém lhes faça perceber que é de dia e o sol vai alto.

sábado, maio 21, 2011

Qual a frase de João Paulo II que mais te toca interiormente?

O agora beato João Paulo II não deixou indiferentes os que com ele privaram, quer através dos seus escritos, das suas viagens, das suas aparições, das suas celebrações, dos seus ensinamentos, quer através da sua vida. Ainda no rescaldo da sua beatificação, fui procurar algumas das suas frases mais famosas ou que mais me foram tocando. São apenas algumas e não me perguntem porque as escolhi. Deixo-as agora em tom de partilha, sujeitando-as a uma sondagem sem outras pretensões que não a de nos ajudar a meditar com a ajuda deste beato que, segundo afirmações do cardeal D. José Saraiva Martins, não há-de tardar muito em ser canonizado. A pergunta é esta: Qual a frase de João Paulo II que mais te toca interiormente?
Se a frase que mais gostam não estiver neste lote, transcrevam-na nos comentários. E se possível, deixem no mesmo local as palavras que as vossas escolhas suscitarem.

quinta-feira, maio 19, 2011

Menina não baptizada não entra

A data fora marcada com antecedência pela avó. A hora também. E lá estavam o casal à porta com a menina ao colo, os padrinhos e a avó. Era a avó que trazia a Inês ao colo. Iam baptizá-la. Cheguei apressado, quase em cima da hora combinada, que era a hora da Eucaristia da paróquia. Convidei-os a entrar. Estava frio e não queria que a Inês se constipasse. Entraram todos, menos a avó e a Inês. A mãe da Inês fizera menção de pegar nela e levá-la consigo, para dentro. Mas a avó, pelos vistos, não deixou. Apesar das horas estarem super-marcadas, passo a passo, nos meus compromissos, decidi voltar atrás, à rua, ao frio. Insisti que entrassem, ao que a avó respondeu que não podiam. A menina não podia entrar antes de ser baptizada. Escusado será dizer que a resposta me surgiu pronta. Então fique aqui com a menina, que quando terminar o baptizado, eu chamo-as. Ó senhor padre, disse ela. Mas é a Inês que vamos baptizar! Como pode ser isso? Bom, senhora avó, se a menina não entra, não tem como poder baptizar-se.
São as histórias das superstições que sempre se rezaram assim. As crianças não devem entrar nas igrejas sem estarem baptizadas. Eu pensei que estas coisas já não eram de hoje, mas pelos vistos enganei-me. E enganei, entre aspas, a avó, porque ela acabou por entrar logo atrás de mim.

quinta-feira, maio 12, 2011

Não olha senão para mim

Hoje estou aqui sentado. O banco tem lugar para mais cinco se não forem gordos. Mas estou só. A Igreja está escura. Junto ao altar, por entre a janela, percebe-se um tom amarelo da rua. Um amarelecido do tempo. Não quis acender as luzes. Gasta muito. E gasta-me os olhos. Assim descanso-os e posso poisá-los na luz mais forte da Igreja, a luz do sacrário. Trouxe comigo algumas coisas. No banco, do meu lado direito, coloquei as minhas fraquezas. São muitas. Ocupam muito espaço. A seguir coloquei os meus falhanços. As fraquezas ficaram mais perto porque as vejo sempre muito perto. Do lado esquerdo coloquei as cobardias, os medos e as tentações que mais frequentam o meu coração. Se fossem volumes de livros, seriam uma biblioteca. Na ponta do banco, do lado direito estão os pecados. Amontoados. Desorganizados. Não os queria trazer. Mas eles vieram colados à minha sombra. Tal como a sombra não nos abandona, quer com muito sol, quer com iluminação fraca, assim eles se colocam atrás de mim. Costumam colocar-se estrategicamente atrás e não à frente. Tenho a certeza que se eles estivessem na minha frente, eu procuraria todas as horas voltar-me para o Sol. Não consigo avaliar melhor localização. Se de forma que os não veja e sinta. Se de forma que os veja para procurar o Sol.
Recordo que a Igreja está escura. Ainda bem. Pressinto que não estou sozinho no banco. Mas sinto que o sacrário é mais forte, mais luminoso. Prende-me mais a atenção. Apetecia-me passar horas aqui sentado a sentir o que estou a sentir. É como se Ele não tivesse querido olhar as minhas fraquezas, fracassos, cobardias, medos e tentações, e se fixasse apenas no amor que me tem. Também Ele dirige o olhar para o meu banco e não olha senão para mim. E confia. Apesar do banco estar pesado, Ele confia em mim e quase parece fazer-me deslocar levemente, como uma pena, ao Seu encalço. Quer-me assim. Ama-me assim. Não está interessado senão em amar-me.
Levanto-me e parece, de facto, que estou mais leve.

quarta-feira, maio 04, 2011

As inutilidades das nossas Bíblias

Andámos a mexer nas Bíblias de cada um. Convidara as pessoas a trazer a sua Bíblia para a Igreja, numa partilha comunitária. Pelo menos para sacudir-lhe o pó, expliquei. E para percebermos que ela pode usar-se. Que ela tem palavras escritas para serem lidas. Que não é apenas um adorno fácil das nossas estantes ou da nossa cómoda envernizada. Valeu a pena o esforço. O número daqueles que trouxeram a Bíblia foi aumentando aos poucos. Outros pediram que lhes fizesse o favor de lhes comprar uma. Fiquei feliz por poder ajudar. Por poder contribuir. Por proporcionar maior contacto com a Palavra de Deus. Temos a Bíblia em casa e podemos usá-la.
Mas há dias dei por mim a pensar naquelas pessoas que não trouxeram a sua Bíblia ou não pediram para a comprar. Dei comigo a pensar que podiam padecer da timidez dos cristãos que não querem assumir mais do que aquilo que se habituaram. Ou que não percebem que a Bíblia foi uma das maneiras mais excelentes, escolhida por Deus, para falar connosco. Ou que não percebem que os cristãos devem ser comprometidos com Deus também desta forma. Ou que elas não têm a Bíblia em casa porque não a sabem ler. Ou porque têm receio do que ela possa exigir-lhes. Ou, pura e simplesmente porque não a querem ter. O que me entristece. Há tempos alguém me dizia que a Bíblia dos simples era o terço. Achei a afirmação interessante. Mas continuo a julgar que um verdadeiro cristão deve ter a Palavra de Deus Escrita em casa.