sábado, maio 31, 2014

O peitinho da menina

A menina que ia baptizar estava toda vestidinha de branco com aqueles vestidos maiores que as crianças, cheios de folhos e muito justos no pescoço. Os pais e os padrinhos estavam de fato sem gravata. A ocasião merecia vestimentas à altura que é como quem diz roupas de cerimónia. Eu já me vesti assim em ocasiões como esta. Ali estavam diante de mim e de toda a comunidade, quando chegou aquele momento em que é necessário descobrir o peito da criança para ali ser ungida. Ora, sendo um vestido justo no pescoço, ou se desaperta um ou dois botões, caso os tenha, seja na frente ou atrás, ou então há que levantar os folhos do tecido e encontrar um pedaço de peito para ungir. Muitas vezes arma-se tamanha confusão que nem queiram saber. Eu costumo pedir calma e suficiente serenidade para que o momento seja ajustado ao rito. Mais, costumo ir dando indicações aos pais sobre o que vem a seguir, para que estejam concentrados no sacramento e menos no que fazer durante o sacramento. Faço sinais com os olhos. Sim, às vezes também os pisco. Murmuro palavras e indicações. Aponto discretamente. E assim fiz no baptizado da menina para que lhe descobrissem ou destapassem o peitinho. Falei duas ou três vezes Peitinho. Não me entenderam, e o pai olhava para mim a perguntar. Apontei ao peito da criança. Nada. Apontei para o meu peito e disse Agora é aquele momento do peito. E até que enfim o pai me entendeu. Assim sendo, entregou a criança à mãe, colocou as duas mãos no primeiro botão da sua camisa sem gravata e toca de desapertar uns botões. O padre teve de intervir, não fosse o homem desapertar a camisa toda. Depois clarificou que era o peito da criança que tinha de ser descoberto. E depois nem o padre nem as gargalhadas resistiram mais. Além desse desfecho burlesco, este padre que aqui está a escrever aprendeu uma grande lição. Que tinha de ser mais claro, não fosse algum dia alguma mãe lembrar-se de fazer o mesmo.

quarta-feira, maio 28, 2014

Os Migueis e as Saras das nossas catequeses e paróquias

O Miguel anda no sétimo ano e também anda na catequese. Há dias a catequista convidou o seu grupo a participar na Eucaristia após a catequese. Os miúdos já estavam no corredor quando o Miguel disse Eu não vou. Era o que me faltava. Só se me obrigarem. Eu ia a passar, ouvi e meti conversa, perguntando-lhe porque é que não queria ir à missa, ao que me respondeu. Eu vou, senhor padre, senão a catequista pode marcar-me falta. Sorriu com ar de malandro. Eu também fiz o mesmo sorriso. Anda. E foi, mas foi como foi.
A Sara anda no sexto ano e também anda na catequese. Em conversa confidenciou-me que gostava muito de ir à missa, mas que a mãe não queria e quase não a deixava ir. Ela insistia, pedia, mas a mãe tinha mais que fazer. Fez um olhar triste. Eu também fiz o mesmo olhar, mas mais compreensivo que acusador.
Há muitos Migueis e Saras nas nossas catequeses e nas nossas paróquias. E questiono-me que adianta termos catequeses assim, termos paróquias com cristãos assim. E questiono-me se a catequese serve ou não para levar as pessoas à fé. E questiono-me se devemos andar a alimentar paróquias assim. E questiono-me o que Deus se questionará. E mais não quero questionar, porque senão deixo de ser eu para ser a questão.

segunda-feira, maio 26, 2014

Pai Nosso [poema 13]

Rezo o Pai Nosso
Como posso

Repito o Pai Nosso
Porque às vezes não o ouço

Digo o Pai Nosso
Deixo-o ir, ele vai
Para ser apanhado,
Dito e escutado

Só assim é
Pai Nosso

sexta-feira, maio 23, 2014

Ligou-me do lar

Ligou-me do lar para me dizer que estava no lar. Já lá vai mais de um mês e não gostava de lá estar. Achei piada quando me disse que eram só velhos e velhas, como se ela não se incluísse na designação. Mas a conversa não estava para piadas: A voz embargada da senhora Maria de Fátima não mo permitia. Entre umas palavras mais pronunciadas, surgia uma voz embargada. A filha levara-a para ao pé dela, mas para longe da sua casa e dos seus amigos. Se ao menos tivesse ido para perto do senhor padre, dizia a voz embargada. Já não vou à missa há um mês. Eu frisava-lhe os novos amigos e as pessoas que cuidavam dela. O descanso para a filha, pois que se lhe dava alguma coisa agora tinha quem a socorresse sem demora. Mas ela não gostava. Pertencia às minhas paróquias antigas e já antes ligava bastas vezes insinuando que lhe fazia bem ouvir a minha voz. Era a minha voz e a esperança que lhe infundia e com que lhe respondia. Os lares de terceira idade são o local para onde vão os que já nada têm para dar à sociedade, e quem para lá vai cai nessa realidade. Bem tentei que ela desse a volta ao texto. Que conseguisse descobrir as coisas boas que tinha no novo lar. Mas ela embargava a voz, transparecia o choro e dizia Peça a Deus que me leve. Disse-o duas vezes. O mesmo número de vezes que se me cortou deveras o coração. Prometi que um dia a iria ver. Pedi-lhe que se agarrasse a Deus, que Este não a abandonava. Mas quando desligou o telefone perguntei-me a mim próprio e a Deus porque têm de existir os lares. Porque tinha de ser assim?

terça-feira, maio 20, 2014

chama [poema 12]

As atalaias chamam por Ti.
Eu não sei chamar assim.
Não sei como chamar-Te.

Sabes Tu.
Sabes Teu
nome,
mas não cabes nele.
E eu não sei como chamar-Te

Olho todas as coisas.
Chamo-as,
às coisas,
faço figas
e espero
chamar por Ti.

domingo, maio 18, 2014

O cego de nascença

Vinha o cego de nascença no Evangelho. Vinham os fariseus. E vinha Jesus a dizer que alguns pensavam que viam, mas não viam, e que outros havia que, mesmo sendo cegos, viam. Isto é, o ver não é apenas ter olhos abertos e reparar nas coisas à nossa volta, mas percebê-las e deixar que elas sejam o nosso viver com sentido. Dito de uma forma um pouco mais católica, Jesus atrevera-se a curar um cego de nascença para que, ao ver, este pudesse ver com os olhos de Deus. É o ver com a fé. É o ver o mundo para além do horizonte do nosso olhar.
E nisto, depois de pregar abundantemente sobre o cego que ficou a ver e os fariseus que pensavam que viam, mas não viam, imaginem o que sucedeu. Depois de tanto palavreado e tanta homilia, depois de tanto afirmar que às vezes poderíamos nós, como os fariseus, pensar que víamos, mas ainda não víamos, imaginem que ao voltar para a cátedra (leia-se lugar onde o presidente da cerimónia se senta), arrumei uma cabeçada numa cruz de madeira, próxima do altar, que temos lá colocada desde o início da Quaresma, e que não vi. Ora cá está a confirmação do que acabara de partilhar na homilia. Alguns pensam que vêem, mas afinal não vêem. A minha acólita, aflita, bem me perguntava se eu estava bem. Mas eu não fazia outra coisa senão rir-me perdidamente. Os restantes paroquianos olhavam aflitos para mim. Mas eu sorria para eles e perguntava. Jesus tinha razão ou não tinha?

sábado, maio 10, 2014

Como te amo, Senhor?

Às vezes chego a pensar que me amo a mim através do amor que te tenho. Que te amo na medida em que me satisfaço, em que me sinto bem, em que me trazes o que eu preciso. Isso é amar-te, não na tua medida, mas na minha. Isso é amar-me através de ti. Por isso quando está tudo bem, eu gosto imenso de ti. Quando está tudo mal, eu questiono-me de ti. Outras vezes penso que te amo na forma como faço, como cumpro, como me tranquilizo porque faço e cumpro. Isso é amar-te, não na tua medida, mas na medida do que me deves por eu fazer aquilo que faço. Por eu ser um fiel cumpridor do que me mandas. É amar-te em mim, na medida de eu fazer o que esperas. E ainda outras em que te amo no meu entender, na forma como te compreendo, como te sei. Ainda há dias um colega lembrava que nós, padres, podíamos perfeitamente falar de Deus sem acreditar nele, baseados em toda a teologia e compreensão intelectual que fizemos Dele. Isso é amar-te sem coração, na medida do que sabemos e não na medida do teu amor. Para te amar, tenho de deixar de pensar em mim, no que eu gosto ou sinto, no que eu consigo ou não, no que sei de ti ou não, mas no que me amas e porque quero estar contigo. Sim, porque amar é estar com. Tão só isso. Quero estar contigo, Senhor. E deixa-me tratar-te por tu com letra pequena, porque assim sei que estamos mais juntos, mais próximos, mais em pé de igualdade, mais tu e eu sem qualquer barreira de distância. Pois quero estar contigo, Senhor.

quarta-feira, maio 07, 2014

O Padre José apaixonou-se

Ele tem trinta e poucos anos e ela vinte e muitos. Não se conheceram no acaso da paróquia, mas no ocaso da vida. Por causa de Deus e das Suas coisas, tiveram que trocar palavras. Muitas. Depois trocaram olhares, gestos, cumplicidades. Até se sentirem presos a uma corrente invisível. Uma corrente de três ou quatro metros, com cada um deles nas pontas. A uma distância uma união. Encontrei o padre José no mundo da Internet e foi ele que começou a conversa. Não consigo descrever todas as emoções que vêm crescendo em mim há muito tempo, amigo. Ela é extraordinária. Quando estamos juntos, sinto que me evita. Mas eu não consigo deixar de pensar nela. Gosto de dialogar com ela e de lhe sentir o cheiro. Na igreja procuro-a no meio das outras pessoas. Ainda por cima é minha paroquiana. Não tenho medo nem vergonha do que as pessoas possam dizer, do que possa pensar a sociedade em geral, do que possam sofrer os meus pais e restantes familiares. Mas não sei que fazer, amigo. O que será melhor? Viver como sacerdote com o coração triste, ou viver como um homem que descobriu o que é o amor mas tem de abdicar de toda uma vida que se construiu?
Eu não soube responder. É tão complicado responder a um colega sobre estas assuntos que são nossos, de todos os padres, e que não nos podemos distanciar deles. E depois andamos nós a pregar que o principal mandamento de Deus é o Amor. Mas queremos castrar-nos uns aos outros na forma mais íntima de amar. E precisamos de padres que saibam amar. E precisamos de padres autênticos. E precisamos de padres porque cada vez somos menos. Por isso não lhe respondi como devia. Fiz o mais fácil nestas ocasiões. Disse-lhe que ia rezar por ele. Apetecia-me dizer que ele devia procurar a felicidade fosse como fosse. Que devia ter consciência que as paixões passam e só fica o amor. E que o amor a Deus não é apenas uma paixão. E que tudo passa se assim permitirmos que aconteça. Mas como era tanta coisa e tanta coisa paradoxal, acabei por dizer apenas. Vou rezar por ti, amigo.

quinta-feira, maio 01, 2014

A Maria do Céu

A Maria do Céu tem um nome bonito. É Maria e é do Céu. Tem um problema na coluna ou nas costas, que lhe tem afectado o cérebro e a cabeça, como explicou com duas lágrimas. É uma mulher sofrida. Esta doença está na moda, senhor padre. Como se as doenças também fizessem moda. Como se as doenças se vestissem de acordo com gostos ou estilistas. Elas vêm sem avisar e sem épocas, sem pedidos e sem gostos. Olhe que a gente não consegue estar sentada, deitada ou de pé. A única posição possível é a do sofrimento. A filha vai pelo mesmo caminho. Valha-me ao menos o meu nome, disse, e que este sofrimento nos traga a alegria do e no Céu. Seja o que Deus quiser, mas que me queira como o meu nome diz, Maria do Céu. Tenho um nome bonito, não tenho, senhor padre? Tem, de facto, um nome bonito e eu não disse mais nada porque ela já tinha dito o que eu teria para dizer.