quinta-feira, junho 30, 2011

O assunto era padres

O assunto era padres. Padres para aqui, padres para ali. Aquele padre assim, aquele padre assado. A mesa era de madeira e não era muito grande. Albergava-nos uns cinco. A senhora Cecília era a convidada de honra. Morava numa casa grande numa vila próxima que não lembro o nome. Só lhe recordo o nome e o rosto arranjado. Pareceu-me uma mulher simples. Mas não daquelas mulheres simples do campo. Uma mulher simples no trato, na compostura, na forma de lidar com os assuntos. Os filhos eram doutores na capital. O marido já tinha morrido. Quando falava, todos se calavam, porque usava poucas palavras, e a maior parte delas faziam pensar. Estava sentada ao meu lado. Eu também fora convidado. Lado a lado a atenção das conversas. A do padre e a da Cecília. O padre, que era eu, porque tinha sempre na ponta da língua uma graçola ou uma forma engraçada de clarificar as coisas, ou então porque era o padre e o assunto eram os padres. A Cecília porque, como disse, falava para dar que pensar. Não falávamos propriamente mal dos padres, mas do que era ser padre, porque se ia para padre, a ideia que as pessoas tinham dos padres. A determinada altura a Cecília não esteve com meias medidas, deixou-se de poucas palavras, e arrematou. É uma das profissões mais fáceis de serem exercidas actualmente. Casa grande. Carro do ano. Empregada diariamente. Mestrados e doutorados pagos e com acesso facilitado. Estatuto social e religioso. Não há quase ninguém para atender, pois atendem mal. Em zonas pobres, sacerdócio é sempre uma excelente oportunidade para se livrarem das dificuldades financeiras, da lavoura, do trabalho duro. Infelizmente, mas verdadeiro. Pelas minhas bandas, não se vêem padres com espiritualidade. Muito menos com real vontade de atender aqueles que os procuram. Na minha opinião, não devem ter entrado no Seminário por vocação, mas por fuga. Todos se calaram, e fez-se um silêncio durante uns segundos que pareceram mais que sessenta. Eu disse que não era bem uma profissão. Que se tratava de uma vocação. Disse que a casa grande onde morava não era minha. Era da paróquia. Mas ia dar ao mesmo. Que o meu carro tinha quatro anos. Que tinha uma senhora que ia lá a casa fazer a limpeza mais ou menos de quinze em quinze dias, e que era eu que lhe pagava. Que não tinha nem mestrado nem doutoramento. Que o meu estatuto era o do meu trabalho. Que vinha de famílias da classe média. Tentava, a todo o custo, justificar cada frase da Cecília. Cada expressão. Mas a verdade é que este assunto me pôs a pensar. É que a Cecília falava sempre para dar que pensar.

sexta-feira, junho 24, 2011

Que gostarias de dizer neste momento ao teu pároco?

Apresento-vos hoje uma nova sondagem que tem como objectivos avaliar e reflectir sobre a relação que temos com o nosso pároco; meditar sobre o que pensamos dele; perceber o que mais precisamos dele; entender o que ele deveria ou poderia melhorar. Ou pura e simplesmente, descobrir aquilo que lhe gostaríamos de dizer. É essa a questão: Que gostarias de dizer neste momento ao teu pároco?

Podem justificar aqui as vossas opções e razões!
Para quem não saiba, o pároco é aquele sacerdote que está à frente de uma comunidade paroquial.

terça-feira, junho 21, 2011

Quem tem pouco acaba por reconhecer que cada pouco é muito

Estamos quase no Verão, mas chove. A trovoada lembra que não somos donos da vida. Que podemos fazer o que quisermos. Que podemos escolher as nossas opções como quisermos. Mas a última palavra não é nossa. O homem desde sempre teve esta vontade de se tornar Deus. Mas depois vem uma chuva que varre a vida, que arrasta consigo o que não tem bases sólidas. E depois é que nos lembramos que afinal a vida não é comandada por nós. E quando devíamos encolher os ombros na humildade de quem descobre que afinal eu só estou aqui para viver e buscar o melhor da felicidade que conseguir, costumamos revoltar-nos contra Deus e contra tudo o que Ele representa. Afinal Ele não está cá. Ou se cá está, porque havia de permitir que a chuva levasse a nossa vida toda em poucos segundos? Graças a deus que aquela senhora que apareceu na televisão com uns trapos, que lhe restaram, na mão, ia dizendo que agradecia a Deus por lhe ter deixado aqueles trapos que bem precisava. É a história conhecida do copo meio cheio ou meio vazio. Uma pessoa que tem muito, quer ter sempre mais. Por isso a Europa está como está. Quem tem pouco, acaba por reconhecer que cada pouco é muito. Eu penso que na nossa sociedade e na nossa Igreja devíamos aprender com quem tem pouco. Pois é esse pouco que dá valor a Tudo.

quarta-feira, junho 15, 2011

A catequista Lucinda

A Lucinda é minha catequista há dois anos. É muito simpática. Autêntica. Exigente. Exigente com os miúdos, e por isso acha que eles não querem nada. Exigente consigo mesma, e por isso acha que não é boa catequista. Exigente com a catequese, e por isso acha que o que faz não dá frutos. Exigente com a vida, e por isso há dois anos que tenta resistir ao chamamento de Deus para ser catequista. Para continuar a ser catequista. Já por umas quatro vezes que pensou desistir. Por quatro vezes chegou à conclusão que não podia fazê-lo. As últimas desculpas que deu foram o tempo que retirava à família, ao lar, aos seus, e dizia-me, para se ouvir, que Deus não deve querer isso. Estava, portanto, decidida a deixar a catequese do próximo ano lectivo. Mas ontem ainda era este ano, e teve catequese com os seus meninos do primeiro ano. Falaram do Espírito Santo, e ela incentivou os miúdos a pedir ao Espírito Santo que os ajudasse a fazer algo. Um pediu que o ajudasse a fazer o TPC. Outro que o ajudasse a não cair. Outros foram por aí fora com pedidos do mesmo género. Porém, a Teresa disse: Ajuda-me a ser consagrada. E a Marília disse: Ajuda-me a ser santa. Foi nesse preciso momento que a Lucinda teve a noção exacta do seu papel na Catequese. Ela é catequista, e tem de participar nisto. Tem de ouvir e ver estes pequeninos amigos de Jesus. Contou-me estas coisas banhada em lágrimas minúsculas, como pontinhos de luz. Deus tem um sentido de humor incrível. Quando pensamos que temos as respostas, as certezas, Ele mostra-nos algo maior.

sábado, junho 11, 2011

Estou contente pelo José

Sentei-me aqui à beirinha da janela. A cadeira está ali disposta para que me sente à beirinha da janela, para que me perca no horizonte que a janela abre ou fecha. Coloquei uma perna em cima da outra. Cruzadas, mas não em forma de cruz. Como se uma precisasse descansar e a outra não tivesse outro remédio senão aguentar-lhe o peso. Olhei lá para fora, para a montanha, e pensei que hoje me sentia como as pernas. Por um lado a precisar de descanso. Por outro a precisar de aguentar. Ainda não tinham passado cinco minutos, ainda não me tinha perdido completamente no horizonte, quando o telefone tocou. Dei um salto, sobressaltado. Não há horas para o telefone. Nem para mim. Era o José que se vai ordenar padre em breve. Uma questão de semanas. O entusiasmo percebia-se nas palavras escolhidas, no tom da voz, na cadência da entoação. Deixei-me embalar pela conversa. Mas também deixei escapar uma ou duas expressões que manifestaram a minha alegria pelo entusiasmo do José. Depois, e como que a brincar, para ele não pensar que era a sério, saiu-me algo como Não sei como ainda há jovens que se entusiasmam desta forma. Ele sorriu. Ou sabia ou disfarçou que achava piada. Compus o ramalhete insistindo que estava a brincar com ele. E comigo. Já lá vão alguns anos. Os suficientes para não me lembrar como estava entusiasmado. Como estava ansioso. Como abria as mãos para experimentar abençoar. Para lembrar como tudo era colorido. Como as pessoas batiam nas costas de contentes. E como agora falam nas costas. E como agora nos carregam as costas. E como a vida hoje nos parece ter perdido alguma cor. O José perguntou se afinal ia à missa nova dele, que é assim que chamamos a primeira missa solene de um novo sacerdote. E eu respondi que não tinha tempo. Que não tinha tempo para partilhar a alegria dele. Para fazer minha a alegria dele. Desligámos e voltei à beirinha da janela. Olhei para a montanha e pensei. Estou contente pelo José, mas tenho de descansar esta perna.

quarta-feira, junho 08, 2011

Só me apetece olhar para lado nenhum

Só me apetece olhar para lado nenhum. Ainda há pouco, conversando com uma amiga, que é mãe, me dizia que tinha receio de ter mais filhos porque esta sociedade é tão ruim que tem medo de não a conseguir proteger. Ou de não ter como a ajudar a crescer. A ser gente. Hoje ser gente não é o mesmo que existir! E depois falava que a filha mais velha tinha sido abordada por colegas para experimentar o pó. A garota ainda é nova e deve ter pensado que o pó era o que os armários por limpar acumulam. Sabe, padre, os garotos não são como no nosso tempo. Tratam a vida como se ela lhes devesse algum favor. Concordei. Passam a vida à espera que a vida lhes seja doada e não conquistada. Por isso quando ela não lhes dá nada, acham que nada vale a pena viver. São as frustrações de quem não sabe valorizar cada segundo de vida que acontece. As frustrações de quem só valoriza aquilo que se sente. Por isso tanto sobem uma montanha como descem à cova mais profunda e escura. Não sabem o que é procurar, o que é descobrir, o que é caminhar para uma meta, o que é sonhar. Não se comprometem senão consigo mesmo. Eu diria que nem consigo se comprometem. Fazem-no apenas com uma parte de si, os seus sentimentos. Por isso a vida é light. Por isso a fé também tem de ser light. Por isso a fé não é procurada. Deus não é tido senão quando se possa sentir. Não querem nada que tenha de ser procurado. Não querem Deus se este não for uma resposta imediata. Resoluta. Clara. Certa. Não querem nada que seja duradouro ou que demore. Uma missa. Uma prece. Um matrimónio cristão. Só se for sentido, e enquanto for sentido. E aquela fé, que se trata no coração, deixa de poder ser verdade porque o coração só quer sentir e não quer dar nada de si. Não quer dar nada a sentir. Triste e sentida geração a nossa. Dizem por aí entendidos que esta é a geração rasca. Outros que é “à rasca”. Não sei se alguém já pensou nela em termos de fé. Eu queria pensá-la nesses termos. Usar este papel e estas palavras nesse sentido. Mas também só me apetece senti-la. Esta geração faz-me sentir que precisa de um sentido. E é por isso que só me apetece olhar para lado nenhum.

sexta-feira, junho 03, 2011

Cerimónias para ver

Hoje em dia tornou-se costume, ou normal, ou banal, serem as avós a tratar das coisas do baptismo. Os pais estão longe da terra e, às vezes, da Igreja. E foi assim que a Anunciação marcou o baptizado para o netinho Dinis. Tratados os papéis, os padrinhos e os pais, lá chegou o dia marcado pela avó e a hora marcada pela eucaristia da comunidade.
Cheguei uns vinte minutos antes, o que é raro. Havia tempo para tudo e mais alguma coisa. Em vinte minutos muita coisa acontece nas nossas vidas. Esperavam-me à entrada da igreja, mas dentro, no guarda-vento. Falámos um pouco. Estavam entusiasmados. Mantivemo-nos uns cinco minutos nisto, quando a avó, que lá estava, como manda a lei das avós que tratam de tudo, a dar conta da conversa, se lembrou de repente. Ó senhor padre, é verdade, lembrei-me agora, confesse-os lá. E apontava para os pais. Embora tardito, fazia sentido o seu pedido. Porém, como sou de opinião que estes pedidos devem vir de dentro, e ali vinham de fora, da avó que ainda queria continuar a tratar de tudo, olhei para eles e perguntei com o olhar se tinham vontade de confessar-se. Eles responderam, com o mesmo olhar, que não tinham bem a certeza. A avó deu conta e insistiu. Andai lá que a cerimónia fica melhor, mais bonita. E assim acabaram por confessar-se, que eu não me achei digno de o impedir. Disse o que tinha a dizer, e não sei se a cerimónia ficou melhor ou mais bonita. Nem se ficou mais sincera.