terça-feira, janeiro 31, 2017

Conversa desajeitada

Conversa de quem quer algo, de forma volátil, numa paróquia que tem à sua frente três padres. Olhe, diz ela para a funcionária do cartório, quando é que posso falar consigo para marcar umas coisitas? A funcionária perguntou de que coisas se trata, e ela respondeu que, como agora há três padres na terra, se podem fazer coisas que antigamente não se faziam. Mas o quê, retorquiu a funcionária. Assim, como batizar o meu neto e o meu genro no mesmo dia. A funcionária esclareceu que isso se poderia, eventualmente, fazer, desde que o genro fizesse catequese. A resposta da senhora foi um Isso é que vai ser mais complicado. Queria fazer-lhe uma surpresa e mandar-lhe a água para a cabeça e um dos teus três padres rezava e pronto. Não dá para fazer assim? Como a senhora não parava quieta e parecia querer escapulir-se da conversa, a funcionária reiterou que tinha que falar com um dos sacerdotes. Um quê? Perguntou. Um dos padres. Ahhh, ok, eu gosto muito daquele dos olhos azuis. Sim, talvez seja. Ficou contente e mudou de caminho em direção a casa com um boa noite e Ainda bem que é o girinho que vai falar comigo. E assim terminou uma conversa profunda de um cristão profundo.

sexta-feira, janeiro 27, 2017

Os padres e as paredes

A dor do sofrimento dos padres é muitas vezes partilhada com as paredes. Sim, os padres também são humanos e também sofrem. Não sofrem diferente dos outros. Sofrem apenas com contornos diferentes. Estava eu a querer dizer que a maior parte das vezes que os padres sofrem é a olhar para umas paredes brancas ou para paredes que mudam de cor quando fechamos os olhos e continuam a ser paredes. Fazemo-lo com a vantagem de que elas não se queixam das nossas palavras que não dizemos para fora. É definitivamente uma vantagem. Também não as incomodamos muito. Não as podemos abraçar, e contudo elas abraçam-nos porque estão ao nosso redor e nos fecham dos quatro pontos que formam. 
A esta altura do que escrevo já me estou a imaginar os pensamentos dos que advogam pelo progresso afectivo dentro do clero. Vejo-os a alegar que a vantagem de uma esposa ou de uma família que nos acolhe nos desabafos não se compara à vantagem de uma parede que não fala. Pressinto outrossim a resposta dos que advogam pela conservação da espécie. Estes dirão que o melhor é não haver misturas para fora de si. 
A uns e outros quero hoje dizer que não me ocorreu nada disso. O que hoje senti é que, assim, só com paredes, Deus pode acabar por ser o único que se busca no meio do sofrimento. Atenção que eu não sou daqueles que defendem uma fé privatizada. Mas é verdade que dentro de quatro paredes não precisamos falar para fora porque Ele nos escuta dentro. Tudo na vida tem sempre dois lados. Nem que seja o de fora e o de dentro. Hoje prefiro ver este lado de uma solidão que fica aberta para se encher de Deus

terça-feira, janeiro 24, 2017

Os quatro primeiros apóstolos

Os quatro primeiros apóstolos, chamados e convidados por Jesus, eram pescadores. Alguns dirão que escolheu estes pescadores pela analogia dos pescadores de homens. É bonita a analogia, e é piedoso o argumento. Mas eu prefiro pensar que escolheu pescadores porque não queria escolher doutores. Que escolheu pescadores, gente rude por excelência, porque não possuíam eloquência ou ciência para confundir seu anúncio. Que escolheu pescadores, gente do povo por excelência, porque queria transformar a humanidade e não elaborar uma doutrina. E se começou por dois pares de irmãos, foi porque queria que a sua Igreja fosse uma Igreja de irmãos. E se escolheu dois a dois foi porque a riqueza está em não se ser Igreja sozinho. 
Com os pescadores escreveu o início da Igreja. Uma igreja que agora parece assentar em centenas, senão milhares, de doutores. Uma Igreja que agora parece encerrada em gabinetes.

domingo, janeiro 22, 2017

Que imagem tens de Deus?

Passado um mês e depois do processo de selecção de textos de 2015, foram colocados 10 textos à votação. Agradeço imenso o esforço daqueles que votaram. Os resultado estão no gráfico abaixo.
Destacaram-se três, que já foram colocados na página "best post" (aqui):
  1. Queres e eu queria
  2. Uma coisa híbrida entre anjo sem asas e homem sem sexo 
  3. Amas-me, Senhor?
Prometendo que em breve faremos o mesmo processo em relação aos textos de 2016, hoje colocamos nova sondagem online, com a seguinte pergunta: Que imagem tens de Deus?

sexta-feira, janeiro 20, 2017

O “Silêncio” de Deus

Há dois dias tive oportunidade de assistir ao filme de Martin Scorsese, o “Silêncio”. Não vou fazer uma análise do filme, nem algo que se pareça a um comentário. Não costumo usar este espaço para fazer este tipo de considerações. 
Mas sinto necessidade de dizer que, quase ao final das duas horas do filme, a minha vida estacionou. Ficou literalmente bloqueada, no sentido positivo, num diálogo que o actor principal tem com uma voz ausente, isto é, com Deus. O filme, para mim, poderia ter terminado naquele momento. 
O diálogo pode resumir-se nisto. Depois de ter apostatado, depois de tantas buscas de Deus, sem o conseguir escutar, depois de ter caído na conta de que Deus, afinal, estava em silêncio, ele faz aquela que foi a minha grande descoberta no filme. Afinal Deus não estava em silêncio. Ele estava no silêncio.

quarta-feira, janeiro 18, 2017

Asas verdes [poema 128]

As asas de quem amo são verdes
E às vezes não lhes sei a cor.
Tão minhas e tão abraçadas, sei
Que por mim vistas são sempre verdes.

As asas que me amam são verdes
Não sei se são asas ou se lhas por.
Tão minhas e tão abraçadas, não sei.
Mas tenho em mim a certeza
de serem sempre verdes
as asas do meu amor.

domingo, janeiro 15, 2017

Os jovens que olham os padres

Que observam em nós, padres, os jovens que cruzam connosco nas ruas, nas escolas, nos bares ou até nas igrejas? Que observam em nós, padres, esses jovens, com jeans ou outras calças de marca, mais interessados no que parece do que no que se é ou se tem? Que observam em nós, padres, esses jovens que Deus ama como são e que se cansaram de uma Igreja que parece dizer-lhes pouco? Que observam em nós, padres, esses jovens que não sabem ainda como Deus os ama?
Às vezes, quando olho os jovens que se cruzam comigo na rua, fico a pensar no que pensarão de nós, os padres. Se calhar não pensam nada. Se calhar não perdem tempo com isso. Não perdem tempo com coisas que não lhes dizem absolutamente nada. Ou se calhar olham para nós com a comiseração própria de quem acha que esta coisa de ser padre é algo raro, estranho, meio do outro mundo, coisas da pré-história ou de outros planetas.
Cuido que se me pusesse na sua pele, olhava para mim, ou para nós, como aquele tipo de atletas que fazem da sua vida uma corrida. Correm para fazer sacramentos e sacramentais. Correm para cumprir um série de coisas estabelecidas pela Igreja. Correm para celebrar uma missa que, ainda por cima, é uma seca. Não se faz lá nada. Estamos ali a aguentar palavras sem contexto. Simbologias que ficam no mundo das simbologias. Cerimónias e mais cerimónias sem alegria e sem rostos.
Cuido que se me pusesse na sua pele, veria que os nossos rostos são rostos de gente sacrificada sem alegria. Gente que busca as mesmas coisas que todos buscam na sociedade enganadora de hoje. Rostos feitos de fraquezas dissimuladas e identidades arrastadas. Descobriria que afinal também estamos fragmentados, somos voláteis e andamos a correr em busca de um algo que parece não sabermos o que é. 
Cuido que se me pusesse na sua pele, não me daria, ou não nos daria, muitos ouvidos. Talvez eles até nos ouçam. Mas quando são obrigados a ouvir-nos. Ou não têm nada melhor para fazer. Ouvem-nos, mas como um zumbido que incomoda ao ouvido. Ouvem-nos como uma grafonola antiga e desajeitada. 
Não me quero meter na sua pele. Não quero pensar que se fosse um deles, seria este o meu modo de pensar. Realmente seria preferível não pensar em nada. Mas temo que os jovens de hoje não enxerguem em nós, padres, a alegria do encontro com Cristo, ou as maravilhas que Deus opera em nós, porque nem uma coisa nem outra são bem contadas ou nítidas. Ou que não nos enxerguem a rezar na intimidade com Ele. Ou que não nos sintam felizes por sermos padres, mesmo quando sofremos. Ou que não percebam em nós quanto Deus no ama, ao ponto de darmos a nossa vida por Ele. Ou que não dêem conta, por nosso intermédio, que Deus os ama também. E que os pode chamar... a ser padre.

quinta-feira, janeiro 12, 2017

Palavra [poema 127]

A palavra é o que nos religa à vida
Na margem dos silêncios.

É o que dissipa ou encerra,
Os silêncios, por fora de nós,

Ou por acaso é sua voz.

Ela é nossa, e não é, ou deixa de ser
Quando é aquilo que tem de ser.

É o que não sabemos fechar de nós
Na voracidade de querer sempre algo mais
de ser,

Dentro ou fora de nós,
Para nós ou para outros nós.

Ó palavra que não cabes em palavras,
Ó palavra que não calas os silêncios,
Ó palavra que não te fechas nunca em ti,

De palavra que és palavra?

terça-feira, janeiro 10, 2017

Um Deus que se ama ou que se acredita

Estávamos numa reunião de adultos com filhos na catequese, e provocara-os a dizer o que pensavam de Deus. Um pai mais atrevidote, e posteriormente corroborado por outros pais, afirmou sem problemas que acreditava em Deus. Que acreditava nele como alguém que criara e conduzia os destinos do mundo. Um ser acima de nós ou para além de nós. 
Ele falava de Deus como o ser que nos ultrapassa e até certo ponto tinha razão. Deus ultrapassa-nos e é insondável.  Tinha alguma razão aquele pai que não falava de Deus como Pai. 
Cuido que as suas palavras são fruto da época e da sociedade em que vivemos, depois dos filósofos da suspeita e da modernidade que pretendiam “matar” Deus. É a época em que se multiplicam os movimentos religiosos e espirituais. É a época do esoterismo, da gnose, do psíquico e do mágico. É a época que aceita Deus de qualquer modo, mas como um ser que não tem de interferir na sua vida porque, afinal, o homem é autónomo, é o deus das suas escolhas. 
Por isso é difícil falar ao homem de hoje de um Deus que ama e que, remexendo com o nosso coração e com o que somos, interfere em toda a nossa vida. Dito, em conclusão, por outras palavras, mais directas e mais objectivas. É mais fácil acreditar em Deus do que amá-lo.

sábado, janeiro 07, 2017

em busca do lar [poema 126]

Vivo numa casa sem paredes, construída em ruínas,
Atravessada por um caminho de asfalto não acabado.
Aqui a terra gosta de enroscar-se e o sol dorme no chão.
Habito só, no meio de uma multidão sem nome e sem dó,
Encerrado numa flor que cresce em busca daquele sol
Por sob a casa que herdei, sem o tecto onde acorda o céu,
Entre as florestas tecidas em fios de roupa ao vento,
Qual soldado em luta contra coisas que estão mortas.

Vivo em espera.
Sei que há um lar
Onde um dia destes
Hei-de habitar...

quarta-feira, janeiro 04, 2017

O sonho de ser padre e paróquia de outra maneira

Por vezes sonho com uma nova forma de ser paróquia e com um novo modo de ser padre. Penso que é legítimo sonhar para sair de mim e do comodismo da paróquia. Não. Não é um pesadelo. Não penso estas coisas exasperado com a situação. Ou como se a mudança fosse a única alternativa possível. Tenho apenas o sonho de um dia voltarmos à frescura das pequenas comunidades cristãs do tempo da Igreja primitiva. Menos organizadas, menos sacramentalizadas, menos hierarquizadas. Pequenas comunidades à descoberta de como ser comunidade. Sem certezas, dogmas e doutrinas. Como pequenos discípulos à descoberta de Jesus. Só Ele era o centro, a certeza, a mensagem. Só Ele mobilizava. Só Ele impactava para se viver como Igreja. 
Sonho um dia ser um simples cristão que é padre. Viver a fé com o compromisso de somente a viver para Viver. Não sei, na minha simplicidade, como arquitetar o esboço deste sonho. Mas sei sonhar. 
Talvez um dia, quando o céu se fixar na terra, mesmo que tenha de ser pintado pela mão de Deus, este sonho não seja só meu. E não seja só um sonho. 

Com este sonho começo o ano. Talvez em 2017 a Igreja renasça um pouco, as nossas paróquias se tornem mais comunidade, e nós padres sejamos mais autênticos.